Em 2017, o
conto Cobras no Laranjal – publicado pela primeira vez em 2009 – terá nova edição.
Esgotada a primeira tiragem, foi escrito em homenagem à professora do filho da escritora,
quando este estava no primeiro ano escolar.
O tema? A origem do nome da Praia do Laranjal.
Para a nova impressão, uma revisão
foi necessária. Acesse aqui a versão 2017, que contou com os olhos atentos e a sensibilidade
de Bitica Rosa, a quem a autora agradece
profundamente.
Cobras no Laranjal
Cristina Maria Rosa
Todo mundo ficou falando do temporal que tinha dado, à
noite, lá no sul do país. Em Pelotas, uma cidade banhada pela Lagoa dos Patos, parece
que a coisa foi feia. O Jornal que noticiou o temporal não mencionou as cobras
que o Menino encontrou.
E levou para a
escola.
O Menino tinha uma professora que amava bichos e adorava
descobertas. A professora namorava um cara que era biólogo. Desses que são
convidados para salvar pinguins e leões marinhos de desastres ecológicos como
derramamento de óleo de cargueiros. O namorado havia ensinado às crianças que
animais silvestres, como tartarugas e sabiás, não devem viver presos. E inventara
um passeio às dunas do Laranjal, lugar propício para o nascimento de
tartarugas. Ele desejava que os pequenos devolvessem à natureza bichinhos que
alguns mantinham em cativeiro.
As crianças, pequenas ainda, de idade seis ou sete,
choraram quando chegaram em casa e viram aquários vazios, gaiolas de portas
abertas, a alfacinha ainda ali...
Quando publicou-se no jornal as fotos, quando beijos
receberam de pai e mãe, quando avós orgulhosas telefonaram, as lágrimas foram
de alegria: a natureza estava salva, um pedacinho, graças a todos eles!
Mas como eu ia dizendo, falou-se muito do temporal no sul.
Um temporal feio, com barulho intenso e lagoa revolta.
Nunca visto.
Nunca sentido.
Nunca imaginado!
Começou com um ventinho que, por mais forte a cada
momento, se tornou ameaçador. E a lagoa, sempre tão boazinha, por muitos metros
adentro rasa, de brincar crianças e de sossegar mães, cresceu...
E veio vindo...
Tomando conta da
areia onde, ontem mesmo, corpos tomavam sol, pernas jogavam bola, cães rolavam
em passeio e o chimarrão unia grupos.
A primeira vez que eu ouvi falar da Praia do Laranjal,
pensei que fosse um lugar com muitas laranjas.
Adivinhou! Não há
nenhuma!
Ou melhor, nas
fruteiras da praia do laranjal tem de tudo, até laranjas. Do céu, de umbigo, laranja
comum, de suco, da serra, “de fora” e “de São Paulo”.
Mas nenhuma colhida ali, em laranjeiras que já não há...
O nome, Laranjal, se deve às inúmeras laranjeiras, segundo
eu fiquei sabendo, que havia.
Nas Quintas, um nome que davam às propriedades naquele
tempo. Hoje seria um sítio ou chácara.
Nessas quintas, frutas. Nativas como amora, goiaba, araçá,
ananás, pitanga e guabiroba. Outras, trazidas da Europa, como pêssego, ameixa e
pera. Laranjas também havia nas quintas: de casca grossa, eram as “laranjas crioulas”.
Por ser um lugar repleto de laranjas, tornou-se nome:
Praia do Laranjal. Com o fim das quintas, das frutas e das laranjas, do nome
restou a praia.
Lá por 1960, para se chegar à praia da lagoa, pessoas – a
pé, a cavalo ou em charretes – mais tarde em ônibus ou carros, faziam o caminho
pelo Areal. Por isso Avenida tão larga, a Domingos de Almeida. E tão cheia de
árvores... sombra, para o descanso no trajeto, que era longo.
Na Baronesa, mais
ou menos o meio.
No fim da Rua das
Traíras – essa eu ainda não descobri a origem do nome, mas não creio ser
difícil – uma balsa fazia o translado. Onde acabava a Rua das Traíras e
começava a balsa? Ao lado da Charqueada São João, uma Charqueda de verdade que
hoje serve de moldura para filmes, faz parte de roteiro turístico, cenário para
amores...
Memória exposta!
Depois da balsa, não sei bem quando, construíram um
pontilhão de madeira, que dava passada para um de cada vez. Carro, não pessoa,
ou seria pinguela...
Desviei-me novamente, volto ao temporal...
Nesse dia, ouviram-se rajadas, como assovios...
Uma sinfonia de muitos fantasmas, unidos, querendo
assustar os vivos?
Muito surrou, as árvores, esse assovio.
Como chibatas.
Como nas charqueadas.
Muito fustigaram, a areia, essas rajadas.
Como o sal, no charque, em idos tempos...
E em muitas casas entraram as águas, mandadas pelas
rajadas.
Vento e água.
Juntos.
Fortes.
Incessantes.
Por muitos passos, para além da largura da areia, para
além do calçadão, para além da avenida à beira, para além das quadras
primeiras...
Água.
Mais água.
Imensa e revolta e forte e rápida água.
Uma noite quase inteira.
De volume.
De água e do barulho dela.
E muito se disse quando tudo serenou, depois de dias.
Cada crença uma explicação encontrou, quando aos limites
da lagoa voltaram as águas.
Castigo da natureza! Revolta de Iemanjá...
Desígnios de Deus. Dívidas com os antepassados...
Aviso de algo maior?
O Menino, que de crenças poucas vive a vida, curioso ficou
com as cobras.
As cobras no Laranjal.
Muitas. Mortas. Soltas. De todas as cores. Tamanhos.
Jeitos. Algumas vivas.
Para o Menino, o temporal foi lamento pela morte e sorriso
pela possibilidade de olhar bem de perto.
Pegar. Levar. Para a escola. As cobras.
Nunca na praia tinha visto cobras.
E nem sabia de onde vinham.
Da lagoa?
Das dunas?
Dos banhados que a lagoa transformou num só mundo d’água?
Nas areias, em brincadeira, pegadas de cachorros viravam
marcas de dinossauros. A mãe inventava histórias sobre a saída, à noite, desses
pré-históricos para avisar aos de hoje, que ainda, sim. Mas cobras? A mãe não
inventara...
O mistério, as cobras, ninguém ainda sabe, de onde.
O Menino sabe.
Inventos podem ser, podem não ser...
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