terça-feira, 30 de maio de 2017

Educação sem machismo: o evento

Cristina Maria Rosa

Ocorreu na semana que passou, mais precisamente no dia 26/05, pela manhã, o Seminário Educação Sem Machismo – realização da Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul – com o apoio do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual da UFPel. O objetivo é capacitar educadores para abordar os temas como violências de gênero e machismo, através de ferramentas que promovam a igualdade nos ambientes de ensino como escolas e universidades.
Lideradas pela Deputada Estadual Manuela D’Ávila – Procuradora Especial da Mulher da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul – um grupo de pesquisadoras contribuiu para o diálogo, travado com um público atento e participativo. Na ocasião, a professora Cristina Maria Rosa, docente na FaE/UFPel, abordou o tema: Leitura para meninas: um punho e um útero. A conferência se originou em um trabalho de pesquisa e extensão que vem sendo desenvolvido desde 2016 e que foi publicizado pela primeira vez em no dia oito de março, dia internacional da mulher, em uma atividade intitulada Leituras para Meninas.
Realizado no auditório da Faculdade de Direito, entre as 10 e as 12 horas, a abertura contou com as palavras do Reitor da UFPel, professor Pedro Curi Hallal, que reafirmou a importância do tema à plateia que lotou o auditório. Nele, estudantes das redes de ensino da cidade, convidados, professores e pesquisadores.
Ao usar a palavra para abrir o evento, a Deputada Manuela D’Ávila, Procuradora Especial da Mulher da Assembléia Legislativa, informou que o programa que originou o Seminário foi criado na AL em função de um chamamento da ONU pelo empoderamento das mulheres. Após o primeiro, em Porto Alegre, a demanda pela descentralização ocorreu em todo o Rio Grande do Sul, e a UFPel foi a primeira Universidade a recebê-lo. Em suas palavras: “Precisamos pensar uma educação que não reproduza a desigualdade de gênero. Necessitamos debater a equidade de gênero na escola, no trabalho, no poder e, para desenvolver o País, precisamos envolver igualmente mulheres e homens na economia”.
As demais participantes da mesa foram a Coordenadora de Gênero e Diversidade Sexual da Universidade, Drª. Eliane Pardo, a Coordenadora do Laboratório de Estudos Feministas da UFPEL, Drª. Rejane Barreto Jardim e a Professora de Sociologia da UCPel, Carla Ávila.
Conheça na íntegra, a conferência da professora Cristina Rosa.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Leituras para meninas: o projeto

Cristina MAria Rosa

Projeto
Integrado ao dia internacional da mulher e tendo como foco a leitura literária na escola, apresento aqui resultados parciais do evento “Leitura para Meninas”, iniciado no dia 08/03/2017 e que será desenvolvido pelo GELL - Grupo de Estudos em Leitura Literária da FaE/UFPel - durante o ano de 2017, em uma escola na cidade de Pelotas.
Destinado às meninas que frequentam o 7º, 8º e 9º ano de uma Escola Pública que se localiza na periferia urbana da cidade, selecionamos um grupo de obras literárias que têm, em seu universo ficcional, protagonistas inspiradoras, que não esperam príncipes e se responsabilizam por si mesmas, propõem saídas inusitadas para velhos problemas e são bem humoradas.
No lançamento do projeto, após a leitura de algumsa das obras selecionadas, houve um diálogo sobre os desfechos, com as meninas que, provocadas, emitiram opiniões: sobre a obra, as protagonistas, o evento.
Resultados parciais
Entre as opiniões colhidas no local, no dia e posteriormente, percebemos a aceitação da escola e do público - as meninas - com relação à proposta. Na cidade de Pelotas, os resutados foram observados quando a mídia online, o jornal impresso, uma entrevista à TV e a postagem de um vídeo no youtube repercutiram a proposição: uma unanimidade raramente alcançada. Quanto às obras escolhidas para leitura, consideramos que houve acerto, especialmente por tratarem de questões que interessaram às meninas presentes.
Entre as primeiras lidas, o texto singelo A Bailarina, de Vinícius de Moraes e As meninas, de Cecília Meireles, escolhidas por revelarem um ideal de menina: a inocência e a gentileza. 
As demais obras lidas foram A Zeropéia, de Herbert de Souza, Maria vai com as outras, de Sylvia Orthof, Nós, de Eva Furnari, O Príncipe que Bocejava, de Ana Maria Machado e Uma chapeuzinho vermelho, de Marjolaine Leray.
O futuro
Além desses resultados, transformamos o projeto em um programa de duração longa, que terá como acréscimo, o estudo das obras pelos mediadores, a ampliação da quantidade de obras a serem lidas e a multiplicaçao dos mediadores, buscando atingir a todas as meninas dos três anos para os quais o projeto foi proposto.

Mas, o que é uma menina?
Ao perguntar a amigos, colegas, familiares, entre outras respostas, colhi:

“Bah! Que difícil responder! Um ser humano tomado de possibilidades infinitas, de amorosidade, de força argumentativa e muita alegria”.


“Infante humano fêmea. Mais do que tudo uma criança. Nada de lacinhos e frufru. A menina que eu fui era dona dum mundo imaginário infinito, fortemente fundado na leitura que os outros faziam para mim e quando finalmente aprendi a ler, pude me encerrar secretamente com meus favoritos. Enfim, o que quero dizer é que a questão de gênero nunca foi muito marcada na minha criação (na praia, íamos de calção e peito de fora, por exemplo, era uma primalhada misturada, difícil definir meninos e meninas...”.

Menina: muito mais que exemplar do sexo feminino

Na pesquisa informal, via rede de familiares, amigos e colegas através do aplicativo WhatsApp que realizei no dia 25 de maio e que encerro hoje, dia 29, recebi interessantes opiniões.
Endereçada a 124 pessoas, publico abaixo as respostas recebidas por, entre outras pessoas, uma menina de sete anos e uma de quinze. As demais respostas foram majoritariamente de mulheres entre 18 e 70 anos.
Se para o Dicionário, menina é “uma pessoa do sexo feminino desde o nascimento até a idade adulta, quando então, se torna mulher”, para a única menina que respondeu à pesquisa, “menina é uma bailarina” (Ana Clara, 7 anos). Para a adolescente Fernanda, 15 anos, menina é “o símbolo da inocência, da ingenuidade, longe no entanto, de pensamentos machistas, em que meninas são criaturas mais fracas e sua inocência vem do não saber as coisas. Meninas lembram beleza, luz, tudo de mais lindo que o mundo trás. E, com certeza, a sabedoria e a inteligência”.
Menina, garota ou guria é um termo usado frequentemente como um sinônimo para filha e, antes de responder, algumas pessoas ficaram impactadas com a pergunta, não se furtando a comunicar seu espanto: “Interessante questão, Cris...”, “Humm, vou pensar, já te respondo”, “Nossa! Hoje me falaram o seguinte: embora tenhas 44 anos, tu pareces uma menina. E sabe que eu fiquei pensando no que significaria "ser uma menina", “Há que se tirar a fralda para saber. Talvez nem assim!” e “O primeiro pensamento é um sinônimo: uma guria! Depois há muitos desdobramentos. Em relação ao gênero? Quando nasce? Depois de um tempo? Os hábitos? A vestimenta? O comportamento? Pergunta complexa...”.
Uma das pessoas que respondeu considerou a pergunta difícil e declarou que não sabia responder, mas escreveu: “Ser menina é estar vivendo o momento de encantamento e "pureza" de ser mulher. E o momento em que a doçura de ser mulher prevalece frente a preocupação de não ser. É ser sem expectativas aquilo que esperam daquela que um dia será mulher. É ser flor enquanto os espinhos não nascem”.
Logo depois desse primeiro momento de hesitação, os “conceitos” começaram a inundar minha tela e, além de me fazerem pensar, me tornaram mais sábia. Leia os depoimentos que recebi:
1.      A palavra em si já denuncia: inocência, pequenina, desabrochar de sentimentos, descobertas.
2.      Afetiva, delicada, guerreira, forte, menina/mulher.
3.      Alguém do sexo feminino que se compreende menina. O gênero é dado pelo sexo, sendo que menino/menina ou homem/mulher são construções culturais. Você nasce macho/fêmea e se torna homem ou mulher.
4.      Aquela criança que se define menina.
5.      Aquela que é a eterna criança, independentemente da idade, a que dança, canta, pinta, e não tem a vergonha de ser feliz.
6.      Bah, que difícil responder! Um ser humano tomado de possibilidades infinitas, de amorosidade, de força argumentativa e muita alegria.
7.      Cristina, você cutuca com as suas perguntas. Fico aqui refletindo. Eu entendo menina: uma criança, menina remete a alguém inocente. Pode ser considerada uma adulta com poucas vivências. Como a expressão "uma menina ainda". Foi o que veio a mente no primeiro momento.
8.      Difícil hoje. Uma menina, uma pessoa, do sexo feminino, genoma Xx.
9.      É a criança que se identifica no sexo feminino. Não obrigatoriamente tendo que se vestir de rosa e brincar de boneca.
10. É uma criança do sexo feminino. Simples assim!
11. É uma pessoa que, independente de ser criança, merece respeito. Sempre pensei e quis isso quando criança.
12. Eu penso, quando me dizem que pareço uma menina, que sou jovem, curiosa, leve, destemida, apaixonada. Acho que vou ter 80 anos e vou ser assim: uma menina.
13. Falando da parte genética, menina é aquela que nasce com pepeca. Mas para mim, menina é aquela pessoa sonhadora, sensível e com olhar doce, imatura que esta descobrindo o mundo. Muitas vezes escuto “tu és uma mulher, mas parece uma menina”. E tem muitos meninos com esse sentimento de menina e muitas vezes nossa sociedade é preconceituosa.
14. Infante humano fêmea. Mais do que tudo uma criança. Nada de lacinhos e frufru. A menina que eu fui era dona dum mundo imaginário infinito, fortemente fundado na leitura que os outros faziam para mim e quando finalmente aprendi a ler, pude me encerrar secretamente com meus favoritos. Enfim, o que quero dizer é que a questão de gênero nunca foi muito marcada na minha criação (na praia, íamos de calção e peito de fora, por exemplo, era uma primalhada misturada, difícil definir meninos e meninas...
15. Luz, alegria, felicidade completa! Tudo de bom!
16. Menina é a imagem que tenho de uma criança meiga delicada, de traços e jeitos femininos.
17. Menina é criança do sexo feminino.
18. Menina é o ser humano que se identifica com o sexo feminino, ainda criança.
19. Menina é poder sorrir, brincar e sonhar!
20. Menina é um jovem ser humano do sexo feminino, antes de atingir a puberdade, quando passará a ser uma moça.
21. Menina lembra inocência. É delicada, meiga.
22. Menina para mim é uma pessoa do sexo feminino. Quando atinge uma maturidade ou certa idade, se torna mulher.
23. Menina para mim sempre foi sinônimo de felicidade. Tive uma filha menina, "Beatriz“, que sempre fez justiça ao significado do nome. Agora tenho três netas: Ana Beatriz, Ana Júlia e Heloisa e continuo associando "menina" com "felicidade".
24. Não sei responder. Responderia biologicamente: Um ser humano do sexo feminino em idade restrita.
25. Para mim uma menina é uma criança do sexo feminino! Cada dia mais o significado de ser menina muda sob minhas lentes! Criança em sua essência é quase como um anjo, assexuado! A sociedade traça percursos em que "a menina" hoje pode decidir. Viver em uma sociedade como a nossa, digo ainda, sulista, impõe às meninas, certos tabus surreais, se pararmos para pensar com profundidade.

26. Para mim, menina é aquela pessoa que nasce com o sistema reprodutor feminino.
27. Para mim, menina é uma criança do sexo feminino, que gosta de brincar, fazer travessuras, inventar brincadeiras, cantar, dançar à vontade, sem vergonha, aproveitar tudo o que a vida lhe dá e assim curtir sua família e amigos.
28. Para mim, menina é uma criança do sexo feminino, que gosta de brincar, fazer travessuras, inventar brincadeiras, cantar, dançar à vontade, sem vergonha, aproveitar tudo o que a vida lhe dá e assim curtir sua família e amigos.
29. Para mim, menina é uma pessoa que se considera do sexo feminino.
30. Quando penso em menina só consigo pensar em minha filha. E pra mim ela é tudo!
31. Que interessante pesquisa. Menina é uma criança do gênero feminino. Segue com isso algumas características como ser delicada, alegre, meiga, inocente, esperta, enfim, estereótipos. Quando penso em menina, lembro de mim quando pequena, brincando de professora, de comidinha, de Barbie, como era bom ser menina!
32. Ser menina é possuir um jeito moleca de ser...
33. Um ser dotado de sensibilidade e inteligência aguçadas e peculiares. Na realidade utilizo esse termo para identificar o gênero feminino, que admiro muito pelas qualidades que referi, sensibilidade e inteligência, particularmente a emocional, que acredito ser muito superior a do homem.
34. Um ser humano do sexo feminino, menor de idade - em geral - mas também uso afetivamente para minhas alunas de qualquer idade. Já ouvi ser usado o termo em relação às travestis e às prostitutas.  Depende das circunstancias.
35. Uma criança do sexo feminino.
36. Uma criança quase igual a um menino. Não gosto de muitas convenções de gênero. Gostou da minha definição?
37. Uma menina é a definição que a nossa cultura atribuiu à criança que nasce com o sexo feminino, isto é, diferenciou "menina e menino" pela formato das partes íntimas (não sei se pode colocar vagina e pênis). É o mesmo que "guria" para nós gaúchos. Após certa idade indefinida – pois não se sabe quando começamos nos chamar mulher - deixamos de ser meninas e passamos a ser mulheres. Nascemos mulheres (por causa da definição biológica), mas, para suavizar a carga e adoçar chamamos "meninas" as crianças do sexo feminino.  Muitas mulheres, adultas são chamadas de meninas. Em qualquer idade. E muitas acham difícil ser chamadas de mulheres, pela carga que este nome tem. Às vezes pejorativo. Menina adoça, mas queremos ser doces pelo resto de nossas vidas? Acredito que a resposta venha de outra pergunta: Queremos ser amargas pelo resto de nossas vidas?
38. Uma menina é um ser lindo dotado de alegria, atitude e doçura, como todas as crianças.
39. Uma menina é uma criança ou adolescente do sexo feminino.
40. Uma menina é uma pessoinha particularmente especial. Com características atávicas, doçura nos trejeitos, instinto maternal desde os primeiros passos. Sua curiosidade com o mundo passa por essa doçura! São tão encantadores quanto os meninos, mas de um jeitinho bem particular!
41. Uma pessoa dotada de super poderes, mas impossibilitada de usufruir os mesmos. Inviabilizada é melhor.
42. Vida, alegria, mudança, criatividade, energia, esperança...

A partir de todas essas opiniões, com a riqueza das meninas que aqui se presentificaram através das escritas de amigas, irmãs, mães, avós e alguns pais e admiradores, encerro essa pequena pesquisa, agradecendo novamente. Percebe-se claramente que menina é muito mais que um "exemplar do sexo feminino": é um ser repleto de siginifcados.
A menina que fui, de infância estendida e adolescência plural, com brinquedos de menina (bonecas e casinhas) e de menino (bolinha de gude, carrinho de lomba e bicicleta), com amigas e amigos, protagonista de invenções e armações, com muitas festas de aniversário, banhos de rio, aventuras no sítio, primas e irmãos, teve a oportunidade de rever, em cada palavra enviada, o passado, pleno em meu presente.
Agradeço também este presente.
Obrigada!

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Leitura para meninas: um punho e um útero.

Livros para meninas?
Há livros que educam meninas? Há literatura produzida para emancipar meninas? O que é uma menina?
Para a escritora Fernanda, 15 anos, “menina é o símbolo da inocência, da ingenuidade, longe de pensamentos machistas, em que meninas são criaturas mais fracas e sua inocência vem do não saber as coisas”. Para ela, “meninas lembram beleza, luz, tudo de mais lindo que o mundo traz. E com certeza, a sabedoria e a inteligência”.
Para uma estudante de Pedagogia de 34 anos, “menina é a definição, em nossa cultura, para a criança que nasce com o sexo feminino. É uma expressão usada para diferenciar menina de menino, baseada no formato das partes íntimas, vagina e pênis. É o mesmo que guria, para nós gaúchos. Após certa idade – indefinida, pois não se sabe quando começamos nos chamar mulher – deixamos de ser meninas e passamos a ser mulheres. Nascemos mulheres, por causa da definição biológica. Para suavizar a carga e adoçar, chamamos "meninas" as crianças do sexo feminino. Muitas mulheres adultas são chamadas de meninas. Em qualquer idade. E muitas acham difícil ser chamadas de mulheres, pela carga que este nome tem, às vezes, pejorativo. Menina adoça, mas, queremos ser doces pelo restos de nossas vidas? Acredito que a resposta venha de outra pergunta: Queremos ser amargas pelo resto de nossas vidas?”.                      
Observando...
Observando essas duas considerações diante de tantas outras que recebi após uma pesquisa informal, retorno à pergunta: Há livros endereçados para meninas? Neste caso, o que os aproximam, o que os tornam imprescindíveis?
Narrando mulheres
Anteriormente à profusão de títulos que, desde os anos 80 vêm sendo produzidos com a proposição de abordar a educação de crianças com mais delicadeza, criatividade, pertencimento, gentileza, alguns de nossos autores já se debatiam com a figura feminina. Um deles, João Simões Lopes Neto que, há 100 anos, mostrou-se estarrecido com a fúria amorosa e destruidora de Tudinha, em “O negro Bonifacio”. Outro, Erico Verissimo, um interiorano soterrado pela exuberante adolescência e o inevitável nascimento da vida adulta em “Clarissa”. O último, Mário Quintana, inconforme com o poder de escolha das mulheres em “As três moças de encruzilhada”.
Sim.
Três autores.
Três homens.
Três vozes.
Passados esses primeiros tempos, narradas essas meninas, mocinhas e até velhotas, a literatura passa a oferecer indícios de que às mulheres – e às meninas, também – restava pensar. Não que isso – pensar – ainda não houvesse sido sugerido, tematizado. Le petit Chaperon Rouge, conto de fadas de origem européia publicado pela primeira vez em 1697, pelo francês Charles Perrault, é um recado à infância e às meninas: os lobos existem, eles são perigosos, eles se disfarçam, eles matam.
Apesar dos trezentos e vinte anos que nos separam dessa primeira grafia de Chapeuzinho Vermelho, a natureza e a cultura das mulheres e sobre as mulheres parecem ter aprendido pouco. Em busca de caçadores, de lenhadores, de salvadores, as meninas e até mulheres adiam o protagonismo das próprias vidas.
Enredadas em tramas – sussurros, promessas, discursos, lenga-lengas – atribuem ao outro (o pai, o padrasto, o irmão, o colega da escola, o namorado, o noivo, o amante) seu destino. E os números indicam que o destino nem sempre é sair da barriga do lobo.
Meninas na escola: evidências
Ao desenvolver, por um ano, um trabalho de restauro em uma biblioteca escolar na periferia urbana de Pelotas, pude conhecer meninas. Observar se ainda se parecem com a menina que um dia fui e o quanto se diferenciam.
No pátio, em jogos e brincadeiras, as meninas revelam o que pensam, como agem, o que esperam, sonham, almejam. Ali, livres dos limites da sala de aula e dos programas curriculares, exploram e usufruem da companhia umas das outras e, também, da presença/ausência dos meninos.
O que pude observar? Quais foram as revelações dessa escuta “por acaso”? O que ficou evidente?
Uma de minhas observações é que o ambiente escolar que nós, adultos, destinamos aos nossos pequenos – crianças e adolescentes, aos infantes de nossa espécie – é adulto: nele não há cor, brinquedos, infância. Em parte considerável das escolas há paredes, corredores, quadras, muros, cercas e móveis em que predominam as cores frias.
Percebi, também, que no pátio, as meninas entre 11 e 16 anos são expostas precocemente à linguagem destrutiva, focada na imagem/aparência de seus corpos, etnias, opções sexuais, escolhas estéticas.
Observei ainda que, em parte considerável das vezes em que há contendas, as disputas ocorrem no “corpo-a-corpo” e, ameaças, empurrões, beliscões e outras brutalidades, substituem argumentos.
Uma estarrecedora evidência foi que as meninas são precocemente empurradas a “revelar” sua sexualidade, a “assumir” um modo de ser e gostar de ser, perdendo o direito de circular livremente entre os grupos de meninas ou de meninos.
Além dessas evidências observadas no interior da escola, percebi que saberes acerca delas – as meninas – circulam. Notícias ou maledicências que chegam da rua/bairro em que vivem e que compõem o “currículo” delas. Como exemplo, a precocidade da vida sexual, revelada pela manutenção de relacionamentos “firmes” desde muito cedo e um discurso desabonador vinculado à sexualidade, repleto de expressões como “Deu para quem? Aquela ali dá para qualquer um... Vai dar ou fazer doce? Esta é usada, já teve barriga”, entre outras. Penso que esses saberes que circulam – os scripts de gênero ou cultura que legitima, demarca e estabelece modos de ser para as masculinidades e as feminilidades –, de acordo com Felipe, Guizzo & Beck, 2013 – evidenciam a crença de que a sexualidade não é escolha, direito, desejo da menina e, sim, a materialização do desejo do outro, o pai, o irmão, o colega, o grupo de colegas, o namorado.
Compreendi que, muitas vezes, o fato de ter nascido menina resulta em maternidade imposta: a sua, precocemente, ou a de seus irmãos, quando a mãe lhe atribui o cuidar dos demais. Às vezes até, como castigo: se comportou mal, engravidou.
Leitura para meninas: o projeto
Observando de um lócus privilegiado – a escola – e por um tempo considerável – um ano –, decidi, a partir de então, reunir um acervo literário para pensar sobre estas “questões de gênero”. Focando a busca por obras que sugerissem protagonismo, o intuito era criar um programa de leituras para meninas. Sonhava em dialogar com elas sobre liberdade para pensar e escolher, pois sei de nossas diferenças, a primeira delas, geracional.
Não pretendo falar pelas meninas. Sei do inútil que é impor pautas e resoluções, conceitos e teorias, análises e estatísticas.
O lobo, por velho e sábio, conhece o mel. Não usa o fel. Quem nunca provou?
Assim, reuni, entre os títulos de minha biblioteca, um grupo de livros que têm em comum, temas ou protagonistas meninas, mocinhas ou mulheres que extrapolam os clássicos papeis destinados culturalmente ao gênero feminino. Na construção dessas personagens e tramas, os autores e autoras apresentam a nós, leitores, perfis, ideias, tramas e desfechos inusitados, inteligentes, bem humorados, afetivamente includentes e com lógicas não violentas.
O que eu pretendo com esses livros?
Encantar e fazer pensar.
Dizer às meninas que elas existem, não são bando, não precisam ser iguais, tem direitos, podem expressá-los, podem fazer escolhas, não estão sozinhas. Intenciono, também, ouvir, conhecer e aprender a dialogar com as meninas.
As obras indicadas
Os livros que selecionei e que indico são: Maria vai com as outras, de Sylvia Orthof; Teresinha e Gabriela, de Ruth Rocha; A Zeropéia, de Herbert de Souza, uma obra que marcou a literatura infantil para pensar; Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado; Pandolfo Bereba, de Eva Furnari; Mania de Explicação, de Adriana Falcão; Sebastiana e Severina, de André Neves; Nós, de Eva Furnari; Ceci tem pipi? De Thierry Lenain; Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; Ervilina e o princês, de Sylvia Orthof; Selma, de Udo Araiza; Espelho, de Suzi Lee; Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós; Uma chapeuzinho vermelho, de Marjolaine Leray;  O cabelo de Lelê, de Valéria Belém;  Orie, de Lúcia Hiratsuka;  O livro dos grandes opostos filosóficos, de Oscar Brenifier e Jacques Després; Inês, de Roger Mello e Mariana Massarani e A ervilha que não era torta... mas deixou uma princesa assim, de Maria Amália Camargo.
Por fim, indico um título.
Para pensar.
Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas.
Fiquemos com o título, pleno de sentidos.
Observemos duas das palavras contidas nele:
Útero.
Punho.
Lembremos...
Todos temos punhos.
Só as meninas tem útero!



[1] Para conhecer conceitos a respeito do termo "menina", empreendi uma pesquisa informal realizada em 25 de maio, endereçada a uma rede restrita de contatos. Acompanhe todas as repostas em: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/2017/05/o-que-e-uma-menina-resultados-de.html
                      


Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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