quinta-feira, 21 de julho de 2016

Gêneros literários infantis: o Hibridismo


Dedicado a Hércules Toledo, meu amigo mineiro.

hibridismo – uma das características presentes em escritas literárias destinadas à infância atualmente – é observável quando um texto tem aspecto de um gênero mas foi construído em outro.
É um fenômeno que já foi descrito na literatura da área. Para saber um pouquinho mais, leia Poema em Prosa, de Fernando Paixão (2012). No texto, Paixão observa o poema em prosa, um gênero criado por Baudelaire em meados do século XIX e o nomeia "uma terceira via da modernidade literária, a ponto de suscitar uma trajetória e tradição próprias desde então".
Em um interessante ensaio, o pesquisador procura posicionar o impasse desse tipo de escrita, "ante o exaurimento das vanguardas ocorrido após o fim da Segunda Guerra". Esse tema, envolvente e necessário, merece nosso olhar atento. Aqui, umas pinceladas, para aquecer o diálogo que virá posteriormente.

Quais as relações entre gêneros/tipos literários e hibridismo?

Uma das estudiosas que se dedica ao tema é Bastazin (2006), para quem “refletir sobre os gêneros literários, tal como sobre a maioria das questões de literatura, assemelha-se à tentativa de mapear uma região em constante mutabilidade”. A pesquisadora argumenta que “o tratamento que se dedica à literatura ou às artes em geral, resulta em atribuir, por aqueles que sobre elas se debruçam, variados conceitos e funções, sempre atrelados às condições históricas e sociais de cada tempo e lugar”. Assim, “quer pela natureza, quer pelas características composicionais intrínsecas da obra literária, a apreensão e formulação de um conceito nunca foi, e provavelmente nunca será, tarefa pacífica”. E conclui: “pelo vínculo que a obra estabelece com seu criador – alguém genética, histórica e socialmente mutável e, em permanente estado de vir-a-ser”, é tarefa quase que impossível.

Discurso literário: registro poético e registro narrativo

Quando a intenção é conhecer, descrever, categorizar o discurso literário - a forma de escrever dos autores e até mesmo os formatos de apresentação de seus discursos em impressos - a busca é por definir o escrito. Perguntas como "É poesia?" "É narrativa?" são pertinentes neste caso. No entanto, nem sempre se consegue responder tão simploriamente as questões formuladas.
Em resumo: nem sempre isso é tarefa fácil.
Para Paiva e Cosson (2014) quase sempre se utiliza de uma distinção genérica: texto em prosa e texto em verso, para "supostamente", "recobrir os gêneros do registro poético e os gêneros do registro narrativo do discurso literário", ou, ainda, a divisão entre poesia e ficção. Para os pesquisadores, "os termos são tão genéricos que pouco discriminam, daí que se recorra a uma exemplificação".
Para exemplificar, compreendem-se Gêneros Literários como produções literárias escritas em registro poético (poemas, adivinhas, trava-línguas, parlendas, cantigas, acalantos) e em registro narrativo (conto, crônica, novela, teatro, texto da tradição popular; romance; memória, diário, biografia, livros de imagens e HQ).
Luis Camargo argumenta que “ainda hoje, a escola é a grande responsável pela circulação da literatura infantil e, no contexto brasileiro, a mediação familiar ainda é pouco significativa”. Para ele, esse fato, sem dúvida, “traz várias condicionantes à literatura, como, por exemplo, a confusão da literatura propriamente dita com obras que se utilizam da ficção e da poesia com finalidade educativa, seja de caráter informativo, seja para divulgar comportamentos e valores”.
Texto em prosa ou em verso?
Os dez sacizinhos, de Tatiana Belinky (2010). 
Conheces Os dez sacizinhos, de Tatiana Belinky? Ainda não? É uma obra imperdível.
Tendo como personagens a referência a um dos mais conhecidos do folclore brasileiro – o Saci Pererê – a obra Os dez sacizinhos mescla narrativa com a estrutura poética (estrofes com quatro versos e rima). O gênero, nesta obra, pode ser nomeado de híbrido, pois a autora lança mão da estrutura narrativa em prosa – Eram dez os sacizinhos – em cada entrada de estrofe, cumulativamente e em alusão ao "Era uma vez..." dos contos de fadas tradicionais. E lança mão, também, do registro poético, representado por estrofes em que há quatro versos e rima (Eram sete os sacizinhos/Um foi de charrete/A charrete emborcou/E sobraram sete).
Os dez sacizinhos pode ser considerada uma obra paradidática, pela proposição de raciocínios matemáticos simples como a subtração, por exemplo, e mais complexos, como as noções de ordem, comutatividade e a relação maior/menor. Neste caso, depende do uso que dele for feito pelo mediador, que poderá evidenciar um ou mais aspectos quando da leitura para as crianças.

Em Os dez sacizinhos há um encontro entre formatos de registro (o narrativo e o poético) e configura-se como representante do que se está nomeando gênero híbrido. A obra se encontra em uma inter-relação de gêneros, neste caso, uma invenção da autora.
Intencional, uma escolha, um direito do autor.
Lembre: a escrita literária de Tatiana Belinky tem ampla aceitação e credibilidade. Assim, não é necessário nem importante definir a que gênero pertence Os dez sacizinhos...
Mais importante é ler e se deleitar com ela.

Para saber bem mais, leia as referências:
BASTAZIN, Vera. José Saramago: hibridismo e transformação dos gêneros literários. In: Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas. Dossiê: Saramago PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 02 N. 02 – jul/dez 2006.

BELINKY, Tatiana. Os dez sacizinhos.  São Paulo: Editora Paulinas, 2010.

CAMARGO, Luis. A Poesia Infantil no BrasilPalestra apresentada no LAIS – Instituto Latino-americano –, da Universidade de Estocolmo, e no Instituto Sueco do Livro Infantil. Estocolmo, Suécia, em outubro de 1999. 
PAIVA, A. e COSSON, R. O PNBE, a literatura e o endereçamento escolar. In: Revista Remate de Males. Campinas-SP, (34.2): pp. 477-499, Jul./Dez. 2014
PAIXAO, Fernando. Poema em prosa: poética da pequena reflexão. In: Estudos Avançados. vol.26 no.76 São Paulo Sept./Dec. 2012.

Um comentário:

Unknown disse...

O texto ficou excelente! Delicioso de ler... e eu fiquei emocionado com a homenagem!!!! Muito grato!!!
Tem um artigo do Fernando Paixão na Revista Brasileira, da ABL, n. 75, que também pode te interessar!!! 😊😊😊

Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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