segunda-feira, 20 de julho de 2015

Rudimentos de um comportamento leitor: ouvir, pensar, emocionar-se

Uma das constatações iniciais, quando da primeira experiência com uma nova turma para a leitura literária é encontrar crianças que não estão habituadas a “ouvir” histórias.
Como? Todos somos acostumados a ouvir histórias... Sim, somos. Desde pequenos e como filhos de humanos, somos criados ouvindo histórias. Próprias (de nossa família, de nós mesmo, de familiares ou mesmo animais de estimação) e não só.
No entanto, na escola, por que é que as crianças não apresentam um comportamento de ouvintes? Por que não se calam para ouvir? Por que é que querem falar todas ao mesmo tempo?
Crianças que não escutam, não foram ensinadas a ouvir?
Descobri que as crianças, pequenas ainda, têm nenhum ou parco contato com o hábito de ouvir histórias lidas, em voz alta, pelos adultos que os cercam. Adultos contam histórias, mas não leem. Adultos não indicam para as crianças que ler histórias é uma das formas de entrar em contato com as histórias dos outros, inventadas e escritas por outros que não os familiares. Adultos raramente leem para seus pequenos e, mais raro ainda, comunicam o que sentem quando leem. Gostaram? Emocionaram-se? Sentiram raiva? Dor? Angústia? Ou seja, foram tocados pela narrativa lida?
Os adultos que as crianças conhecem – avós, pais, tios, irmãos mais velhos – contam histórias. Oralmente. E quando leem, leem coisas de adulto como jornais, livros, revistas, encartes, contas, extratos, documentos, sites, blogs... Leem para si, não para as crianças. Adultos não costumam dividir com seus rebentos as emoções que sentem ao ler. Costumam esconder. Adultos nem sempre sabem que o exemplo de leitor é um poderoso formador de novos leitores.
Assim, essa prática – ouvir histórias lidas – precisa ser apresentada às crianças. Isso mesmo, precisamos torná-las ouvintes. Precisamos ensinar a elas os "rudimentos do comportamento leitor".
E o que são rudimentos?
Rudimentos são as primeiras noções, os princípios de uma ciência, língua ou arte.
Literatura é arte. Então, apresentar os rudimentos da literatura é alfabetizar literariamente.

1º rudimento: Ouvir
O que é ouvir?  Ouvir é deliciar-se com a voz do outro, é permitir que essa voz seja portadora de segredos que os livros possuem. É esperar, em uma pausa, para ouvir mais. Mais segredos, mais pausas, mais segredos...
Infinitamente.
Ouvir é ser o interlocutor do autor, do texto escrito por ele, do mediador e de sua voz que, apaixonadamente, escolheu um fragmento de nossa cultura para nos encantar, para nos transformar, para nos enredar: em segredos, mistérios, pensamentos, possibilidades.
Ouvir é dar voz a alguém. Ouvir é esperar. Ouvir é aprender a ler. Inclusive, o silêncio.

2º rudimento: Pensar
O que é pensar? Pensar é conversar com as ideias do texto.
É tramar as tramas já tramadas pelo autor e seus personagens.
É inventar perguntas para cada um deles. E logo depois, inventar as respostas. E novas perguntas. E duvidar das respostas...
Pensar é exercer uma capacidade exclusiva da espécie humana.
Pensar é ser humano.
E sofrer e amar por isso.
Pensar é reescrever a obra que está sendo lida, apenas na imaginação.
E isso é muuuuuuiiiiiito importante.

3º rudimento: Emocionar-se
O que é emocionar-se? Emocionar-se é se entregar ao autor.
É dar visibilidade a suas invencionices, é permitir que elas nos invadam e nos convençam.
Emocionar-se é sofrer com os maltratados, gargalhar com os bem humorados, desconfiar com os curiosos.
Nos livros, há muitos abandonados precisando de nossa lágrima, muitos solitários demandando nosso abraço, muitos palhaços querendo nosso riso, muitos amores querendo nossa cumplicidade.
Emocionar-se é viver, intensamente, as emoções que os livros prometem.
E entregam.
Por fim...
Depois de ouvir, pensar e emocionar-se, estamos prontos para ler. Por isso, rudimentos. São passinhos anteriores ao lugar de leitor. Como as pedras que brilhavam deixadas por João, o irmão da Maria, nas trilhas da floresta.
Com as pedras, dá para retornar.
Com migalhas, não.  
Para ler, para si e para os outros, para ser um mediador de leitura, é só seguir os passinhos: ouvir, pensar, emocionar-se.
Simples assim.
Quer tentar?

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Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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