segunda-feira, 6 de junho de 2011

As mulheres inventadas do ficcionista Pedro Wayne

Em um Rio Grande profundo – repleto de contradições, pleno de invenções – produzir o novo, o belo, o revolucionário na literatura e/ou fora dela, foi tarefa para poucos. Um dos que se tornou capaz disso foi Pedro Wayne. Sua obra é testemunho. A posição inquestionável de Wayne na literatura do Rio Grande do Sul advém de seu protagonismo – no tempo e no espaço –, de sua coragem ao desafiar a ordem vigente – os produtores rurais e sua economia decadente – e, com certeza, de sua condição de homem culto, terno, familiar, trabalhador, amigo. Mas, acredito, vem, sobretudo, por apresentar um feminino inexistente na ficção. Teria existido nas ruas da Bagé de Pedro Wayne?
A mulher é o objeto por excelência da poesia de Pedro Wayne. Em três obras – Versos Meninósos e a Lua, Dina e Tropel de Aflições, publicados respectivamente em 1931, 1935 e 1947 – a mulher aparece como desejo, realização do amor e desespero pela perda. Já nos romances Xarqueada e Almas Penadas, o ficcionista revela-se um cuidadoso observador do universo feminino e inventa mulheres frágeis e fragilizadas, mas também fúteis e desprendidas, companheiras e traidoras, amorosas e indiferentes, enfim, mulheres de todos os tipos permitidos ao Romance enquanto gênero.
Quando se observa o cenário da ficção no Rio Grande do Sul nas primeiras três décadas do século XX, percebe-se o ineditismo de Wayne: não há personagens femininas na escrita literária e poucas escritoras mulheres no Rio Grande do Sul. Regina Zilberman (1985) credita essa não-presença à situação bastante secundária a que foi submetida a mulher na sociedade sulina, sobretudo enquanto durou o domínio da economia pastoril e do sistema patriarcal no campo.
Ao analisar Xarqueada, “um dos mais importantes romances brasileiros da década de 1930”, Zilberman (2009, p. 13-14) considera que Wayne “não se limita a constatar as razões da decadência de certo sistema econômico, exilando o campeiro (...) e o modo autocrático e centralizador do exercício do poder”. Para a pesquisadora, ele “busca pensar a questão desde uma perspectiva política progressista, o que ainda não se instalara plenamente no imaginário da literatura do Rio Grande do Sul”.

Mulheres em Xarqueada
As mulheres de Xarqueada – Guriazinha, Vera, Daniela e Tia Antonia – são protagonistas, de mesma envergadura que os personagens homens. Diferentemente deles, no entanto, ainda não haviam sido inventadas na ficção regional. São elas que costuram a trama, que promovem e financiam sua existência. Xarqueada prescinde das mulheres que a habitam; a trama não sobreviveria sem elas. O herói Luis, o vilão Dionísio, a expropriação e a exploração humana e as relações do sistema de produção na charqueada não seriam tão plausíveis sem as mulheres que as sofrem. E é isso que torna a ficção de Wayne inusitada e moderna.

Mulheres em Almas Penadas
Três são as mulheres envolvidas com o personagem central de Almas Penadas, o poeta Hélio: Tona, Neusa e Joaninha Pepé. No romance, Wayne oferece um panorama do universo feminino: a sedução, a capacidade intelectual e a fragilidade. Mais que isso, oferece aos leitores as consequências de gravitar em torno delas. Através dos embates vividos pelo personagem com essas mulheres possíveis, o ficcionista cria a complexidade das relações, inexistente na ficção gaúcha até então.

Conclusão
Pedro Wayne foi um inventador. Competente, apaixonado e à frente de seu tempo. As personagens mulheres que invadem seus dois romances, inventadas por Wayne e inventariadas neste artigo, são repletas de poesia e verossimilhança. A qualidade, diversidade e intensidade dessas figuras literárias, forjadas em um tempo em que as mulheres – enquanto gênero e também na ficção – estavam sendo “inventadas”, é que produz o bom e o novo em sua obra.
Mulheres profundamente diferentes, de comportamentos complexos e adultos, Guriazinha, Vera, Daniela, Tia Antonia, Tona, Neusa e Joaninha Pepé são uma amostra do feminino na ficção de Pedro Wayne, um feminino impossível de ser ignorado, tanto pela qualidade literária quanto pela integridade psicológica. Se Wayne conseguiu “pensar a questão desde uma perspectiva política progressista, o que ainda não se instalara plenamente no imaginário da literatura do Rio Grande do Sul”, inequivocamente inaugura o rol de personagens femininas na literatura sulina, antes mesmo de Ana Terra e as demais de Verissimo.


Artigo integral: Revista Memória em Rede, Pelotas, v.2, n.5, abr./jul.2011. ISSN 2177-4129. Captura em www.edu.br/ich/memoriaemrede

Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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