Cristina Maria Rosa
Ao escolhermos uma obra a ser lida para nossas crianças na escola, precisamos saber o que ler, para que vamos ler, qual o gênero mais adequado, qual o autor e tema escolhido entre outros critérios.
O que são critérios?
A palavra ou termo critério significa
"julgar" e pode ser entendido como juízo, discernimento ou mesmo a
opinião de uma pessoa. É uma condição subjetiva que possibilita optar, escolher
e, por isso, por definir nossas escolhas, é considerado um juízo de
valor.
Utilizamos todos os dias juízos de valor. Pessoais, quando escolhemos, por
exemplo, tomar ou não banho, comer uma salada ou um sorvete. E
públicos, quando preferimos descartar ou não papel pela janela do carro/ônibus na
via, separar ou não o lixo orgânico do reciclável, quebrar ou não galhos de uma árvore em uma praça da
cidade.
As escolhas pessoais podem ser de qualquer tipo, pois implicam em uma
dimensão individual em que, supostamente, apenas o sujeito será beneficiado ou
prejudicado. É o caso de não tomar banho...
As escolhas – juízos de valor – públicas, no entanto, implicam em uma
dimensão para além do indivíduo, ou seja, envolvem os demais: nossa família,
nossos amigos, nosso vizinhos, a sociedade como um todo. Assim, um juízo
de valor externado em público implica em, necessariamente, considerar o impacto
de nossas opiniões e escolhas na vida dos demais em sociedade. Implica em, por
isso mesmo, considerar o que os outros pensam a respeito do mesmo assunto.
Mas eu estava escrevendo sobre critérios...
Critério também é um
requisito, ou seja, uma condição para determinado objetivo. Há critérios para
se definir uma obra literária, por exemplo, e é disso que trato neste pequeno
texto. Uma obra literária, para ser considerada como tal, precisa ser, em
primeiro lugar, representante da arte. A arte literária.
Como tu já sabes, a arte é representada
por manifestações que nós, humanidade, consideramos ou nomeamos como
especiais, dignas de admiração, de respeito, culto. Arte é uma habilidade, uma técnica,
uma condição. É dirigida
para a execução de uma finalidade de forma consciente, controlada, racional. No
entanto, a arte é considerada fruto
da inspiração, de imaginação,
da capacidade de ver mais que
os demais e indicar, a si
mesmo e aos demais, essa capacidade, representando-a.
Na manifestação dessas "artes" todas, está implícita a manufatura
humana, ou seja, há um autor, um inventor, um “fazedor” – alguém
que transformou as informações iniciais que possuía em uma obra,
um produto. O produto pode ser um som, um movimento, uma cor, um volume, uma
representação, uma palavra, um olhar...
As artes – Música, Dança/Coreografia, Pintura, Escultura/Arquitetura,
Teatro, Literatura e Cinema – são sete. No entanto, há outras formas
expressivas também consideradas artes que surgiram posteriormente às demais e
foram “adicionadas” à numeração proposta pelo manifesto[1].
São elas: a arte da imagem (fotografia e seus desdobramentos), a Arte da
cor/palavra/imagem (Quadrinhos), os Games (vídeos) e a Arte digital.
E o que é arte literária?
É a arte da
palavra, materializada pela
expressão do pensamento do autor/autora. Para Graça Paulino, a arte literária é
representada pelo contato – pacto – entre o autor e o leitor. Um pacto do qual
se usufrui intensamente. Em suas palavras:
A leitura se diz literária quando a ação do leitor constitui predominantemente uma prática cultural de natureza artística, estabelecendo com o texto lido uma interação prazerosa. O gosto da leitura acompanha seu desenvolvimento, sem que outros objetivos sejam vivenciados como mais importantes, embora possam também existir. O pacto entre leitor e texto inclui, necessariamente, a dimensão imaginária, em que se destaca a linguagem como foco de atenção, pois através dela se inventam outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas ações, pensamentos, emoções (PAULINO, 2014[2]).
Se a literatura é uma arte e há diferentes autores, obras, gêneros, como
escolher o que é a melhor expressão da artesania
humana para os pequenos na escola?
Os critérios literários: um pouquinho de cada e da melhor qualidade...
1º Critério: Longevidade
Contos de Fada, Contos
Maravilhosos ou Contos de Encantamento são as narrativas
compiladas da oralidade por Charles Perrault (1628-1703) e pelos Irmãos Grimm –
Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) – e as narrativas criadas por Hans
Christian Andersen (1805-1875), preponderantemente. Representam a arte
literária pela longevidade. São narrativas que persistem na “memória coletiva”
e tem sido atualizados “por sucessivas leituras” e mesmo recontações e
reescrituras.
A característica mais forte dos contos maravilhosos é a abordagem de temas
humanos, como o amor, e nele a inveja, o ciúme, as disputas e as violações e o
medo – do abandono, da solidão, da crueldade e da morte, entre outros. Esses
“temas”, tratados “de maneira intensa, original e múltipla” encantam, produzem
o desejo de serem desvendados, desvelados desde tenra idade e por isso, merecem
integrar o repertório para as crianças.
2º Critério: expressão inusitada, linguagem metafórica
Uma obra (narrativa ou poética), para ser considerada arte literária,
precisa criar formas de expressão “inusitadas, originais e de grande
repercussão na própria história literária”. Neste caso, a clássica
expressão “Era uma vez...”, que abre grande parte dos contos, além de original,
tem grande impacto na memória afetiva de gerações, sendo empregada sempre que
se quer anunciar a leitura ou mesmo o mistério.
A arte literária é caracterizada pela presença, em narrativas e nos
poemas, de linguagem metafórica. Em alguns casos, de palavras ou expressões
inventadas, que produzem tamanho efeito no leitor que ele acaba
acreditando nelas, vivendo-as, multiplicando-as.
Como exemplo, temos o invencível traço de Eva Furnari e seu Pandolfo:
"No reino da Bestolândia, havia um jovem príncipe chamado Pandolfo.
Pandolfo nada entendia de amor ou amizade...". Pronto, já entrei
no reino, visualizei Pandolfo, ele é jovem, não entende nada de amor ou
amizade, o reino existe e quero saber o que será dito na próxima página.
É Eva Furnari e suas invencionices. Literatura pura, da mais alta
qualidade.
3º Critério: Inesgotabilidade
Outra importante razão para uma narrativa ou poesia ser considerada arte
literária é sua “inesgotabilidade”, ou seja, é possível fazer diferenciadas e
infindáveis leituras de uma mesma narrativa. Leituras e recontos,
possibilidades interpretativas e vínculo com ostras artes, faz de um poema, por
exemplo, uma peça de teatro, uma canção, uma inspiração.
4º Critério: valor histórico e documental
A arte literária precisa dizer de um tempo, revelar modos de viver e pensar
em determinada época, guardar uma forma de referenciar-se ao seu tempo/espaço. Exemplo: No Brasil, podem-se considerar
obra literária as narrativas de Monteiro Lobato, pois possuem suas
características indispensáveis: longevidade, tratam de temas humanos com
intensidade, registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu tempo,
criaram formas de expressão inusitadas, originais e de grande repercussão,
tem valor histórico e documental e oferecem uma possibilidade inesgotável de
leituras...
5º Critério: Magia
Textos literários infantis são os que prevêem a existência de elementos
mágicos, fantásticos, inverossímeis que, na trama, são absolutamente possíveis
de existir, como a pó de pirlimpimpim...
A presença da magia ou de um elemento mágico, a necessidade da imaginação
ou faz-de-conta, a ancestralidade ou pertencimento, a localização geográfica e
temporal indefinida ou tempo/espaço inexistente, a literariedade ou linguagem
metafórica e a ludicidade ou mentira/verdade é um forte critério para a escolha
de uma obra para crianças. Assim, textos literários infantis são
textos que estabelecem uma conexão imediata com a imaginação, com o mundo que
existe como desejo, possibilidade. O texto literário nos remete a
situações inusitadas e podemos, através dele, transgredir (a ordem, as leis, as
regras, as idades) ou mesmo só pensar que se faz isso. Através dele
podemos brincar de ser outro, mais novo, mais velho, com poder, sem
nenhum, com muito ouro, com quase nada...
6º Critério: vínculo com a ancestralidade
Textos literários infantis pertencem à arte literária quando apresentam
vínculo com nossa condição de humanos em sociedade. O texto
literário nos faz pertencer e nos ensina que, um dia, em torno do
fogo, ouvíamos e contávamos e, desse modo, inventávamos a linguagem...
7º Critério: fazer pensar
A arte literária não é “alegria, alegria”...
A arte literária infantil tem o compromisso, por arte, de unir o lúdico
(jogo de deleitar-se) com o útil (jogo de posicionar-se). Como humanos, espécie
que através da linguagem se representa, temos essa premência que é
simbolizar. Nas palavras de Bagno (2014), a linguagem é uma faculdade cognitiva
“... exclusiva da espécie humana que permite a cada indivíduo
representar e expressar simbolicamente sua experiência de vida, assim como
adquirir, processar, produzir e transmitir conhecimento. Nós somos seres muito
particulares, porque temos precisamente essa capacidade admirável
de significar, isto é, de produzir sentido por meio de símbolos,
sinais, signos, ícones etc. Nenhum gesto humano é neutro, ingênuo, vazio de
sentido: muito pelo contrário, ele é sempre carregado de sentido, nos mais
variados graus, e cabe justamente à nossa capacidade de linguagem interpretar o
sentido implicado em cada manifestação dos outros membros da nossa espécie
(BAGNO, 2014[3]).
Concluindo:
Lembre: uma obra literária não tem a tarefa de informar, embora possa fazer isso; não tem como compromisso educar, apesar de poder. A obra literária tem compromisso com a imaginação, a emoção, a estética.
E um pensamentozinho, ora sim, ora também.
Além do literário: dicas para a escolha
de livros.
1.
Ler antes de comprar. Sempre. É a dica mais
importante;
2. Conheça o seu público ou para quem você vai ler. Isso ajuda a escolher um gênero, um título, um autor...
3. Autor: escolha um brasileiro respeitado, indicado por outros leitores, premiado, que as crianças gostam...
2. Conheça o seu público ou para quem você vai ler. Isso ajuda a escolher um gênero, um título, um autor...
3. Autor: escolha um brasileiro respeitado, indicado por outros leitores, premiado, que as crianças gostam...
4.
Gênero: narrativas, poesia, fábulas, lendas, cordel, história
em quadrinhos, terror, biografias, abecedários, recontos...
5.
Editora: Brasileiras que investem em formato, cor,
durabilidade, evidência de autoria, qualidade do texto e da imagem,
durabilidade do impresso, paratextos de qualidade...
6. Ouça quem indica: se um conhecedor indicou, se tu confias em quem
leu, se há uma lista que a professora disponibilizou, ouça, considere, leve em conta, vá por eles. Quem lê
adora indicar livros aos demais, mas não custa nada ler antes...
7.
Preço: entre dois bons livros, escolha aquele que tem custo/benefício
mais evidente. Exemplo: Um livro com 92 poemas é mais importante que um livro
com apenas uma narrativa se os dois custam a mesma coisa ou tem preços
similares;
8.
Ilustração: um livro com um excelente ilustrador tem seu
valor. Afinal, a arte literária pode ser acompanhada das artes plásticas...
9.
Apaixonamento: confie em você. Ao apaixonar-se por um livro,
indique, releia, faça circular.
[1] Estabelecido
por Ricciotto Canudo, o "Manifesto das Sete Artes” (1911) foi publicado
em 1923. Ricciotto Canudo nasceu na Itália
em 1877 e faleceu em Paris, em 1923. Teórico
e crítico de cinema, em 1911 publicou,
em Paris, um artigo intitulado "La Naissance d'un sixième art. Essai
sur le cinématographe", considerado como o primeiro texto no qual se
define o cinema como uma arte, a
sétima arte, na qual se resumem as demais artes.
Um comentário:
Muito bom, esclarecedor, ótimo texto!
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