domingo, 14 de dezembro de 2008

"Queres Ler?" na História da Cultura Escrita

Três dimensões constituem, preponderantemente, a historiografia a respeito da cultura escrita no Brasil: a escolarização como o processo por excelência de entrada nessa cultura; a produção e difusão do impresso como principais evidências de usos da escrita e; as taxas de alfabetização como o indicador privilegiado da existência de usuários da língua escrita (GALVÂO, 2007, p. 9-10). Um dos impressos que obteve um significativo sucesso (considerado inovador, eficiente e adotado oficialmente por muitos anos) foi a Cartilha “Queres Ler?”.O livro de leitura “Queres ler?” já recebeu música[1] e pelo menos uma análise na história da alfabetização (PERES, 1999). Escrita pelo professor uruguaio José Henriques Figueira “Quieres Leer?” foi adaptado pelas professoras Olga Acauan e Branca Diva Pereira de Souza, após submissão à “Commissão de exame de obras pedagógicas”. Aprovada em 1924, foi “adoptada em innumeros estabelecimentos de ensino público e particular” (ACAUAN & SOUZA, 1935). Apresentado pelo relator Dr. Antonio Henriques de Casaes, ex-docente de Pedagogia da Escola Complementar, o livro de leitura foi considerado parte do sucesso obtido pelo ensino na capital do Uruguai[2] e foi defendido com o intuito de ser um mecanismo que promoveria a “excellencia de um processo de leitura” (CASAES, 1924).
Em um pequeno intróito, as autoras atribuem ao autor “rasgos de fidalguia e desinteresse cavalheiroso” por autorizar a adaptação. Consideram que esse gesto “nascido de um espírito orientado pelas odiernas idéas pedagógicas” pois havia, por parte do professor José Henriques, a preocupação “pelo complexo problema do engrandecimento social”. As autoras consideram ainda que Figueira “revela generoso empenho de ver triunphante, além das fronteiras uruguaias, a sua nobre cruzada de ideaes em pról da educação do povo” e que essa, a educação do povo seria a “causa do porvir” (ACAUAN & SOUZA, 1935).Na edição de 1935 há a reprodução, logo depois das palavras iniciais das adaptadoras, do prólogo escrito por José Henriques Figueira em 1919, quando recebeu das autoras a adaptação para analisar. Nesse prólogo, Casaes considera a adaptação ao idioma português “bien realizado” e, para além dos motivos pedagógicos que, com certeza “facilitará el aprendizaje educativo de la lectura y escritura a los niños del Brasil” essa adaptação é “um nuevo motivo de la simpatia sincera que une El Brasil AL Uruguai, naciones vecinas y muy buenas y queridas amigas” (CASAES, 1919).
Considerado um livro de leitura inovador e bem sucedido, “Quieres Leer?” é anunciado por suas adaptadoras como um “Livro de Leitura e escripta corrente” fundado “na sciencia mental e no estudo da criança e composta de accordo com os princípios de espontaneidade, de autonomia e correlação natural das matérias (associação synergica) e dos methodos intuitivo e analytico-synthetico phonico de palavras e frases fundamentaes”. Além disso, na capa do Primeiro Livro se encontra a descrição do que poderia ser encontrado nas próximas páginas: “Lições e exercícios normaes de Leitura-escripta corrente e orthografia usual” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. XV).
Casaes, parecerista de “Quieres Leer?” ressalta as características do livro de Leitura afirmando que sempre lhe pareceu que
“a leitura e a escripta deviam ser companheiros de jornada: que a leitura precisava começar, não por simples sons, que nada significam, mas por palavras normaes, exprimindo coisas que a criança podia ver, tocar, palpar, observar; que os exercícios deveriam respeitar a ordem de difficuldades, sem precipitação, nem pressa; que a leitura, aproveitando a curiosidade natural da criança, precisava favorecer sua iniciativa, respeitar sua autonomia, ensinal-a a associar as idéias expressas pelas palavras que lia; que pela repetição de exercícios variados, afim de evitar o aborrecimento e a fadiga que a monotonia gera, se adquirisse o habito de ler; que os meninos demonstrassem sempre haverem comprehendido a matéria lida e, logo que se tronassem capazes e possuíssem certo vocabulário, dessem novos exemplos, fizessem novas applicações e observações, reveladoras do seu livre trabalho mental; que os exercícios de prosódia e orthographia, indispensáveis á leitura e á escripta, tivessem durante certo tempo, caracter meramente prático; que a imagem, desde o início, fosse companheira da Idea” (CASAES, 1924, p. VIII).
O primeiro livro de leitura “Queres ler?” traz, como conselho pedagógico fundamental a seguinte nota:
“Deve o professor pedir aos alumnos que estudem as principais estampas deste livro e que expliquem de viva voz o que as mesmas representam. Deste modo, as crianças comprehenderão que as figuras constituem uma fórma de linguagem escripta e aprenderão a ler o que o artista quis expressar com ellas” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. XVII).E para complementar, as autoras oferecem aos professores uma orientação bastante inovadora para a época, um tempo conhecido na historiografia como de silêncio na escola: “Utilizem-se as estampas deste livro para exercícios de conversação” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. XVII).

Podendo ser vinculado ao método analítico pelo escolha de palavras “normais” e “com sentido” e pela concepção de que se aprende a partir de conceitos
[3] o Livro de Leitura “Queres Ler?” também pode ser considerado de orientação sintética, uma vez que a escolha das palavras é aleatória (inicia na figura/palavra ovo), a metodologia de estudo das palavras principia pela visualização das vogais componentes da palavra (no caso da palavra ovo, a vogal o) e, logo a seguir, desemboca na decomposição da palavra em sílabas recombináveis (como fava + ovo = favo). Além disso, o livro de leitura apresenta uma orientação fonológica (universo de palavras de valor sonoro similar como ovo, ova, uva, luva, fava, favo, fala). No entanto, o que se apresenta como foco e metodologia de aprendizagem é a idéia de memorização, via repetição. Essa “orientação” pode ser observada em mais um dos conselhos das adaptadoras:

“O professor deve (...) escrever várias vezes no quadro negro a palavra ovo e procurar que os alumnos a leiam em sua unidade e a escrevam, primeiro por cópia e logo depois de memória. Proceda-se de igual modo com a palavra uva. Após esses exercícios os alumnos lerão essa lição no livro com a maior independência e individualmente” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. 1I).

Nas orientações é clara a idéia de que não se deve proceder a uma análise das “partes” da palavra: “Não se proceda ainda a nenhum exercício de analyse, pois se trata principalmente de visualizar éstas duas palavras básicas em sua unidade, isto é de fixar a imagem visual, (idéa de conjuncto e analyse-syntese empírica ou subconsciente)” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. 1).

A repetição das palavras aprendidas, em termos de escrita entre as crianças é indicada como devendo ser oral, simulada, escrita, com letra manuscrita e depois de imprensa. Exercícios para os “atrasados” também são sugeridos, contradizendo a orientação de só passar à lição seguinte quanto as crianças reconheçam as palavras ensinadas:

“Usa-se a letra manuscripta, primeiro, em seguida, letra de imprensa. (...).Logo que as crianças possam reconhecer as palavras ovo e uva, passar-se-á á lição seguinte Os exercícios de Montessori, nos quaes as crianças percorrem com a gemma dos dedos o contorno das palavras e letras que vão estudando, umas vezes, vendo o que fazem, outras com os olhos fechados, têm utilidade para as crianças atrasadas. Também é útil o exercício de escrever ‘no ar’ com os olhos abertos ou fechados, as palavras ou letras que vão aprendendo” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. 1I).
Notas:[1] A canção “Guri” de João Batista Machado e Julio Machado Neto refere-se ao livro “Queres Ler?” como condição para aprender a escrever. A música foi composta em, e classificou-se no festival nanan.[2] No estudo que denomina “A produção e uso de livros de leitura no Rio Grande do Sul: Queres Ler? E Quero Ler” Peres (1999) afirma que foi a criação dos colégios elementares que impulsionaram, no início do século XX, uma missão especial de professores à Montevidéu, cujo intuito era observar o funcionamento das escolas primárias.[3] As autoras recomendam, a cada nova lição, que “O professor deve falar sobre os objetos que as figuras representam” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p.1).

domingo, 7 de dezembro de 2008

Carta ao Mestre: a Pedagogia de JSLN

Dando prosseguimento às pesquisas sobre o Manuscrito “Artinha de Leitura” de JSLN, elaborei uma pequena análise da “Carta ao Mestre” que o escritor Pelotense deixou grafada logo no início de sua cartilha. Manuscrita e parcialmente ilustrada em 1907 e dedicada “as escolas urbanas e ruraes”, “Artinha da Leitura” foi encaminhada, em julho de 1908, ao Conselho de Instrucção Pública do Rio Grande do Sul que a rejeitou com as seguintes palavras:

“Sobre a cartilha primaria ‘Serie Brasiliana’, em manuscrito, de J. Simões Lopes Netto, entende o Conselho que, não podendo o Estado impõr a orthographia seguida pelo autor, deve ser reparado o trabalho por estar em desacõrdo com o Regulamento e não obedecer ao criterio de ensino” (Ata da 6ª Sessão, 25/07/1908).

Durante esses cem anos de desaparecimento o manuscrito recebeu diferentes nomes: “livro didactico-primário” por João Simões Lopes Neto (1904); “cartilha primária” pelo Conselho de Instrução Pública (1908); “livro sobre motivos rio-grandenses intitulado Artinha de Leitura” por Carlos Reverbel (1945); “Eu no Colégio” por Manoelito de Ornellas em 1955; “O verdadeiro Terra Gaúcha” por Carlos Francisco Sica Diniz (2003) e “livro de leitura” por Aldir Schlee (2006). Encontrado em novembro de 2008 e depositado aos cuidados do IJSLN, o manuscrito pode finalmente ser conhecido e estudado, uma vez que foi digitalizado pelo NDH/UFPel.
A “Carta ao Mestre” que se encontra na página 4 do manuscrito, entre outras preciosidades, indica que “Ler e escrever devem andar de par”. João Simões, então, sugere ao mestre que “logo de começo, faça por que o aprendiz vá ajeitando-se, educando a mão, os dedos, a segurar o lápis. Podendo ser, faça-o praticar com o lápis e papel, este em pequenas folhas avulsas; a chamada pena de pedra e a louza tornam a mão pezada. Vijie em que durante o trabalho, o aprendiz guarde uma posição hijienica: natural e cômoda” (JSLN, 1907, p.4).
Para o escritor, a letra e seu traçado eram importantes, tanto que escreveu:

“Durante o primeiro tempo somente exercicios de linhas, retas e curvas, e ângulos. Procure que essa tarefa inicial vá sendo bem feita e que para o deante o aprendiz escreva sempre com boa letra, simples, sem arabescos, alinhada e em pé (reta). A escrita reta ou em pé corresponde á atitude que a criança toma espontaneamente quando escreve pela primeira vez; a escrita reta que é um importante auxiliar para o ensino da leitura, é também mais lejível que a inclina da e ocupa menos espaço” (JSLN, 1907, p.4).

Embora afirme que ler e escrever “devem andar de par”, quase todas as indicações do escritor são no sentido da escrita, sem arabescos, clara, ou seja, em busca de um treino gráfico, o que pode ser observado no fragmento a seguir:

"Depois - no segundo, terceiro mez – vá dando-lhe a fazer as letras de cursivo e romanas, como exercicio de copia; dê-lhe também singelos modelos de desenhos, sem sombra, ou que elle os trace de memória: uma pá, uma chave, cadeado, relojio, chaleira, etc. Quando bastante adestrado em copiar letras e silabas, começará a escrever sob ditado e assim apura o ouvido e a atenção. Faça-o sempre ler o que escreveu" (JSLN, 1907, p. 4).

Em nota de rodapé JSLN apela para o bom senso do mestre, tanto no que concerne “a duração da aula, distribuição dos trabalhos, horário” bem como a utilização das notas de seu livro. Em suas palavras, “tudo fica subordina ao senso prático, tirocinio e cultivo do mestre” (JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 04).
É interessante conhecer um João Simões que,apesar da pouca escolaridade, indica, nesse livro didático, muito conhecimento a respeito dos processos pedagógicos.

Leitura: Mitos e Lendas

Dizem muitas coisas sobre a leitura.
Uma delas que ler em movimento (no carro, no ônibus, no avião) deixa o sujeito enjoado.
Tenho para mim que enjoado é quem não lê. Haja paciência para aturar um papo furado, desses que iniciam invariavelmente com:
- Friozonho o nosso inverno, não acha?
Outra coisa que dizem da leitura é que ler, com menos luz do que o necessário deixa o sujeito cego. Ta, dizem que a longo prazo...
Cego é quem não lê, esse é que não vê nada. Mais ou menos como aquele sujeito que, ao ser perguntado dos escândalos da política pergunta:
- Em que país?
Dizem também, e isso foi antigamente, que ler cansa a vista.
Cansa a companhia, cansa as pessoas que precisam aturar as certezas do senso comum, todas ditas com um ar de sapiência e com uma mesma fórmula:
- Meu pai aprendeu com o dele e isso eu confirmo...
E logo depois alguma pérola como “Dizem que enterrar um cipó amarrado duas vezes desata todos os problemas do vivente!”
Outra coisa da leitura que dizem é que tem hora e lugar. Isso eu confirmo. Tem hora. Todas. E tem lugar. Qualquer um. Ler é um prazer tão grande que quem gosta, não consegue esperar o lugar ideal nem o momento certo. Mesmo porque esse lugar ideal quase sempre está longe de onde estamos quando acabamos de comprar um jornal, uma revista, um livro novo. E o momento certo ou já passou ou ainda não chegou, então por que não ir dando uma olhadinha no sumário, nas manchetes, naquela foto que eu me interessei?
Tem muito mais coisas que dizem sobre a leitura. Uma é que ela afasta as crianças do brincar, da verdadeira infância. A “verdadeira” infância seria um lugar do fruir alegrias advindas do correr, pular, gritar, dar risada, esconder-se, jogar bola, comer despreocupadamente. Ou seja, para esse conceito, criança é só um corpo alegre que entra em movimento por qualquer motivo.
Eu ainda não encontrei nenhuma criança que risse, corresse, pulasse, jogasse sem imaginar grandes aventuras...
Essas “grandes aventuras” imaginadas não brotam com o suor, com o volume da voz, com a pressa do correr. Essas aventuras fazem parte do complexo universo da inteligência humana capaz de ser racional e imaginária ao mesmo tempo.
A imaginação é mãe de todas as idéias, é filiada ao regime noturno – ao sonho – e produz verdades que entram em choque com o real. É por isso que muitos preferem sonhar em vez de realizar.
Mas como eu ia dizendo, a aventura, ou melhor, a imaginação da aventura, brota desse complexo enigma cinza que temos aprisionado dentro dos ossos da cabeça.
A prisão, por pequena, demanda janelas.
As da alma, como dizem alguns, e as da imaginação, como sabemos todos.
Essas janelas precisam de ar – idéias – e de luz – imagens.
Sabe onde podemos encontrar ar e luz? Nos livros. Ou você não conhece Felpo Filva, o poeta da Eva Furnari?
Por tudo isso é que eu afirmo: Infância combina com leitura. Presente de aniversário, de Natal, de Páscoa, de amizade, de carinho, delembranças, presente, pode ser livro.
Criança não fica traumatizada se entrar em uma livraria. Silêncio combina com criança. Ler no carro, em movimento, ler no ônibus forçando a retina, ler com uma vela, ler, ler combina com Infância. E também com adolescência, com maturidade com terceira idade.
Ler combina, ler está na moda, ler é chique.
Ler indica que você tem pensado ultimamente...
Ler oferece coisas a dizer, ler faz pensar em coisas a serem ditas.
Ler é massa, é maneiro, é tri legal.
Ler é condição de humanidade e, por isso, ler é imprescindível.

Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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