Uma das perguntas mais frequentes que costumo fazer a
professores é: tu contas ou lês histórias aos teus pequenos ouvintes?
Muitos deles estranham a pergunta e indicam desconhecer os
atributos do ler e do contar e mesmo o impacto dessas duas concorrentes e
importantes formas de mediar o mistério.
O estranhamento à pergunta é compreendido por mim como
indicativo de que parte significativa dos mediadores que está nas salas de aula
utiliza essas duas importantes práticas escolares de alfabetização literária
indiscriminadamente.
No entanto, há diferenças entre ler e contar.
Contar é antropológico. Contar é ancestral. Contar é acessar
um repertório individual e coletivo que faz sentido a determinada família ou
mesmo sociedade. Contar é narrar a experiência, é transmitir “a partir da
experiência”. Contar é narrar uma história, rememorar um fazer. É experimentar
o retorno a “certas emoções antigas e presentes”. Contar é tornar perene no
tempo “a partir do vislumbre de um narrador qualificado” o “sentido do que lhe
está sendo transmitido”. Contar é repassar adiante. Contar, por fim e de acordo
com Silveira (2011) “assim como a própria narrativa” não é um ato “desinteressado”,
ingênuo, espontâneo.
Contar é a selecionar eventos, formatos e epílogos que nem sempre
estão escritos. É a circunscrição de um grupo de palavras, expressões e
sentimentos que dependem dos disponíveis no repertório pessoal do contador, além
de suas escolhas morais, éticas, artísticas.
Contar é requerer e acionar um repertório particular: de
temas, personagens, enredos, tempos e modos de falar e rememorar. Mesmo que o
contador se utilize de textos longevos, universalizados pelo impacto e
repercussão – e Le petit chaperon rouge é o melhor exemplo - a forma de narrar
é própria e para tal concorre um léxico pessoal, restrito à experiência leitora
e narradora do sujeito, além de suas filiações históricas, políticas,
filosóficas e literárias.
Contar, então, pode ser uma aventura antropológica repleta
de aberturas para a construção de sentidos estéticos e literários. Mas não só.
Pode ser apenas uma subtração e/ou higienização de um texto originalmente rico,
bruto, autoral.
Ler é diferente.
Ler é cultural. Ler é reinventar a escrita. Ler é assumir
que a linguagem é uma “faculdade cognitiva exclusiva da espécie humana que
permite a cada indivíduo representar e expressar simbolicamente sua experiência
de vida, assim como adquirir, processar, produzir e transmitir conhecimento”
(BAGNO, 2014).
Como “seres muito particulares”, produzimos sentido “por
meio de símbolos, sinais, signos, ícones”. A escrita é uma dessas formas de
produzir sentido e pode ser conceituada como “um fenômeno social, uma forma de
ação e de interação social”. Assim, “produzir um texto significa dizer algo a
alguém, por algum motivo, de algum modo, em determinada situação” (FIAD &
VAL, 2014). Para Bagno (2014):
“Nenhum gesto humano é neutro, ingênuo, vazio de sentido:
muito pelo contrário, ele é sempre carregado de sentido, nos mais variados
graus, e cabe justamente à nossa capacidade de
linguagem interpretar o sentido implicado em cada manifestação dos
outros membros da nossa espécie”.
A produção de um texto, porém, exige um “leitor proficiente”,
aquele que não só “decodifica as palavras que compõem o texto escrito”, mas,
também, “constrói sentidos de acordo com as condições de funcionamento do
gênero em foco”. Para tal, mobiliza “um conjunto de saberes sobre a língua”,
representado por “outros textos, o gênero textual, o assunto focalizado, o
autor do texto, o suporte e os modos de leitura”, de acordo com Da Mata (2014).
A produção de um texto demanda ainda, um “mediador",
uma pessoa que estende “pontes entre os livros e os leitores”. Medidores
selecionam “livros que fascinam” e, assim, transformam pessoas em leitores. Para
Reyes (2014), o mediador é necessário desde tenra infância. Em suas palavras:
“Durante a primeira infância, quando a criança não lê
sozinha, a leitura é um trabalho em parceria e o adulto é quem vai dando
sentido a essas páginas que para o bebê não seriam nada, sem sua presença e sua
voz. Por isso, os primeiros mediadores de leitura são os pais, as mães, os avós
e os educadores da primeira infância e, paulatinamente, à medida que as
crianças se aproximam da língua escrita, vão se somando outros professores,
bibliotecários, livreiros e diversos adultos que acompanham a leitura das
crianças” (REYES, 2014, p. 213-214).
Na leitura, empresto minha voz - tons, suspiros, silêncios, entonação,
dor e alegria - para colorir, discernir, enfeixar, aprofundar, desvendar as
palavras escritas por outrem, o autor. Empresto dele o invento e me empresto
para mediar.
Assim, a leitura, diferente da contação de histórias, oportuniza
o contato com o texto literário que, apesar do tempo e do mediador, mantém-se
inalterado, com o léxico, a estrutura textual e as escolhas poéticas do autor.
Um bom mediador dá nome a quem de direito: ao autor, a
autoria; ao mediador, os sentimentos todos que encontrou ali e quer perpetuar,
divulgar, evidenciar.
Concluindo: Ler é diferente de contar.
Ler é diferente de contar. Não é mais nem menos.
É diferente.
Na escola, a criança – aprendiz da espécie humana que
através da fala e pela escrita aprende a organizar o pensamento – acessa, com a
audição de histórias lidas, contato e aprimoramento das relações com a cultura
escrita, uma de nossas maiores conquistas antropológicas.
Ler para os pequenos desde tenra infância, então, é
inseri-los no que de melhor produzimos como “sapiens”: a escrita autoral ou, um
modo particular de ver/sentir/narrar o mundo.
Sugestões
de leitura:
BAGNO, Marcos. Linguagem. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/linguagemDA MATA, M. Leitor Proficiente. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/leitor-proficienteFIAD, R. & VAL, M. Produção de textos. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/producao-de-textosREYES, Y. 2014. Mediadores de Leitura. Tradução de Elizabeth Guzzo de Almeida. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/mediadores-de-leituraSILVEIRA, N. Saber cuidar, saber contar: ensaios de antropologia e saúde popular. Resenha. Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva. Disponível em: file:///C:/Documents%20and%20Settings/Administrador/Meus%20documentos/Downloads/982-2076-1-PB.pdf
BAGNO, Marcos. Linguagem. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/linguagemDA MATA, M. Leitor Proficiente. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/leitor-proficienteFIAD, R. & VAL, M. Produção de textos. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/producao-de-textosREYES, Y. 2014. Mediadores de Leitura. Tradução de Elizabeth Guzzo de Almeida. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/mediadores-de-leituraSILVEIRA, N. Saber cuidar, saber contar: ensaios de antropologia e saúde popular. Resenha. Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva. Disponível em: file:///C:/Documents%20and%20Settings/Administrador/Meus%20documentos/Downloads/982-2076-1-PB.pdf
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