quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A LINGUAGEM LITERÁRIA NA INFÂNCIA: LER, ILUSTRAR, RELER...

Resumo: A leitura literária ofertada às crianças tem sido eventual, aleatória, não planejada e nem registrada em diários de classe, indicando um tratamento de menoridade intelectual por parte dos alfabetizadores. A origem deste fenômeno está localizada no desconhecimento do poder da literatura, bem como de seus sujeitos – os gêneros e as obras literárias –, na falta de repertório e acervo adequados e no demasiado valor atribuído aos demais conteúdos escolares. Acredito que o gosto pela leitura não é um atributo genético e precisa ser ensinado, produzido entre os seres humanos, pois ninguém nasce gostando de ler (ANTUNES, 2013). No artigo apresento uma reflexão acerca da premência de bons contatos com o mundo da leitura literária desde tenra idade, proponho a alfabetização literária como condição para a formação do leitor e utilizo como argumento resultados obtidos em uma experiência bem sucedida de interação entre autor, mediador e público ouvinte. Minhas reflexões e atitudes estão alicerçadas nos escritos de Abramovich (2003), Coelho (2000), Fischer (2012), Lajolo & Zilberman (1985), Machado (2004, 2012), Paulino (2010) e Todorov (2012), para quem ler é atribuir significados. Os procedimentos metodológicos empregados foram: a) contato com os mediadores; b) envio, por email, de um conto; c) leitura do conto pelo mediador às crianças; d) ilustração do conto pelos ouvintes; e) diálogo autor/crianças/mediador na escola; f) tratamento gráfico e edição de texto pelo autor; g) retorno à escola em novo formato – banner e e-book – para uso do mediador com as crianças. Os resultados indicam que os objetivos foram alcançados e permitem a continuidade e amadurecimento dos vínculos inicialmente existentes.

Palavras-chaves: Alfabetização literária, Mediador, Infância.
1.      Introdução
Alfabetização literária é um processo de apresentação do mundo da literatura aos demais. Para tal, é preponderante a atitude de um mediador - uma pessoa que "estende pontes entre os livros e os leitores" (REYES, 2014). Ao selecionar “livros que fascinam”, os mediadores transformam pessoas em leitores. Leitores de imagens, leitores de textos, leitores de sentidos, leitores de vidas.
A alfabetização literária demanda um futuro leitor, um mediador e um livro. O pretenso leitor está em cada uma das pessoas que ainda não lê por prazer. O mediador, em cada uma daquelas que já descobriram o gosto de ler. Sim, pois ninguém nasce gostando de ler. Nem desgostando. De acordo com Antunes (2013), “o gosto pela leitura não é um atributo genético. Precisa ser ensinado, produzido entre os seres humanos [...]". Graça Paulino (2014) afirma que a leitura literária pressupõe “uma prática cultural de natureza artística, estabelecendo com o texto lido uma interação prazerosa” e é necessário um “pacto entre leitor e texto” que inclui, necessariamente, “a dimensão imaginária”, pois é através dela que “se inventam outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas ações, pensamentos, emoções” (p. 177).
Assim, alfabetizar-se requer um sujeito que deseja - o futuro leitor -, um sujeito que ama – o leitor – e um objeto de desejo: o livro. É uma equação simples, tramada através de um pacto. O pacto é vivido no texto não escrito que Bartolomeu Campos de Queirós (2009) anunciou desejar conhecer. Para ele, o autor propõe um diálogo que necessita do leitor e este diálogo, esse entendimento, a nova obra que brota da interação autor/leitor é a verdadeira literatura, a obra (no sentido da manufatura) literária. Ao mesmo tempo insondável e experimentação, a obra não escrita revela o literário do pacto.
As reflexões acima expostas originaram-se de evidências no mundo da pesquisa acerca de leitura literária ofertada a crianças na escola. Percebi, observando professoras, ouvindo crianças, dialogando sobre leitura literária em cursos para educadores e lendo na escola para crianças que os eventos de letramento literário ocorrem eventualmente. Além disso, as escolhas de livros a serem lidos não obedecem a critérios: são aleatórias, não planejadas e nem registradas em diários de classe, indicando um tratamento de menoridade intelectual à literatura por parte dos alfabetizadores. A partir de pesquisas realizadas[i], afirmo que a origem desta “menoridade intelectual” está localizada no desconhecimento do poder da literatura, bem como de seus sujeitos – os gêneros e as obras literárias –, na falta de repertório e acervo adequados e no demasiado valor atribuído aos demais conteúdos, preponderantemente o ensino da estrutura da escrita da língua materna[ii], o que me permite lamentar que, da escola saiam escreventes. Leitores, raramente. No artigo apresento uma reflexão acerca da premência de bons contatos com o mundo da leitura literária desde tenra idade e utilizo como argumento resultados obtidos em uma experiência bem sucedida de interação entre autor, mediador e público ouvinte.
O “desaparecimento” da leitura literária na escola tendo o mediador como referência – um professor exemplar, leitor, apreciador de obras e autores, preparado para apresentar às crianças a leitura através de obras criteriosamente escolhidas –, reflete o tratamento amador que a leitura recebe: é comum que o professor abra mão de seu protagonismo como leitor em nome de uma leitura dos iguais, ou seja, logo que as crianças aprendem a balbuciar sílabas, substituem os professores na tarefa de ler para os colegas. Além disso, a leitura é utilizada para acalmar crianças ou como prêmio por bom comportamento; a qualquer momento é suspensa, como castigo; a escolha do que ler é casual, sem critérios pré-definidos; a biblioteca da escola não é conhecida nem utilizada pelo professor; os clássicos, pouco conhecidos e, quando lidos, substituídos por recontos; os modernos ficam restritos a autores estrangeiros famosos ou a um ou dois brasileiros em igual condição; na escolha do que ler, os textos curtos são os mais acionados; há predomínio da imagem sobre o texto entre os prediletos dos professores e, na maior parte das escolas pesquisadas; não há eventos contínuos e permanentes de leitura literária. Entre os professores, poucos investem em repertório e acervo pessoal no que tange à literatura para crianças e mesmo para si.
Tendo como princípios que ler é atribuir significado ao lido, que a leitura literária é condição para a formação do leitor e o gosto pela leitura não é um atributo genético, precisa ser ensinado, produzido entre os seres humanos (Antunes, 2013), uma de minhas ocupações tem sido produzir impacto entre os mediadores. Formadora de professores que atuam na faixa etária conhecida como infância – de zero a onze anos ou do maternal ao quinto ano – tenho buscado propor e acompanhar resultados de proposições de leitura literária na escola. Busco, com isso, ofertar aos professores ferramentas de conhecimento[iii] e atitudes mediadoras (como ler). O intuito é a atuação na sala de aula através do contato com bons livros e metodologias adequadas.

2.      Literatura para a Infância
Frágil pela sua temporalidade, a infância tem difícil definição, segundo Hunt (2010). A literatura para ela, também. Em suas conclusões acerca do que é a criança[iv], ele escreve: “A definição de infância muda, mesmo no âmbito de uma cultura pequena, aparentemente homogênea, tal como muda o entendimento das infâncias no passado” (p. 94). Para ele, “a infância não é hoje (se é que alguma vez foi) um conceito estável. Por conseguinte, não se pode esperar que a literatura definida por ela seja estável” (p. 94).
A literatura infantil ou literatura escrita e destinada à infância tem como característica maior o seu suposto público: a criança. Assim, e “por inquietante que seja, pode ser definida como: livros lidos por; especialmente adequados para; ou especialmente satisfatórios para membros do grupo hoje definido como crianças” (HUNT, 2010, 96). Esse modo de pensar possibilita agregar a ideia de que livros infantis seriam apenas os “essencialmente contemporâneos” (p. 96) uma vez que os “conceitos de infância mudam tão depressa” que um livro “envelheceria” junto com a geração para a qual foi criado. Será?
Ao buscar compreender como aconteceu de o ensino de literatura na escola ter se tornado o que é atualmente, Todorov (2012) reconhece como preponderante, no ambiente universitário, a “tendência que se recusa a ver na literatura um discurso sobre o mundo” (p. 40). Diz, ainda, que essa “tendência” exerce uma “influência notável sobre a orientação dos futuros professores de literatura” e que, diferente do estruturalismo clássico, o pós-estruturalismo “só pode dizer uma única verdade, a saber: que a verdade não existe ou que ela se mantém para sempre inacessível”. Para além, informa que “a tese segundo a qual a literatura não mantém ligação significativa com o mundo e que, por conseguinte, sua apreciação não deve levar em conta o que ela nos diz do mundo”, tem uma “história longa e complexa paralela ao advento da modernidade” e sugere que, na escola, diferentemente da Universidade, o que se deve destinar a todos é “a literatura” (p. 40). Eu perguntaria: E o que é a literatura?
Arte, diriam alguns. Artesania e beleza, outros. Palavras para serem apreciadas, metáforas especialmente escolhidas para nos fazerem pensar, a literatura pode muito, segundo Todorov (2012, p. 76). Dolce e utile, a literatura não nasce como arte ou contemplação estética, apenas. A “contemplação estética”, o “juízo do gosto” e o “sentido do belo”, como características da arte, são instituídos como “entidades autônomas” nos séculos XVII e XVIII, de acordo com Todorov (2012, p. 49-50). Do reconhecimento da dimensão estética como uma “característica humana universal” se passou a uma nova perspectiva: o isolamento dessa característica ou aspecto secundário “instituindo-o como encarnação de uma única atitude, a contemplação do belo” e, como consequência, a cisão entre útil e belo, que levará à criação do próprio termo “estética” ou, “ciência da percepção”.
Todorov (2012) ao reunir ensaios em “A literatura em Perigo”, se insurge contra essa tentativa de afirmar a Literatura à margem de ligações significativas com o mundo. Ao mencionar apontamentos em um diário de Benjamin Constant – análise de um trabalho sobre a estética de Kant – o pesquisador informa que ali aparece, pela primeira vez em francês, a expressão “a arte pela arte”. Indicando a posição de Constant – que situa a prática literária no cerne de outros discursos públicos – Todorov (2010), menciona uma passagem, datada de 1807, que representa a posição insurgente:

A literatura refere-se a tudo. Não pode ser separada da política, da religião, da moral. É a expressão das opiniões dos homens sobre cada uma das coisas. Como tudo na natureza, é efeito e causa. Imaginá-la como fenômeno isolado é não imaginá-la (CONSTANT in TODOROV, 2012, p. 59).

Conceituada como “tudo que concerne ao exercício do pensamento na forma de escritos, excetuando-se as ciências físicas” (STAËL in TODOROV, 2012, p. 60), a literatura seria a grande expressão humana. Mais que isso, penso, evidenciaria a impossível separação entre o doce – o prazer, o deleite, a fruição de palavras, expressões, metáforas, sons, silêncios, menções, esquecimentos –, e o útil, representado pela reflexão, elucubração, diletantismo, engenhosidade, suposição, inferências. No literário, indiferentemente se para adultos ou crianças.
Entre os estudiosos brasileiros de literatura há forte tendência em afirmar que a literatura é arte que produz, ao mesmo tempo e com igual intensidade, experiência estética e pensamento. A literatura infantil é, “antes de tudo, literatura”, diz Novaes Coelho (2010. p. 28). Fenômeno “visceralmente humano”, a noção de literatura que vem predominando entre os estudiosos, de acordo com Novaes Coelho (2010), é a de identificá-la como “um dinâmico processo de produção/recepção que, conscientemente ou não, se converte em favor de intervenção sociológica, ética ou política”, estando implícita a “transformação das noções já consagradas” de, entre outras, “tempo, espaço, personagens, ação, linguagem, estruturas poéticas, valores éticos” (p. 28). E é enfática ao afirmar que, para “além do prazer/emoção estéticos, a literatura contemporânea visa alertar ou transformar a consciência crítica de seu leitor/receptor” (NOVAES COELHO, 2010, p. 29).
Abramovich (1997, p. 14) por sua vez, afirma que “ler é um ato fluido, ininterrupto, de encantamento e de necessidade vital”. Em busca de um exemplo, cita o ficcionista Erico Verissimo, para dizer de seu entendimento a respeito da função do escritor:
... o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ela caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela, ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto. (VERISSIMO em ABRAMOVICH, 1997, p. 100).

Para a pesquisadora do Letramento Literário, Graça Paulino (2010), a literatura depende de valores a ela atribuídos em cada época histórica, o que significa que para conceituá-la é necessário que esteja sendo manipulada, ou, que esteja em “mãos de leitores de carne e osso”. Em suas palavras: “A validade artística de cada produção, seja teatro, seja uma música, depende de quem está ‘lendo’. Não há e nunca houve uma verdadeira arte que valesse o mesmo para todos no mundo, em todas as épocas, porque as pessoas têm expectativas, preferências e repertórios diferentes” (PAULINO, 2010, p. 139). No entanto, deixa clara sua posição: “O prazer e o crescimento humanos que uma experiência artística pode trazer nunca seriam perda de tempo. Tempo é muito mais que dinheiro, porque a nossa vida inteirinha se faz do tempo, a nossa realização intelectual se faz no tempo, assim como nossos amores, nossas tristezas, nossos sonhos, nossas amizades, nossas brincadeiras” (p. 139-140).
Ao conceituar a literatura como um caminho na direção de “mais tolerância nesse atormentado planeta” e, também, “alguns passos para uma vida menos aborrecida”, Fischer (2011, p. 30), busca leitores que tomem “as palavras tidas como sagradas em sua dimensão humana”, ou seja, “como textos que interpretam a vida e a morte e procuram aliviar nossa imensa ignorância sobre o mundo, nossos insuperáveis temores sobre o destino individual e coletivo, nosso eterno pânico por não controlar a natureza” (p. 30). Em um interessante texto intitulado “Escrever para quê?” o professor tece, de maneira bastante sucinta, sua reposta à questão, ancorado na descrição de um personagem que “conseguiu comprar um velho caderno de notas e resolve fazer um diário”. Vigiado, ele “precisa esconder-se numa reentrância da parede, dentro de seu próprio lar, para então ter um mínimo de liberdade – a liberdade de anotar pensamentos, impressões, palpites, lembranças”. O texto produzido, “atropelado, uma desordem sem pontuação adequada, com palavras saindo erradas da caneta”, não tem importância alguma para Fischer que, neste momento, declara: “era um homem exercendo sua sofrida, pequena mas viva liberdade” (FISCHER, 2011, p. 100).
A literatura, então, é inimaginável como fenômeno isolado (TODOROV, 2010), pois é um fenômeno “visceralmente humano” (NOVAES COELHO, 2010). Expressão antropológica, portanto. Literatura é “encantamento” e “necessidade vital” além de indicação que “não desertamos nosso posto” (ABRAMOVICH, 1997). É “prazer e crescimento humano” (PAULINO, 2010) e liberdade de expressar-se (FISCHER, 2011) e, por tudo isso, ler, escrever, ouvir, imaginar é direito. De todos e de qualquer um e deve ser ofertado desde a mais tenra idade, em um processo de alfabetização literária (ROSA, 2015), como condição para a realização humana.

2.1 Literatura para crianças: da higiene a bobices quaisquer
A escrita literária para as crianças tem uma história muito recente no Brasil. Exatamente por isso, o “discurso teórico, crítico e historiográfico que sobre ela se tem produzido no país é um fenômeno ainda mais recente” (CECANTINI in HUNT, 2010). Diferente de outras escritas por ter “predomínio da função estética”, a literatura busca sustentar-se e expressar-se pela ludicidade, invencionice, imaginação e estética da linguagem. É através dessas manifestações que a literatura pode existir e evidenciar os desejos mais profundos do ser humano, no caso infantil, um humano em formação. Doce e útil, a literatura para crianças tem o compromisso de encantar o leitor e, ao mesmo tempo, torná-lo mais culto, mais perspicaz, mais inteligente, mais curioso: uma porta para a literatura adulta?
A obra literária tem como função primordial apresentar ao leitor uma visão estética da palavra, da forma como essa palavra se organiza em um texto e da forma que podemos dar ao texto ao editá-lo. Nela, imaginação, ancestralidade, elementos mágicos, linguagem metafórica e ludicidade se conectam para lapidar a imaginação e a impossibilidade de existir sem ler. Ao estabelecer uma conexão imediata com a imaginação – o mundo que existe como desejo –, o texto literário remete a situações inusitadas e pode-se, através dele, transgredir a ordem, as leis, as regras, as idades ou mesmo só pensar que se faz isso. Através dele, podemos brincar de ser outro, mais novo, mais alto, com poder, sem nenhuma beleza, com muito ouro, com quase nada. Além disso, o texto literário insere qualquer um na ancestralidade e pertença à espécie e ensina que, um dia, em torno do fogo, ouvia-se e contava-se e, desse modo, inventava-se a linguagem...
Nascido com o intuito de ensinar[v], o texto literário para crianças pode ser um brinquedo, invencionice, bobice. Inventado por adultos através de um mecanismo incrível ainda pouco conhecido – a imaginação – à revelia da razão e apesar da ciência, o texto literário infantil evidencia e mesmo denuncia a infância que gostaríamos de ver nas ruas, nas casas, nas praças, nas escolas. Pode ter personagens que ainda não existem e que, talvez, jamais existam. O texto literário infantil pode ser repleto de situações impensáveis, e, por isso mesmo, desejável. Pode descrever e antever tramas imponderáveis e, assim mesmo, convencer. A literatura para crianças, desse modo, é criação pura, invencionice, “gostosuras e bobices”, como diz Fanny Abramovich (1997) e é condição para a existência infantil: brincalhona, espontânea, imatura, dispersa, vulnerável, perceptiva, curiosa, adaptável.
3.      Desenvolvimento
Bons contatos com o mundo da leitura literária necessitam de planejamento, conhecimento, disponibilidade e reconhecimento de que a escola é um bem público ao qual todas as crianças têm acesso garantido por lei. Nela, no entanto, nem todas aprendem a gostar de ler, o que é, de algum modo, uma sonegação de direitos. Tendo como pano de fundo que a tarefa primordial da escola é inserir crianças no mundo da leitura e que esta inserção deve ter efeito duradouro, a proposição, iniciada em 2013 com um grupo de professoras[vi] no sul do Rio Grande do Sul, foi estabelecer um vínculo imediato entre autor e mediador; incentivar o mediador a ler em voz alta para seus alunos; gerar efeito duradouro da literatura com a presença do autor na escola e; produzir um resultado integrado, representado pela produção de um e-book com o trabalho integrado de escritor, professor e crianças.
Inspirada nos princípios da pesquisa qualitativa (LÜDKE e ANDRÉ, 1986) – os procedimentos desenvolvidos foram: a) contato com os mediadores via correio eletrônico, convidando-os ao projeto; b) envio de três narrativas infantis para que o professor escolhesse, a partir de seus critérios, o mais adequado para suas crianças; c) leitura da narrativa escolhida pelo mediador às crianças e a ilustração da narrativa pelas crianças; d) visita do autor à escola; e) edição de texto e inserção das imagens produzindo um livro em mídia digital; f) impressão de um banner com o novo formato para retorno do conto ilustrado à escola.
Tendo como produto livros em mídia digital (e-books), contou com o trabalho de professoras leitoras – as mediadoras – com as ilustrações de crianças de três a doze anos e com o trabalho do escritor que deu novo tratamento ao texto e as imagens, mesclando-os. Os resultados indicam que a proposição atingiu seus propósitos – gerar efeito duradouro da literatura integrando escritor/professor/crianças – e pode ser generalizada.
Entre os vários contos enviados às professoras, escolhi dois para representar o projeto desenvolvido: Frederico, o Príncipe e A fome da água. O primeiro trata do silêncio imposto ao rei pelo processo de formação da índole de seu filho, um príncipe cheio de argumentos, vontade de diálogo, energia para a luta, embora ainda criança.  O pai, um rei “repleto de sabedoria” que “gostava de bibliotecas, cinema, viagens e música” e que “tinha lido muito na vida, ponderado muito, errado algumas vezes, acertado outras tantas” decidiu “por adulto, por sábio, por saber do fim dos homens”, que o mundo precisava de um príncipe: “um novo homem, um homem melhor e mais sábio, herdeiro de tudo que já se sabe, inventor de coisas novas, planejador de estripulias”. Em um “reino repleto de ideias esvoaçantes, de coerências tumultuantes, de certezas indignadas e de ponderações itinerantes”, Frederico, o príncipe, nasceu. Em um “castelo encantador, com escadas emolientes, cômodos vasculháveis, abraços estonteantes e banhos de piscina”, diz a narrativa, Frederico crescia, amadurecia e virava rei.
Ao explorar o encantamento que os adultos indicam ter quando planejam o nascimento de um filho, as expectativas e as apostas, a narrativa denuncia que as coisas nem sempre saem como se planeja. Ao ilustrar a narrativa, as crianças selecionaram cenas marcantes, como a piscina, o rei, o príncipe e o castelo e o príncipe em diálogo com a irmã.
A segunda narrativa escolhida para ilustrar o trabalho desenvolvido foi A Fome da água que aborda, de maneira metafórica, o afogamento de um menino em sua piscina, em casa. Salvo, ele aprende que a água invade espaços. Importante ressaltar que a participação das crianças – ilustradoras das narrativas escolhidas como representativas do projeto ocorreu de acordo com o trabalho desenvolvido pelas professoras. A primeira narrativa, Frederico, o Príncipe, teve como ilustradores, crianças entre cinco e seis anos, que frequentavam uma escola infantil em 2013. A segunda, A fome da água, foi ilustrada por crianças de um segundo ano (entre oito e onze anos) de uma EEEF em um bairro periférico da cidade de Pelotas, no ano de 2015.

4.      Conclusões
Ouvir histórias lidas, desde há muito tempo é um hábito que envolve prazer, instrução e informação. Reunir-se para ouvir alguém ler tornou-se também uma prática necessária na Idade Média, pois, segundo Manguel (1999), até a invenção da imprensa, a alfabetização era rara e os livros, propriedade dos ricos, privilégio de um pequeno punhado de leitores.
Diferenciada das demais linguagens por ser intrinsecamente interdisciplinar, a leitura literária é comprometida com a capacidade ancestral de imaginar e confunde, intencionalmente, o belo com o útil, o lúdico com o razoável, devendo ser apresentada às crianças logo que elas dão início ao contato com o mundo. Para Machado (2012), ela se expressa, inicialmente, nas cantigas de pai e mãe para seu bebê ao colo e, depois, à medida que este vai crescendo, “novas formas de criação verbal lhe vão sendo oferecidas pelos mais velhos – jogos, brincadeiras, parlendas, adivinhas, trovas. E histórias, muitas histórias” (MACHADO, 2012, p. 11) que ficam guardadas na memória integrando seu legado cultural, sua herança, seu repertório particular. 
 A literatura na escola, para que ocorra, pressupõe um processo de alfabetização literária que não é espontâneo. Como resultado de uma intencionalidade, deve ter planejamento. Neste cabem algumas etapas, sem as quais o processo poderá não ter êxito. O objetivo da alfabetização literária é tornar as crianças ouvintes competentes e leitores fluentes e, o processo de formação desse leitor ocorre, de acordo com Machado (2008), quando a criança entra em contato com narrativas, provérbios, ditos populares, adivinhas, parlendas, textos ficcionais e poéticos através das vozes do universo familiar e, logo depois, de forma organizada e frequente, passa a conhecer os impressos – preponderantemente livros – que apresentam, em verso e em prosa, o repertório de nossa cultura escrita.
Quando as crianças ingressam nos anos finais do Ensino Fundamental, se estiverem alfabetizadas literariamente, poderão interagir sem mediadores com a cultura letrada que as envolve. Desse modo, passam a escolher o que ler, quando, com que frequência e até mesmo indicar livros que gostam. Mesmo nesse momento, segundo Machado (2008), “o trabalho dos professores, continua a ser imprescindível no sentido de ampliar, a cada etapa da escolaridade, as experiências literárias de seus alunos”.
Na experiência desenvolvida, a proposição de estabelecer um vínculo imediato entre autor/mediador através do envio de narrativas às professoras e seus alunos, foi alcançado. Como primeiro passo, as professoras puderam ler as narrativas na tela do computador, escolher entre várias a mais adequada aos seus pequenos ouvintes, incentivá-los a ilustrar com materiais gráficos variados. Diante do resultado, professoras e crianças puderam usufruir de um produto partilhado em que cada ator estava representado em igual medida e importância, dividindo a criação e projetando novas experiências. As crianças, na escola, puderam ver seus desenhos em outras dimensões, partilhar sua produção com os demais e ler novamente o conto, agora ilustrado.
Doce, a “literatura infantil contemporânea deve deleitar os pequenos leitores, cumprindo seu destino estético”, mas, “ao mesmo tempo, deve ser útil, atendendo as demandas históricas” sugere Paulino (2010, p. 115).

Referências Bibliográficas
ABRAMOVICH, F. (1997). Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione.
ANTUNES, C. (2013). Mediadores de Leitura. Entrevistas. São Paulo: TV Cultura, 05/08/2013.
FISCHER. L. A. (2011). Filosofia Mínima. Porto Alegre: Arquipélago Editorial.
HUNT, P. (2010) Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Cosac Naify.
LÜDKE, M. & ANDRÉ, M. (1986). Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo: EPU.
MACHADO, A. M. (2012). Uma rede de casas encantadas. São Paulo: Moderna.
MANGUEL, A. 1999. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras.
NOVAES COELHO, N. 2000. Literatura Infantil: Teoria, Análise e Didática. São Paulo: Moderna.
PAULINO, G. (2010). Das leituras ao letramento literário. 1979-1999. Belo Horizonte – Pelotas: Editora FaE/UFMG - EDUFPel, 2010.
ROSA, C. Alfabetização Literária. Alfabeto à Parte. Disponível em: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/2015/06/alfabetizacao-literaria-o-que-e.html
ROSA, C. M. (2012). Infância sem literatura: não em casa, na escola menos... In: ROSA, C. M. (org.). Escritas, Leitores e História da Leitura. Pelotas: Editora da UFPel.
ROSA, C. M. (2014) Literatura Infantil Clássica na Escola: Autores, Obras, Práticas. Licenciatura em Pedagogia. Literatura Infantil. Pesquisa de Campo. Pelotas: UFPel, 2014.
ROSA, C. M. (2014a). Entrevistas com Alfabetizadoras. Licenciatura em Pedagogia. TPP IV. Pesquisa de Campo. Pelotas: UFPel.
ROSA, C. M. 2013. Literatura no Rio Grande do Sul: autores, gêneros, eventos. X Jogo do Livro. Belo Horizonte: CEALE/UFMG.
TODOROV, T. (2012). A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro: Difel.




[i] Refere-se à pesquisa intitulada: “Literatura Infantil Clássica na Escola: Autores, Obras, Práticas” (ROSA, 2014). Tendo como informantes professoras alfabetizadoras descritas quanto à formação, idade, tempo de magistério e local onde atua, foi desenvolvida em 2013 e teve como curiosidades as seguintes questões: A professora lê para as crianças? Qual a frequência? O que lê para suas crianças? Registra o que lê? Onde? Há eventos de leitura na escola? Quais? Onde ocorrem? Quais os autores que admira? Como escolhe o que vai ler para as crianças? O que indica da Biblioteca da escola para ser lido em sala de aula? Especialmente no que tange aos clássicos infantis, a pesquisa buscou saber se a professora conhecia, quais contos e autores apreciava, se possuía acervo, se lia e com que frequência, quais as obras que lidas em 2013 e se estas eram originais ou recontos.
[ii] A aprendizagem da língua materna, nos anos iniciais de escolaridade, tem como atributo principal, a inserção das crianças no mundo da escrita socialmente valorizada. No entanto, de acordo com pesquisa realizada (ROSA, 2014a), ainda é vista como “ensino” e a maioria dos professores opta por ignorar que o processo de aprendizagem é anterior ao ingresso da criança na escola. Iniciam a alfabetização pela apresentação de parcelas ínfimas da língua como a letra, a sílaba e/ou a sonoridade, com um muito restrito universo vocabular, além de procedimentos de ensino que denotam falta de método e metodologia.
[iii] Estudos sobre o que é a literatura para crianças, seus autores e obras, critérios para escolha do que ler, frequência de leitura adequada para a formação de leitores, o que são e como se organizam eventos literários na sala de aula, na escola e na sociedade, organização e uso da Biblioteca escolar, diferença entre repertório e acervo além de acesso à crítica literária, representada por estudiosos como Hunt (2010), Machado (2011), Paulino (2010) e Todorov (2012), entre outros.
[iv] Estudos sobre o que é a literatura para crianças, seus autores e obras, critérios para escolha do que ler, frequência de leitura adequada para a formação de leitores, o que são e como se organizam eventos literários na sala de aula, na escola e na sociedade, organização e uso da Biblioteca escolar, diferença entre repertório e acervo além de acesso à crítica literária, representada por estudiosos como Hunt (2010), Machado (2011), Paulino (2010) e Todorov (2012), entre outros.
[v] Como exemplo, os textos todos da primeira metade do século XX, produzidos pelos inventores da literatura para crianças no Brasil, entre eles, Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Erico Verissimo, Mário Quintana. Há muito de pedagógico, formador, educador dos bons hábitos nesses pioneiros. Uma literatura útil, portanto.
[vi] A condição para integrar a experiência foi atuar em escolas públicas (com crianças entre zero e onze anos) e ter uma das seguintes formações: Projeto de Extensão em Leitura Literária Alfabeta; Disciplina Optativa Literatura Infantil (Pedagogia/FaE/UFPel); Especialização em Alfabetização e Letramento (FaE/UFPel).

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Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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