quarta-feira, 30 de maio de 2018

Teus alunos sabem ler? proponha um teste


A linguagem humana
A linguagem é uma criação humana, é um legado de gerações repleto de marcas culturais que tendem a indicar seu uso e atribuição de sentido. Assim, é necessário considerar que os sujeitos envolvidos com sua aprendizagem, na escola, são oriundos de diferentes relações de significado com a leitura e a escrita.
Para poder ensinar mais e melhor, é interessante saber o que esses sujeitos – nossos estudantes crianças, jovens ou adultos – já sabem sobre a linguagem (variedades, oralidade, escrita, leitura, modos de ler, funçõies da escrita na sociedade e na escola) e intervir no que ainda precisam saber.

Um teste como primeiro passo
Por que fazer um teste de leitura e letramento?
Um dos argumentos é que o professor precisa conhecer o que seus alunos sabem sobre a leitura e o letramento. Então, investigar deve ser o primeiro passo, pois todo processo educativo deve partir do que os envolvidos sabem. Desse modo, investiremos naquilo que o grupo não sabe e quer ou deve saber. Saber o que elas já sabem é fundamental para não perder tempo com o óbvio e investir tempo no imprescindível. Por exemplo: A maior parte das crianças que chegam à escola já sabe escrever seu nome. Os nomes se escrevem com letras. É desnecessário apresentar as letras às crianças. Mas é imprescindível que elas compreendam que se usam as mesmas 26 letras para escrever todos os nomes e todas as coisas que ser quer dizer em nossa língua.

Como se faz um teste de leitura?
O primeiro passo é escolher um grupo de impressos conhecidos por grande parte das pessoas que serão testadas. Esses impressos devem estar inseridos em práticas de uso da língua escrita, ou seja, fazer parte do universo cultural mais imediato das pessoas, como por exemplo:
a) Embalagem de um produto alimentício
b) Encarte de supermercado ou farmácia
c) Exemplar de jornal diário da cidade
d) Livro de literatura infantil.

O foco desse teste de leitura é averiguar o conhecimento da escrita e a correspondência entre o lido e o conteúdo. Deve ser feito com cada um dos impressos escolhidos separadamente. A intenção, no teste de leitura, é averiguar se os sujeitos lêem o que está escrito e se conhecem o valor cultural do artefato escolhido.

1. Passo Um: Perguntar
O professor deve mostrar o impresso escolhido e perguntar “O que é isso?” a todos e a cada um, permitindo que todos observem e respondam. É importante que todos escutem o que o colega falou.

2. Passo dois: dar a palavra a todos, ouvir e anotar as respostas
Durante as respostas, o professor não intervém informando o correto, mas instiga, repetindo, perguntando, questionando as respostas dadas pelos estudantes: - É Um saco de biscoito? Um pacote de biscoito? Um pacote de bolachas? Um saco de guloseimas?

3. Passo três: Perguntar onde está escrito
Ao final de cada uma das respostas o professor pergunta: Onde está escrito? O que está escrito? Com que letra está escrito? Indique para mim onde está escrito “saco de biscoito”, “pacote de biscoito”, “pacote de bolachas”, “saco de guloseimas”. Ao mesmo tempo, informa aos demais que esta é a resposta do aluno “A” e convida: Vamos ouvir o aluno “B”? E repete o procedimento. A intenção é, ao mesmo tempo, conhecer e questionar a certeza de cada um. Essa atitude do professor orienta o grupo a pensar, observar as letras, compará-las umas com as outras, observar hipóteses contrárias a sua e descartar hipóteses improváveis.

4. Passo quatro: anotar
O professor deve anotar (ou gravar e depois transcrever) todas as respostas dos estudantes. O objetivo é conhecer o espectro de possibilidades de pensamento, conhecer todas as informações disponíveis, naquele grupo, sobre o impresso estudado.

5. Passo cinco: planejar
A partir do que observou e anotou, o professor poderá planejar como deverá ser seu retorno aos estudantes com relação ao impresso estudado, no que diz respeito às letras que ali se encontram.
Exemplo um: as crianças conseguiram ler “biscoito”. Então, o professor afirma que sim, é isso mesmo que está escrito e complementa afirmando que sempre que aquelas letras estiverem naquela ordem a palavra lida será “biscoito”;
Exemplo dois: as crianças não conseguiram ler. Nesse caso, o professor instiga-os a pensarem sobre as possibilidades de palavras ali escritas (biscoito, bolacha, guloseimas); instiga-os a buscarem outras palavras conhecidas (nomes de crianças, brinquedos, alimentos) que iniciem com o mesmo grafema que a palavra escrita para “ensinar” que sim, ali está escrito biscoito.

Como se faz o teste de letramento?
Um teste de letramento vai averiguar o sentido que o impresso tem para os estudantes e deve ser feito ao mesmo tempo em que o teste de leitura. Após a rodada do teste de leitura, as questões que envolvem saberes para além da leitura de letras, devem ser feitas, com o intuito de averiguar a amplitude dos saberes.
O foco, neste caso, é conhecer se os estudantes sabem o que é uma embalagem (a função dela), quais as informações intrínsecas a ela e quais as que não podem faltar e, ainda, quais as relações possíveis entre este impresso e os demais impressos para alimentos disponíveis no mercado.

Como executar?
Funciona como um jogo de “passar a palavra”, ou seja, cada resposta dada pelos estudantes vai sendo incorporada à anterior, aprimorando e complexificando uma única construção conceitual.
O professor deve ser o maestro desse jogo, perguntando, devolvendo a palavra, unindo as respostas, até que se chegue a um conceito amplo de embalagem de biscoito. Não é necessário, neste primeiro momento, que se elabore um conceito completo e correto, mas é necessário que se busque essa complexidade.
O foco é que todos aprendam a pensar:
- sobre a função social da escrita: o que se escreve em uma embalagem, por que se escreve, o que não pode faltar, o que é desnecessário;
- sobre a escrita em si, ou seja, como se elabora um conceito e como se registra esse em nossa língua materna.
Exemplo:
Ao perguntar “O que é isso?”, o professor vai ouvir diferenciadas respostas. Sua tarefa, então é devolver aos estudantes as respostas em forma de pergunta, para que eles analisem o que disseram. Assim:
- É um saco, um pacote ou um plástico? É um saco de bolachas, um saco com bolachas, um plástico com biscoitos, um plástico de biscoitos, um pacote de biscoitos, um pacote com biscoitos ou um saco de papel com biscoitos dentro? Não é nada disso? Não é nenhum destes? O que é então?
Deve-se chegar a uma conclusão, a um conceito que todos concordem que represente o impresso, mesmo que a palavra embalagem não apareça. Esse conceito agregador deve ser repetido oralmente e escrito no quadro, pelo professor. Deve ser tomado, pelo professor, como o conceito inicial. Sobre ele é que o professor vai planejar sua próxima atitude: complexificar e aprimorar a oralidade e a escrita.

O que se faz com os resultados do teste?
No teste de Leitura:
1.   A primeira intenção é desenvolver a capacidade de leitura/decifração, ou seja, saber se as crianças identificam os grafemas, a ordem deles (se compreendem que o valor posicional de cada grafema modifica a escrita) e se conseguem realizar a leitura do que está escrito.
2.   A segunda intenção é observar se a resposta dada se aproxima do que deveria estar escrito, quando quem respondeu não sabe o que está efetivamente escrito. Por exemplo: algumas crianças respondem a pergunta “o que está escrito?”, falando: bolacha, biscoitinhos, deliciosos biscoitos, gostosuras, pacote... Essas respostas se aproximam do que está escrito e indicam que a criança sabe do que se trata, embora não saiba ler.

Quando elas não sabem o que está escrito e nem o que poderia estar, temos que averiguar com outro impresso que seja mais próximo de seu universo cultural. É muito raro que as crianças não tenham nenhuma noção do que poderia estar escrito.

No teste de letramento:
O teste de letramento averigua a capacidade de uso das informações disponíveis naquele impresso.
Assim, o sujeito “letrado” é aquele que sabe o que está escrito, que sabe que aquela é uma embalagem, que embalagens se modificam, sabe quais as informações que não podem faltar em uma embalagem, quais as que são dispensáveis e consegue estabelecer relações entre esse produto e outros, similares, no mercado. É raro um estudante saber tudo isso, mas é isso que, ao final de um programa de estudo sobre a embalagem ele deve saber. Os resultados de um teste de letramento indicam ao professor o quanto eles sabem e o que querem ou precisam saber.
Anotando, no quadro, o conceito original oriundo da descrição oral que os estudantes, a princípio, fizeram, o professor pode, por comparação, ao final do trabalho, mostrar a eles o quanto eles sabiam e o quanto aprenderam. Esse é o caminho, o processo de aprendizagem que o teste de letramento permite realizar.
Todos os estudantes, ao serem confrontados com sua capacidade oral de descrição e, ao mesmo tempo, ouvindo os colegas e as perguntas do professor, têm a oportunidade de redimensionar sua descrição, refazer sua argumentação, redefinir palavras, termos e conceitos utilizados. Essa habilidade, se desenvolvida oral e por escrito, leva ao poder de argumentar.
Desse modo, desenvolve-se, primeiro oralmente, e depois por escrito, a descrição do material selecionado, com o intuito de conhecer o que as crianças já sabem sobre um impresso desse tipo.

Um roteiro
Para organizar a construção de sentido e a construção de um conceito a respeito de um objeto qualquer, sugiro um roteiro:

1.   É uma embalagem?
2.   O que é uma embalagem?
3.   O que está escrito nela? (descrição imediata);
4.   Ao ler essa informação eu sei o que tem dentro? (nome igual conteúdo);
5.   Como posso saber se os biscoitos são doces ou salgados? (tipo de produto);
6.   Como posso saber a quantidade de biscoito que há nessa embalagem?
7.   Como eu posso saber se o biscoito pode ser consumido? (data de validade);
8.   Como posso saber a quem reclamar se o biscoito estiver estragado? (responsabilidade técnica e de produção);

Desse modo, desenvolve-se, primeiro oralmente, e logo a seguir por escrito, a descrição do material selecionado, com o intuito de conhecer o que as crianças já sabem sobre um impresso desse tipo. O objetivo é conhecer, através do que ainda não se sabe, o que é preciso conhecer. A tarefa do professor é anotar as respostas para poder intervir em um próximo momento.

O que posso ler para complementar meus estudos?
A seguir, algumas interessantes indicações de leitura que vão complementar e ampliar seus conhecimentos sobre leitura, letramento e alfabetização. Não deixe de consultar o site do Centro de Alfabetização Leitura e Escrita (CEALE) da FaE/UFMG, disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/institucional.php e não deixe de ler http://crisalfabetoaparte.blogspot.com/

Referências:
BARBOSA, J. J. Alfabetização e leitura. São Paulo: Cortez, 1994.
CAGLIARI, L. C. Alfabetização & Lingüística. São Paulo: Scipione, 1993.
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KATO, Mary. No Mundo da Escrita: Uma Perspectiva Psicolingüística. São Paulo: Ática, 2003.
KLEIMAN, A. (org.). Os significados do Letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1999.
LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997.
MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
MARTINS, M. H. O que é leitura? São Paulo: Brasiliense, 2006.
MINAYO, M. C. (org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994.
NEVES, I. Ler e Escrever: Compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
ROSA, C. Literatura na Escola: por uma leitura não convencional do mundo. Artigo Publicado em 09/05/2011 in: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com/2011/05/literatura-na-escola-por-uma-leitura.html
ROSA, C. Onde está meu ABC de Erico Verissimo? Artigo Publicado em 09/05/2011 In: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com/2011/05/onde-esta-o-meu-abc-de-erico-verissimo.html
SILVA, E. T. e ZILBERMANN, R. Leitura: Perspectivas interdisciplinares. São Paulo, Ática, 1999.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1999.
SOARES, M. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1988.
TEBEROSKY, A. e COLOMER, T. Aprender a Ler e Escrever: Uma Proposta Construtivista. Porto Alegre: Artmed, 2003.


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Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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