Cristina Rosa
Bolas de Berlim
Em três quintais e com avó de dois nomes, viveu o menino.
Cachorro não tinha, e quando ganhou, sem querer e em devaneio, pisou em cima. Depois, só a avó Nádia para consolar. E fazer uma cova e uma cruz. Marcar o lugar para não mais pisar.
No quintal. Ou melhor, em um dos quintais.
Da casa azul celeste.
Pertinho, durante toda a infância, bisavó, avó e avô, pai, mão e irmã.
A dos cachorros muitos.
O seu, aquele que morreu cedo demais, filhote ainda, o único lembrado em toda a infância. Como seu.
A irmã? Muitos.
E de nomes originais como Laika...
Lembra também de gibis e de fotonovelas.
Mas lembra mais da casa azul celeste, com porão e tudo. Nele, garrafas, aranhas e suas teias, segredos e um friozinho...
De cheiros não lembrou. Mas sabores e sons, sim.
Sabores? Especialmente os restos de tudo em um inventado prato, à noite, para o jantar. A mistura, a cada dia de um jeito, produziu sua mais profunda noção de culinária. Hoje, adulto, perambula pelas ruas de Porto Alegre em busca de quem a imite. Inútil. Os restaurantes, todos, fazem de tudo para negar sua infância.
E os sons?
De cantigas de ninar a língua dos adultos, lembra de poder ficar só, em seu mundo, inventando uma presença e uma distância.
Presença por saber que a cantiga de ninar entoada pela avó Nádia em polonês era para os pequenos. Como ele.
A distância, quase ausência, quando os adultos resolviam adultar – que é uma maneira de deixar de ser criança – não escolhia, usufruía. Bisavó, avó e avô, pai e mãe, todos apartados por sons irreconhecíveis, palavras que não faziam sentido para o menino, abriam espaço para a infância acontecer. E ela aconteceu.
Mas de tudo, de especial, as Bolas de Berlim.
Sem recheio.
Sonhos, esses recheados com doce de leite ou goiabada, em Portugal são chamados de Bolas de Berlim. O menino não gostava. Do doce de leite ou da goiabada.
A avó Nádia?
Para o menino, só para ele, um cestinho repleto.
Fiquei até imaginando, hoje, quando soube.
Bolas de Berlim sem recheio.
Só para o menino.
Avó Nádia.
Quando pensa nela, a sua infância, o menino pensa em coisa boa.
Hoje pai de dois meninos, lembra da avó. A polonesa Nádia.
E das suas canções.
As de ninar.
Mas sabe: infância é ter um cesto de Bolas de Berlim. Sem recheio.
Carol
Na família de três meninas, era a do meio. A família mesmo era de cinco: pai, mãe e três gurias. Ela, a do meio[1].
Bonitinha, olhos claros, nem sei bem se verdes ou azuis. E bem magrinha.
Na escola foi bem cedo. Porque a mãe trabalhava fora, no banco, com horários esquisitos.
Chorava.
Mas logo em seguida, aprendeu.
A rezar. E aprontar.
Como era lindinha, com cara de inocente, as freiras sempre perdoavam.
Ela tinha desenvolvido uma técnica que era mais ou menos assim: aprontava, as freiras descobriam, ela ficava esperando. Quando elas chegavam, dedo em riste, armava as mãozinhas e fingia rezar. Dizia baixinho:
- Jesus me ajude, Jesus me ajude...
As freiras então, percebiam que ela acreditava em Deus, que ela recorria a Jesus, Maria ou mesmo a algum santo. E perdoavam.
A estratégia tinha um porém: o ceticismo da madre, a irmã mais poderosa do Colégio. Ela, a madre, sabia que aquela menininha loirinha, magrinha, bonitinha, de lindos olhos claros, era medonha!
A madre, no entanto, era muito ocupada e raras vezes tinham tempo de andar pelos corredores. Resultado: pouquíssimas vezes “pegou” a Carol. Que não era boba nem nada e tinha uma estratégia só para a madre. Querem saber? Pois conto.
Quando ela percebia que a madre estava se aproximando, sua reza era:
- São José me socorra, São José me socorra...
Por que funcionava? A madre era devota de São José e não resistia.
Assim a Carol cresceu. Aprontando e rezando.
As freiras?
Perdoando.
Inteligente, passou de cara no vestibular. Em vários.
Apesar do pai que queria Direito, foi estudar para ser professora.
Estudou. Estudou muito. Muito mesmo. E virou professora.
De crianças.
Loirinhas e moreninhas, bonitinhas todas, magrinhas e também gordinhas. Algumas de olhos claros. Algumas que nem sabiam rezar. Crianças que gostavam, adoravam, aprontar. Se a Carol pegava?
Sempre.
Mas perdoava!
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