quinta-feira, 26 de março de 2015

Critérios de escolha: um passinho de cada vez...

Critérios na escolha de obras literárias infantis
Cristina Maria Rosa

Ao escolhermos uma obra a ser lida para nossas crianças na escola, precisamos saber o que ler, para que vamos ler, qual o gênero mais adequado, qual o autor e tema escolhido entre outros critérios.
O que são critérios?
A palavra ou termo critério significa "julgar" e pode ser entendido como juízo, discernimento ou mesmo a opinião de uma pessoa. É uma condição subjetiva que possibilita optar, escolher e, por isso, por definir nossas escolhas, é considerado um juízo de valor.
Utilizamos todos os dias juízos de valor. Pessoais, quando escolhemos, por exemplo, tomar ou não banho, comer uma salada ou um sorvete. E públicos, quando preferimos descartar ou não papel pela janela do carro/ônibus na via, separar ou não o lixo orgânico do reciclável, quebrar ou não galhos de uma árvore em uma praça da cidade.
As escolhas pessoais podem ser de qualquer tipo, pois implicam em uma dimensão individual em que, supostamente, apenas o sujeito será beneficiado ou prejudicado. É o caso de não tomar banho...
As escolhas – juízos de valor – públicas, no entanto, implicam em uma dimensão para além do indivíduo, ou seja, envolvem os demais: nossa família, nossos amigos, nosso vizinhos, a sociedade como um todo. Assim, um juízo de valor externado em público implica em, necessariamente, considerar o impacto de nossas opiniões e escolhas na vida dos demais em sociedade. Implica em, por isso mesmo, considerar o que os outros pensam a respeito do mesmo assunto.
 Mas eu estava escrevendo sobre critérios...
Critério também é um requisito, ou seja, uma condição para determinado objetivo. Há critérios para se definir uma obra literária, por exemplo, e é disso que trato neste pequeno texto. Uma obra literária, para ser considerada como tal, precisa ser, em primeiro lugar, representante da arte. A arte literária.
O que é arte?
Como tu já sabes, a arte é representada por manifestações que nós, humanidade, consideramos ou nomeamos como especiais, dignas de admiração, de respeito, culto. Arte é uma habilidade, uma técnica, uma condição. É dirigida para a execução de uma finalidade de forma consciente, controlada, racional. No entanto, a arte é considerada fruto da inspiração, de imaginação, da capacidade de ver mais que os demais e indicar, a si mesmo e aos demais, essa capacidade, representando-a.
Na manifestação dessas "artes" todas, está implícita a manufatura humana, ou seja, há um autor, um inventor, um “fazedor” – alguém que transformou as informações iniciais que possuía em uma obra, um produto. O produto pode ser um som, um movimento, uma cor, um volume, uma representação, uma palavra, um olhar...
As artes – Música, Dança/Coreografia, Pintura, Escultura/Arquitetura, Teatro, Literatura e Cinema – são sete. No entanto, há outras formas expressivas também consideradas artes que surgiram posteriormente às demais e foram “adicionadas” à numeração proposta pelo manifesto[1]. São elas: a arte da imagem (fotografia e seus desdobramentos), a Arte da cor/palavra/imagem  (Quadrinhos), os Games (vídeos) e a Arte digital.
E o que é arte literária?
É a arte da palavra, materializada pela expressão do pensamento do autor/autora. Para Graça Paulino, a arte literária é representada pelo contato – pacto – entre o autor e o leitor. Um pacto do qual se usufrui intensamente. Em suas palavras:

A leitura se diz literária quando a ação do leitor constitui predominantemente uma prática cultural de natureza artística, estabelecendo com o texto lido uma interação prazerosa. O gosto da leitura acompanha seu desenvolvimento, sem que outros objetivos sejam vivenciados como mais importantes, embora possam também existir. O pacto entre leitor e texto inclui, necessariamente, a dimensão imaginária, em que se destaca a linguagem como foco de atenção, pois através dela se inventam outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas ações, pensamentos, emoções (PAULINO, 2014[2]).

Se a literatura é uma arte e há diferentes autores, obras, gêneros, como escolher o que é a melhor expressão da artesania humana para os pequenos na escola?
Os critérios literários: um pouquinho de cada e da melhor qualidade...
1º Critério: Longevidade
Contos de Fada, Contos Maravilhosos ou Contos de Encantamento são as narrativas compiladas da oralidade por Charles Perrault (1628-1703) e pelos Irmãos Grimm – Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) – e as narrativas criadas por Hans Christian Andersen (1805-1875), preponderantemente. Representam a arte literária pela longevidade. São narrativas que persistem na “memória coletiva” e tem sido atualizados “por sucessivas leituras” e mesmo recontações e reescrituras.
A característica mais forte dos contos maravilhosos é a abordagem de temas humanos, como o amor, e nele a inveja, o ciúme, as disputas e as violações e o medo – do abandono, da solidão, da crueldade e da morte, entre outros. Esses “temas”, tratados “de maneira intensa, original e múltipla” encantam, produzem o desejo de serem desvendados, desvelados desde tenra idade e por isso, merecem integrar o repertório para as crianças.

2º Critério: expressão inusitada, linguagem metafórica
Uma obra (narrativa ou poética), para ser considerada arte literária, precisa criar formas de expressão “inusitadas, originais e de grande repercussão na própria história literária”. Neste caso, a clássica expressão “Era uma vez...”, que abre grande parte dos contos, além de original, tem grande impacto na memória afetiva de gerações, sendo empregada sempre que se quer anunciar a leitura ou mesmo o mistério.
A arte literária é caracterizada pela presença, em narrativas e nos poemas, de linguagem metafórica. Em alguns casos, de palavras ou expressões inventadas, que produzem tamanho efeito no leitor que ele acaba acreditando nelas, vivendo-as, multiplicando-as.
Como exemplo, temos o invencível traço de Eva Furnari e seu Pandolfo: "No reino da Bestolândia, havia um jovem príncipe chamado Pandolfo. Pandolfo nada entendia de amor ou amizade...". Pronto, já entrei no reino, visualizei Pandolfo, ele é jovem, não entende nada de amor ou amizade, o reino existe e quero saber o que será dito na próxima página. É Eva Furnari e suas invencionices. Literatura pura, da mais alta qualidade.

3º Critério: Inesgotabilidade
Outra importante razão para uma narrativa ou poesia ser considerada arte literária é sua “inesgotabilidade”, ou seja, é possível fazer diferenciadas e infindáveis leituras de uma mesma narrativa. Leituras e recontos, possibilidades interpretativas e vínculo com ostras artes, faz de um poema, por exemplo, uma peça de teatro, uma canção, uma inspiração.

4º Critério: valor histórico e documental
A arte literária precisa dizer de um tempo, revelar modos de viver e pensar em determinada época, guardar uma forma de referenciar-se ao seu tempo/espaço. Exemplo: No Brasil, podem-se considerar obra literária as narrativas de Monteiro Lobato, pois possuem suas características indispensáveis: longevidade, tratam de temas humanos com intensidade, registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu tempo, criaram formas de expressão inusitadas, originais e de grande repercussão, tem valor histórico e documental e oferecem uma possibilidade inesgotável de leituras...

5º Critério: Magia
Textos literários infantis são os que prevêem a existência de elementos mágicos, fantásticos, inverossímeis que, na trama, são absolutamente possíveis de existir, como a pó de pirlimpimpim...
A presença da magia ou de um elemento mágico, a necessidade da imaginação ou faz-de-conta, a ancestralidade ou pertencimento, a localização geográfica e temporal indefinida ou tempo/espaço inexistente, a literariedade ou linguagem metafórica e a ludicidade ou mentira/verdade é um forte critério para a escolha de uma obra para crianças. Assim, textos literários infantis são textos que estabelecem uma conexão imediata com a imaginação, com o mundo que existe como desejo, possibilidade. O texto literário nos remete a situações inusitadas e podemos, através dele, transgredir (a ordem, as leis, as regras, as idades) ou mesmo só pensar que se faz isso. Através dele podemos brincar de ser outro, mais novo, mais velho, com poder, sem nenhum, com muito ouro, com quase nada...

6º Critério: vínculo com a ancestralidade
Textos literários infantis pertencem à arte literária quando apresentam vínculo com nossa condição de humanos em sociedade. O texto literário nos faz pertencer e nos ensina que, um dia, em torno do fogo, ouvíamos e contávamos e, desse modo, inventávamos a linguagem...

7º Critério: fazer pensar
A arte literária não é “alegria, alegria”...
A arte literária infantil tem o compromisso, por arte, de unir o lúdico (jogo de deleitar-se) com o útil (jogo de posicionar-se). Como humanos, espécie que através da linguagem se representa,  temos essa premência que é simbolizar. Nas palavras de Bagno (2014), a linguagem é uma faculdade cognitiva
“... exclusiva da espécie humana que permite a cada indivíduo representar e expressar simbolicamente sua experiência de vida, assim como adquirir, processar, produzir e transmitir conhecimento. Nós somos seres muito particulares, porque temos precisamente essa capacidade admirável de significar, isto é, de produzir sentido por meio de símbolos, sinais, signos, ícones etc. Nenhum gesto humano é neutro, ingênuo, vazio de sentido: muito pelo contrário, ele é sempre carregado de sentido, nos mais variados graus, e cabe justamente à nossa capacidade de linguagem interpretar o sentido implicado em cada manifestação dos outros membros da nossa espécie (BAGNO, 2014[3]).

Concluindo:
Textos literários infantis são brinquedos inventados por nós, através de um mecanismo incrível, o nosso cérebro e nossa imaginação. Não há máquina que imite, é criação pura, invencionice, bobices e gostosuras, como diz Fanny Abramovich. Doce e útil, a literatura tem o compromisso de encantar o leitor e, ao mesmo tempo, torná-lo mais culto, mais perspicaz, mais inteligente, mais curioso.
Lembre: uma obra literária não tem a tarefa de informar, embora possa fazer isso; não tem como compromisso educar, apesar de poder. A obra literária tem compromisso com a imaginação, a emoção, a estética.
E um pensamentozinho, ora sim, ora também.

Além do literário: dicas para a escolha de livros.
1.    Ler antes de comprar. Sempre. É a dica mais importante;
2.    Conheça o seu público ou para quem você vai ler. Isso ajuda a escolher um gênero, um título, um autor...
3. Autor: escolha um brasileiro respeitado, indicado por outros leitores, premiado, que as crianças gostam...
4.    Gênero: narrativas, poesia, fábulas, lendas, cordel, história em quadrinhos, terror, biografias, abecedários, recontos...
5.    Editora: Brasileiras que investem em formato, cor, durabilidade, evidência de autoria, qualidade do texto e da imagem, durabilidade do impresso, paratextos de qualidade...
6.    Ouça quem indica: se um conhecedor indicou, se tu confias em quem leu, se há uma lista que a professora disponibilizou, ouça, considere, leve em conta, vá por eles. Quem lê adora indicar livros aos demais, mas não custa nada ler antes...
7.    Preço: entre dois bons livros, escolha aquele que tem custo/benefício mais evidente. Exemplo: Um livro com 92 poemas é mais importante que um livro com apenas uma narrativa se os dois custam a mesma coisa ou tem preços similares;
8.    Ilustração: um livro com um excelente ilustrador tem seu valor. Afinal, a arte literária pode ser acompanhada das artes plásticas...
9.    Apaixonamento: confie em você. Ao apaixonar-se por um livro, indique, releia, faça circular.




[1]  Estabelecido por Ricciotto Canudo, o "Manifesto das Sete Artes” (1911) foi publicado em 1923. Ricciotto Canudo nasceu na Itália em 1877 e faleceu em Paris, em 1923. Teórico e crítico de cinema, em 1911 publicou, em Paris, um artigo intitulado "La Naissance d'un sixième art. Essai sur le cinématographe", considerado como o primeiro texto no qual se define o cinema como uma arte, a sétima arte, na qual se resumem as demais artes.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Leitura: um pacto entre autor e leitor.

Ler é intenção – do autor – e realização – pelo leitor...


       Ao ouvir o Manifesto por um Brasil Literário  pela voz doce de Bartolomeu Campos de Queirós, fiquei intrigada pela sua curiosidade: a literatura não escrita, desconhecida, não registrada. Para ele, é aquela que brota da relação entre o escritor (que intenciona, sonha, se expressa, registra, publica, afirma o que pensa em palavras) e o leitor, em contato com o sonhado pelo outro. Em suas palavras, "é no mundo possível da ficção que o homem se encontra realmente livre para pensar, configurar alternativas, deixar agir a fantasia". E mais, é "na literatura que, liberto do agir prático e da necessidade, o sujeito viaja por outro mundo possível. Sem preconceitos em sua construção, daí sua possibilidade intrínseca de inclusão, a literatura nos acolhe sem ignorar nossa incompletude" (QUEIRÓS, 2009).
       Pensando em uma questão que me foi feita em sala de aula - a respeito das diferentes formas de leitura -, posso afirmar que a leitura não é somente a decodificação de um texto, embora muito da leitura depende disso. Pode e deve ser entendida como “um processo de compreensão abrangente, cuja  dinâmica envolve componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, fisiológicos, neurológicos, bem como culturais, econômicos e políticos” (MARTINS, 1994). Essa concepção revela que somos leitores antes mesmo do ingresso na vida escolar, pois a "leitura do mundo" antecede e extrapola a decodificação dos signos linguísticos organizados pela sintaxe de nossa língua. Assim, ler é um processo de desvelamento de sentidos presentes nos impressos e na relação que estabelecemos com eles, uma vez que ler depende do escrito e de quem o busca decifrar.
Bartolomeu á sábio ao afirmar que a leitura tem um poder alocado na "fundação reflexiva". Ela "possibilita ao leitor dobrar-se sobre si mesmo e estabelecer uma prosa entre o real e o idealizado" e, desse modo, democratiza "o poder de criar, imaginar, recriar, romper o limite do provável".
Outra das verdades anunciadas por Bartolomeu é de que "A leitura literária é um direito de todos", embora ressalte que este direito ainda não está escrito. Para o escritor mineiro, a literatura tem a capacidade de "abrir um diálogo subjetivo entre o leitor e a obra, entre o vivido e o sonhado, entre o conhecido e o ainda por conhecer". E é esse dia´logo subjetivo que lhe interessa, essa convivência silenciosa e sentida, barulhenta e não revelada, criadora e segredada que compõe o pacto entre autor e leitor, no meu ponto de vista. Ler, então, é um pacto. É intenção – do autor – e realização – pelo leitor. Bartolomeu esclarece:
"Considerando que este diálogo das diferenças, inerente à literatura, nos confirma como redes de relações; reconhecendo que a maleabilidade do pensamento concorre para a construção de novos desafios para a sociedade; afirmando que a literatura, pela sua configuração, acolhe a todos e concorre para o exercício de um pensamento crítico, ágil e inventivo; compreendendo que a metáfora literária abriga as experiências do leitor e não ignora suas singularidades" (QUEIRÓS, 2009).

     Ler, assim, é tornar a humanidade e a cada um de nós "investidores na artesania do mundo" e, por isso mesmo, tornar a todos, em grupo, "uma sociedade em que a qualidade da existência humana é buscada como um bem inalienável". Nas palavras de Bartolomeu, a "liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são elementos que fundam a infância" o que explica/revigora os laços entre a literatura e a criança e, "possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais elementos, que inauguram a vida, como essenciais para o seu crescimento". Para finalizar, recorro ao sábio:
"É indispensável a presença da literatura em todos os espaços por onde circula a infância. Todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora. O apoio à proposição de todos que assim compreendem a função literária, é indispensável. Se é um projeto literário, é também uma ação política por sonhar um País mais digno" (QUEIRÓS, 2009).



Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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