terça-feira, 7 de julho de 2015

Ler ou contar? Ler e contar

Ler ou contar? Ler e contar!
Cristina Maria Rosa

Uma das perguntas mais frequentes que costumo fazer a professores é: tu contas ou lês histórias aos teus pequenos ouvintes?
Muitos deles estranham a pergunta e indicam desconhecer os atributos do ler e do contar e mesmo o impacto dessas duas concorrentes e importantes formas de mediar o mistério.
O estranhamento à pergunta é compreendido por mim como indicativo de que parte significativa dos mediadores que está nas salas de aula utiliza essas duas importantes práticas escolares de alfabetização literária indiscriminadamente.
No entanto, há diferenças entre ler e contar.
Contar é antropológico. Contar é ancestral. Contar é acessar um repertório individual e coletivo que faz sentido a determinada família ou mesmo sociedade. Contar é narrar a experiência, é transmitir “a partir da experiência”. Contar é narrar uma história, rememorar um fazer. É experimentar o retorno a “certas emoções antigas e presentes”. Contar é tornar perene no tempo “a partir do vislumbre de um narrador qualificado” o “sentido do que lhe está sendo transmitido”. Contar é repassar adiante. Contar, por fim e de acordo com Silveira (2011) “assim como a própria narrativa” não é um ato “desinteressado”, ingênuo, espontâneo.
Contar é a selecionar eventos, formatos e epílogos que nem sempre estão escritos. É a circunscrição de um grupo de palavras, expressões e sentimentos que dependem dos disponíveis no repertório pessoal do contador, além de suas escolhas morais, éticas, artísticas.
Contar é requerer e acionar um repertório particular: de temas, personagens, enredos, tempos e modos de falar e rememorar. Mesmo que o contador se utilize de textos longevos, universalizados pelo impacto e repercussão – e Le petit chaperon rouge é o melhor exemplo - a forma de narrar é própria e para tal concorre um léxico pessoal, restrito à experiência leitora e narradora do sujeito, além de suas filiações históricas, políticas, filosóficas e literárias.
Contar, então, pode ser uma aventura antropológica repleta de aberturas para a construção de sentidos estéticos e literários. Mas não só. Pode ser apenas uma subtração e/ou higienização de um texto originalmente rico, bruto, autoral.
E o que é ler?
Ler é diferente.
Ler é cultural. Ler é reinventar a escrita. Ler é assumir que a linguagem é uma “faculdade cognitiva exclusiva da espécie humana que permite a cada indivíduo representar e expressar simbolicamente sua experiência de vida, assim como adquirir, processar, produzir e transmitir conhecimento” (BAGNO, 2014).
Como “seres muito particulares”, produzimos sentido “por meio de símbolos, sinais, signos, ícones”. A escrita é uma dessas formas de produzir sentido e pode ser conceituada como “um fenômeno social, uma forma de ação e de interação social”. Assim, “produzir um texto significa dizer algo a alguém, por algum motivo, de algum modo, em determinada situação” (FIAD & VAL, 2014). Para Bagno (2014):

“Nenhum gesto humano é neutro, ingênuo, vazio de sentido: muito pelo contrário, ele é sempre carregado de sentido, nos mais variados graus, e cabe justamente à nossa capacidade de linguagem interpretar o sentido implicado em cada manifestação dos outros membros da nossa espécie”.

A produção de um texto, porém, exige um “leitor proficiente”, aquele que não só “decodifica as palavras que compõem o texto escrito”, mas, também, “constrói sentidos de acordo com as condições de funcionamento do gênero em foco”. Para tal, mobiliza “um conjunto de saberes sobre a língua”, representado por “outros textos, o gênero textual, o assunto focalizado, o autor do texto, o suporte e os modos de leitura”, de acordo com Da Mata (2014).
A produção de um texto demanda ainda, um “mediador", uma pessoa que estende “pontes entre os livros e os leitores”. Medidores selecionam “livros que fascinam” e, assim, transformam pessoas em leitores. Para Reyes (2014), o mediador é necessário desde tenra infância. Em suas palavras:

“Durante a primeira infância, quando a criança não lê sozinha, a leitura é um trabalho em parceria e o adulto é quem vai dando sentido a essas páginas que para o bebê não seriam nada, sem sua presença e sua voz. Por isso, os primeiros mediadores de leitura são os pais, as mães, os avós e os educadores da primeira infância e, paulatinamente, à medida que as crianças se aproximam da língua escrita, vão se somando outros professores, bibliotecários, livreiros e diversos adultos que acompanham a leitura das crianças” (REYES, 2014, p. 213-214).

Na leitura, empresto minha voz - tons, suspiros, silêncios, entonação, dor e alegria - para colorir, discernir, enfeixar, aprofundar, desvendar as palavras escritas por outrem, o autor. Empresto dele o invento e me empresto para mediar.
Assim, a leitura, diferente da contação de histórias, oportuniza o contato com o texto literário que, apesar do tempo e do mediador, mantém-se inalterado, com o léxico, a estrutura textual e as escolhas poéticas do autor.
Um bom mediador dá nome a quem de direito: ao autor, a autoria; ao mediador, os sentimentos todos que encontrou ali e quer perpetuar, divulgar, evidenciar.

Concluindo: Ler é diferente de contar.
Ler é diferente de contar. Não é mais nem menos.
É diferente.
Na escola, a criança – aprendiz da espécie humana que através da fala e pela escrita aprende a organizar o pensamento – acessa, com a audição de histórias lidas, contato e aprimoramento das relações com a cultura escrita, uma de nossas maiores conquistas antropológicas.
Ler para os pequenos desde tenra infância, então, é inseri-los no que de melhor produzimos como “sapiens”: a escrita autoral ou, um modo particular de ver/sentir/narrar o mundo.

Sugestões de leitura:
BAGNO, Marcos. Linguagem. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/linguagemDA MATA, M. Leitor Proficiente. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/leitor-proficienteFIAD, R. & VAL, M. Produção de textos. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/producao-de-textosREYES, Y. 2014. Mediadores de Leitura. Tradução de Elizabeth Guzzo de Almeida. Glossário CEALE. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/mediadores-de-leituraSILVEIRA, N. Saber cuidar, saber contar: ensaios de antropologia e saúde popular. Resenha. Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva. Disponível em:  file:///C:/Documents%20and%20Settings/Administrador/Meus%20documentos/Downloads/982-2076-1-PB.pdf




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Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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