Lendo uma entrevista intitulada Problemas da fala na criança, realizada pelo mèdico Drauzio Varela com Rejane Rubino, decidi compartilhar.
Rejane é fonoaudióloga e professora no Curso de Fonoaudiologia na PUS/SP. A entrevista foi publicada em 19/03/2012 e está disponível em: http://drauziovarella.com.br/crianca-2/problemas-da-fala-na-crianca/
PROBLEMAS DA FALA NA CRIANÇA
Entrevista com Rejane Rubino.
Por Dráuzio Varela
Os pais olham os filhos sempre com muito orgulho.
Na maioria das vezes, acham que eles têm desenvolvimento mais rápido e são mais
espertos do que o das outras crianças. Mas, quando o filho apresenta alguma
dificuldade para falar ou desenvolve essa habilidade mais lentamente, ficam
ansiosos. Se essa ansiedade não é boa para eles, é péssima para a criança que
aí, sim, poderá apresentar problemas em relação à fala.
O ser humano demora alguns anos para dominar
perfeitamente o mecanismo da fala. Alguns o fazem mais depressa; outros, mais
devagar. Não existe data precisa para determinar a normalidade desse processo
que envolve uma série de aspectos orgânicos e psíquicos. Qualquer dúvida que
surja a respeito do desenvolvimento da fala na criança deve ser esclarecida
para evitar o agravamento da situação.
1. Qual é o desenvolvimento normal da fala na criança,
das primeiras sílabas até a formação de frases completas?
Em termos de tempo, existe uma variabilidade muito
grande. Aquilo que se considera normal não pode ser demarcado por um ponto
fixo, mas por algo que comporta variação. Pesquisas mostram, por exemplo, que
uma criança de 16 meses pode falar 150 palavras, enquanto outra da mesma idade
não fala nenhuma palavra ainda, o que não significa que esta última apresente
um problema de linguagem, porque a questão do tempo variável tem peso
significativo.
É importante notar que inicialmente a criança
produz vocalizações que são tomadas pela mãe e pelo pai como fala, quer dizer,
a criança é interpretada como se fosse um falante antes mesmo de começar a
falar.
2. Que tipo de vocalizações são essas?
Essas vocalizações caracterizam-se pela emissão
prolongada de uma vogal – aaaaa, por exemplo – ou até mesmo de sons que não
serão produzidos mais tarde quando a criança for falante da língua. Depois,
isso vai se transformando num balbucio que se caracteriza pela reduplicação de
sílabas (babá, mamã), e que se aproxima da estrutura silábica da língua.
Elas estão presentes após os seis meses de idade. O
importante é que o adulto vai tomá-las como palavras. Em geral, quando as mães
dizem que o filho começou a falar porque nesse balbucio emitiu um som próximo
de “mamã”, por exemplo, na verdade, ele ainda não está falando. No entanto, o
fato de o adulto tomar aquilo como fala é fundamental para que ele venha a
falar. A criança depende dessa interpretação para tornar-se um falante ativo.
4. Em que nível está a fala da criança com um ano
aproximadamente?
A partir dessa fala interpretativa que pai e mãe
fazem, a criança vai tomando alguns fragmentos que irão reaparecer em situações
parecidas às que foram faladas pelos pais. Portanto, a primeira fala tem
natureza bastante imitativa. A criança repete fragmentos ditos pelo adulto que
continua interpretando sua fala. Então, ela fala “nenê” e o adulto completa:
“Você viu que nenê bonito?”. Esse movimento de tomar aquele pedacinho de fala e
colocá-lo no contexto da língua imprime caráter gramatical à fala da criança.
Esse processo de aquisição de uma gramática estruturada leva uns quatro anos,
embora varie de uma criança para outra.
INTERFERÊNCIA DA ANSIEDADE PATERNA
1. Às vezes, os pais ficam aflitos porque a criança de
um ano não fala e não sabem que isso pode fazer parte do desenvolvimento normal
do filho, não é?
Os pais, às vezes, comparam um filho com o outro e
concluem que o mais velho na mesma idade já falava, embora nem sempre entendessem
o que dizia, enquanto o menor não fala nada. Costumo dizer, quando isso é
motivo de grande preocupação, que eles devem ser orientados, porque essa
ansiedade pode dificultar ainda mais o processo da fala infantil, na medida em
que passa para a criança a imagem de que deveria estar fazendo alguma coisa que
ainda não consegue fazer.
Na clínica, é importante avaliar o modo como os
pais falam sobre esse atraso. Às vezes, eles estabelecem relações entre essa
demora para falar (que pode nem ser uma demora de fato) com outras histórias da
vida da criança e da história deles mesmos. É importante trabalhar para que a
ansiedade da família se dissipe e, se realmente houver um problema, começar o
tratamento precocemente.
ORIENTAÇÃO AOS PAIS E CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO
1. Que tipo de conselhos você dá aos pais ansiosos e
que critérios estabelece para diagnosticar um real problema de linguagem?
Existem alguns fatores que precisam ser examinados.
Muitas vezes a criança ainda não fala, mas mostra sinais de que a linguagem
está se organizando dentro dela. Um exemplo é a maneira como ela brinca. Se não
fala, mas pega uma boneca, coloca-a para dormir, tira-a da cama, finge que a
alimenta e lhe dá banho, apesar do silêncio, a linguagem está presente. É como
se houvesse uma espécie de narrativa, evidenciada por eventos encadeados. No
entanto, se a criança não consegue estruturar uma brincadeira, pega um
brinquedo e larga para pegar outro que também deixa de lado, os pais precisam
ficar atentos a esse modo de reagir.
Outro fator a considerar é o efeito da fala do
outro na criança. Se ela atende a fala de terceiros, não há motivo para maiores
preocupações, o que não acontece quando reage como se nada do que ouvisse
tocasse nela.
Há, então, elementos que se usam na avaliação de
linguagem para diferenciar o atraso que requer atendimento da simples demora
para falar, uma vez que é praticamente impossível fixar uma idade exata em que
essa demora deixa de ser normal.
FALAR ERRADO
1. E aquelas crianças que falam de um jeito que só as
mães entendem?
Isso aponta para outro quadro que não é o atraso da
linguagem. A troca de fonemas, por exemplo, que em Fonoaudiologia é chamada de
desvio fonológico ou distúrbio articulatório, é um desses casos. Em vez de
falar “carro” a criança fala “calo”; em vez de “vaca”, fala “faca”. Além das
trocas, pode ocorrer também a omissão de sons.
Embora esteja estabelecido que em torno dos quatro
anos de idade a criança deva estar com o sistema de sons da língua adquirido e
estabilizado, existe certa margem de variação dentro dos limites da
normalidade.
Há pais que trazem a criança com essa idade,
preocupados porque ela fala errado a ponto de as pessoas de fora não entenderem
o que diz. Isso demanda análise cuidadosa para verificar que sons a
criança não produz ou troca por outros a fim de determinar a necessidade de
atendimento ou de esperar mais um pouco, pois ela está em fase final de
aquisição da linguagem. Por exemplo: ela já fala razoavelmente bem todos os
sons da língua com exceção do r duplo e dos encontros consonantais (fala
“Basil” em vez de “Brasil”), em geral os últimos a serem adquiridos.
Entretanto, mesmo antes dos quatro anos, pode ocorrer uma desorganização nos
sistema de sons que merece o cuidado precoce do fonoaudiólogo.
2. Você poderia dar um exemplo disso?
Há crianças que omitem sistematicamente os fonemas
oclusivos velares, o /k/ de “cola” e o /g/ de “gola” e isso lhes causa incômodo
e sofrimento. Lembro-me de que atendi uma menina cujo apelido era Cacá. Quando
lhe perguntavam qual era seu nome, ela dizia A-á. As pessoas não entendiam,
perguntavam de novo, ela repetia, mas não se fazia entender. A impossibilidade
de dizer o próprio nome de maneira inteligível perturbava suas relações
sociais. Num caso como esse, indica-se o atendimento mesmo antes dos quatro
anos para evitar constrangimentos para a criança.
Ela se chamava Carolina e produzir o fonema /k/ fez
uma enorme diferença em sua vida. O dia em que saiu da sessão falando Cacá,
estava exultante. É através da fala que as pessoas se apresentam para o mundo.
Não poder pronunciar corretamente o próprio nome é algo angustiante para a
criança.
GAGUEIRA OU DISFLUÊNCIA
1. Tenho a impressão de que existem menos crianças
gagas atualmente. Estou errado?
Não saberia esclarecer a questão da frequência da
gagueira, mas acho que é importante chamar atenção para o seguinte: certo grau
de disfluência, ou gagueira, é normal na fala de todos nós e, muitas vezes, nem
nos damos conta dele. Em relação à infância, há uma disfluência da fala
descrita como normal que faz parte do processo de aquisição da linguagem e
tende a desaparecer sozinha. Isso está relacionado com o momento em que a
criança passa a produzir as próprias sentenças e tem de escolher uma palavra
depois da outra. É como se estivesse diante de várias portas e estancasse
hesitando por qual caminho deverá seguir. Isso não é ruim e mostra um movimento
da criança na própria aquisição da linguagem.
É claro que o grau de disfluência varia de criança
para criança assim como varia a preocupação das famílias. É freqüente pais
levarem o filho ainda pequeno que gagueja um pouco para uma consulta com o
fonoaudiólogo porque temem que ele seja gago.
Diante de uma hesitação normal, é preciso alertar
os pais de que, se a reação deles for tranqüila, o problema da criança vai sumir
naturalmente. Por que é importante dizer isso? Porque o modo como os pais lidam
com essa fala disfluente pode criar uma autoimagem de mau falante na criança e
levá-la realmente à gagueira. Quando ela começa a falar e para e o adulto
interfere com dicas sobre a melhor forma de falar sem gaguejar (“pense a
sentença toda antes de falar”, “respire fundo”, “fale devagar”), está brecando
a fala da criança e criando uma tensão que ainda não existia. Por isso, é
importante que os pais busquem orientação sobre a melhor forma de lidar com a
disfluência dos filhos para não agravar um quadro que pode passar naturalmente.
2. A partir de que idade, os pais devem preocupar-se
com a gagueira dos filhos?
Eu diria que a partir dos quatro anos,
aproximando-se dos cinco, porque nesse momento a criança percebe a própria
disfluência e a reação que provoca nos outros.
A gagueira normal tende a diminuir a partir dos
três anos e não incomoda nem inibe a criança. O problema começa quando ela
evita falar em certas situações ou com determinadas pessoas e se recusa a
pronunciar algumas palavras. Isso mostra que está criando mecanismos na
tentativa de escapar da disfluência, o que agrava mais ainda o problema.
AVALIAÇÃO DOS FONOAUDIÓLOGOS
1. Em que os fonoaudiólogos se baseiam para dizer que determinado
comportamento em relação à fala é normal ou merece cuidados?
Sempre se inicia por uma entrevista com os pais na
qual colocam por que estão procurando atendimento e contam a história da
criança. Num segundo momento, o contato é com a criança. Há profissionais que
optam por aplicar testes. Eu prefiro sessões livres e lúdicas. O material é
gravado, transcrito e analisado para levantar erros e dificuldades que possam
estar cristalizados, sintomas de um distúrbio que a criança apresenta e precisa
de ajuda para superar.
2. Esses erros costumam ser sistemáticos ou
aleatórios?
Os erros da fala costumam ser sistemáticos, não no
sentido de que sejam fixos, mas no sentido de que mostram uma sistematicidade
própria da linguagem. Por exemplo, a criança que fala “faca” em vez de “vaca”
vai trocar todos os fonemas sonoros pelos surdos. Ela vai falar “cassa” em vez
de “casa”, “cato” em vez de “gato”, etc., porque isso é uma lógica própria do
sistema de sons da língua. Nesses casos, não se trabalha com os sons isoladamente,
mas com a oposição de sons surdos e sonoros, mexendo com todo o sistema
fonológico da criança.
3. Isso pressupõe uma avaliação bem cuidadosa, não é?
Bem cuidadosa. É preciso descobrir que sons são
trocados, qual a relação existente entre eles, além de analisar outros fatores
para escolher o melhor caminho para trabalhar com aquela criança
especificamente.
LÍNGUA PRESA, LÍNGUA SOLTA
1. E os casos de língua presa, como são encaminhados?
Aquilo que popularmente chamamos de língua presa,
nada tem a ver com língua presa mesmo. Recentemente, foi publicada uma
reportagem dizendo que o presidente Lula não tem língua presa, tem língua
solta. Na verdade, o que ele, assim como outras pessoas têm, é uma projeção
frontal da língua, resultante da flacidez ou hipotonia desse órgão. O ceceio
característico de sua fala é provocado pelo mau posicionamento da língua, quer
dizer, ela não fica contida no espaço nem na posição correta para assegurar o
tônus adequado.
A língua presa, em contrapartida, está afixada na
boca por uma prega que limita seus movimentos. Um bebê com língua presa pode
ter dificuldade para mamar no seio da mãe, por exemplo. Por isso, às vezes, é
necessário fazer uma pequena incisão para liberar os movimentos linguais.
2. Existem exercícios para reduzir os efeitos da
hipotonia da língua?
Existem, sim. Gostaria de ressaltar que o
desenvolvimento da musculatura orofacial utilizada para a fala tem relação
bastante próxima e forte com funções como sucção, mastigação, deglutição e
respiração. Assim, o ideal seria o bebê mamar no seio materno, mas nem sempre
isso é possível. Alimentado na mamadeira, é importante que ele faça força para
sugar. Muitas vezes, preocupadas com o ganho de peso da criança, as mães cortam
o bico e o leite jorra sem o bebê fazer esforço algum. Mesmo que o bico seja
ortodôntico e o furo pequenininho, sugar no peito demanda força muito maior.
O movimento de sucção propicia o crescimento
adequado das estruturas ósseas, das mandíbulas e desenvolve o tônus adequado da
musculatura que vai ser empregada na fala.
O mesmo princípio deve ser observado na passagem
para a alimentação sólida. Não é raro receber no consultório uma criança a quem
a mãe só oferece alimentos macios e pastosos, apesar de já ter idade para
aceitar a alimentação dos adultos. Às vezes, as pessoas perguntam: “Quer dizer
que o modo como meu filho come interfere no modo como ele fala?”. Sim,
interfere e muito.
Outro cuidado importante é observar como a criança
respira. Se respira pela boca, é bom levá-la ao otorrino para uma avaliação, já
que a respiração bucal pode estar relacionada com a flacidez da musculatura e
língua mal posicionada.
APRENDENDO MAIS DE UMA LÍNGUA
1. Teoricamente, a criança nasce com uma circuitaria
cerebral que permite aprender a falar qualquer uma das centenas de línguas que
existem.
Elas são capazes de produzir quaisquer sons, mesmo
aqueles inimagináveis depois que aprendemos a falar uma língua.
2. E as crianças que têm pais de nacionalidades
diferentes e aprendem duas línguas. Isso resulta em alguma desvantagem?
Existem estudos que estabelecem certa relação entre
a possibilidade de problemas de linguagem e o bilinguismo, mas já vi dezenas de
crianças crescendo em situação bilíngue sem nenhum problema.
Alguns pais optam por colocar os filhos em escolas
estrangeiras, porque acham vantajoso aprender mais de uma língua. Se a criança,
porém, manifesta algum distúrbio de linguagem tal atitude pode provocar
embaraços, uma vez que ela se vê diante de uma língua estranha quando nem
domina a língua materna.
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