Uma das constatações iniciais, quando
da primeira experiência com uma nova turma para a leitura literária é encontrar
crianças que não estão habituadas a “ouvir” histórias.
Como? Todos somos acostumados a ouvir
histórias... Sim, somos. Desde pequenos e como filhos de humanos, somos criados
ouvindo histórias. Próprias (de nossa família, de nós mesmo, de familiares ou
mesmo animais de estimação) e não só.
No entanto, na escola, por que é que
as crianças não apresentam um comportamento de ouvintes? Por que não se calam
para ouvir? Por que é que querem falar todas ao mesmo tempo?
Crianças que não escutam, não foram
ensinadas a ouvir?
Descobri que as crianças, pequenas
ainda, têm nenhum ou parco contato com o hábito de ouvir histórias lidas, em
voz alta, pelos adultos que os cercam. Adultos contam histórias, mas não leem. Adultos
não indicam para as crianças que ler histórias é uma das formas de entrar em
contato com as histórias dos outros, inventadas e escritas por outros que não
os familiares. Adultos raramente leem para seus pequenos e, mais raro ainda,
comunicam o que sentem quando leem. Gostaram? Emocionaram-se? Sentiram raiva?
Dor? Angústia? Ou seja, foram tocados pela narrativa lida?
Os adultos que as crianças conhecem –
avós, pais, tios, irmãos mais velhos – contam histórias. Oralmente. E quando
leem, leem coisas de adulto como jornais, livros, revistas, encartes, contas,
extratos, documentos, sites, blogs... Leem para si, não para as crianças.
Adultos não costumam dividir com seus rebentos as emoções que sentem ao ler.
Costumam esconder. Adultos nem sempre sabem que o exemplo de leitor é um
poderoso formador de novos leitores.
Assim, essa prática – ouvir histórias
lidas – precisa ser apresentada às crianças. Isso mesmo, precisamos
torná-las ouvintes. Precisamos ensinar a elas os "rudimentos do comportamento
leitor".
E o que são rudimentos?
Rudimentos são as primeiras noções,
os princípios de uma ciência, língua ou arte.
Literatura é arte. Então, apresentar
os rudimentos da literatura é alfabetizar literariamente.
1º rudimento: Ouvir
O que é ouvir? Ouvir
é deliciar-se com a voz do outro, é permitir que essa voz seja
portadora de segredos que os livros possuem. É esperar, em uma pausa, para
ouvir mais. Mais segredos, mais pausas, mais segredos...
Infinitamente.
Ouvir é ser o interlocutor do autor,
do texto escrito por ele, do mediador e de sua voz que, apaixonadamente,
escolheu um fragmento de nossa cultura para nos encantar, para nos transformar,
para nos enredar: em segredos, mistérios, pensamentos, possibilidades.
Ouvir é dar voz a alguém. Ouvir é esperar.
Ouvir é aprender a ler. Inclusive, o silêncio.
2º rudimento: Pensar
O que é pensar? Pensar é conversar
com as ideias do texto.
É tramar as tramas já tramadas pelo
autor e seus personagens.
É inventar perguntas para cada um
deles. E logo depois, inventar as respostas. E novas perguntas. E duvidar das
respostas...
Pensar é exercer uma capacidade
exclusiva da espécie humana.
Pensar é ser humano.
E sofrer e amar por isso.
Pensar é reescrever a obra que está
sendo lida, apenas na imaginação.
E isso é muuuuuuiiiiiito importante.
3º rudimento: Emocionar-se
O que é emocionar-se? Emocionar-se é
se entregar ao autor.
É dar visibilidade a suas
invencionices, é permitir que elas nos invadam e nos convençam.
Emocionar-se é sofrer com os
maltratados, gargalhar com os bem humorados, desconfiar com os curiosos.
Nos livros, há muitos abandonados
precisando de nossa lágrima, muitos solitários demandando nosso abraço, muitos
palhaços querendo nosso riso, muitos amores querendo nossa cumplicidade.
Emocionar-se é viver, intensamente,
as emoções que os livros prometem.
E entregam.
Por fim...
Depois de ouvir, pensar e
emocionar-se, estamos prontos para ler. Por isso, rudimentos. São
passinhos anteriores ao lugar de leitor. Como as pedras que brilhavam deixadas
por João, o irmão da Maria, nas trilhas da floresta.
Com as pedras, dá para retornar.
Com migalhas, não.
Para ler, para si e para os outros,
para ser um mediador de leitura, é só seguir os passinhos: ouvir, pensar,
emocionar-se.
Simples assim.
Quer tentar?
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