1. Como é o processo
de pesquisa e busca por obras até então "escondidas", como "Meu
ABC" e "Artinha de Leitura"?
Todo processo de pesquisa parte de uma curiosidade e muitas pistas. Eu estudo
a alfabetização há 25 anos e seus impressos (manuais, cartilhas, livros) fazem
parte desse estudo.
Descobertas, nos dias atuais, são muito raras e muitas delas, fruto de
um longo período de respostas contrárias ao interesse de pesquisa.
No caso de Artinha de Leitura,
de João Simões Lopes Neto, sua existência era uma lenda até 2008, quando foi
encontrada em um acervo particular e doada à UFPel. No entanto, eu já havia
encontrado documentos que provavam sua existência, no Arquivo Público do RS, em
Porto Alegre. Ali, pude ler e fotografar duas Atas de reuniões do Conselho de
Instrução Pública que datam o desejo de JSLN de tornar sua Cartilha um livro
escolar e, infelizmente, a não aceitação da mesma. De posse desses documentos,
pude dimensionar as pretensões do autor.
Outro documento que pertence ao tempo da lenda é Ligeira Contradita, que ainda hoje circula como um tesouro entre os aficionados por JSLN. É uma carta
argumentativa, endereçada ao mesmo Conselho de Instrução Pública que recusou a
publicação de Artinha de Leitura.
Manuscrita por JSLN, nela o escritor pelotense tece argumentos em defesa de seu
projeto e de sua cartilha, que dedicou às escolas urbanas e rurais.
Minha pergunta continua sendo: como circula entre os admiradores de JSLN
uma cópia de um documento que ninguém localiza? Por que este documento,
parcialmente ilegível, continua desaparecido? Se reconstruirmos seu caminho, ou
seja, descobrirmos de quem cada um dos detentores da cópia ganhou a sua, será
que não descobriríamos o original? E pergunto ainda: que tipo de interesse
mantém esse documento longe dos acervos públicos? Fazer e, mais especialmente,
responder essas perguntas faz parte de meu processo de busca.
No caso de Meu ABC, de Erico Verissimo, o processo de busca e descoberta
contou com uma ampla rede de informações.
Organizada e plural, a memória preservada no ALEV – Acervo Literário
Erico Verissimo – hoje depositado em Comodato no Instituto Moreira Sales, no
Rio de Janeiro, permite saber o que há de
e sobre Erico Verissimo. Seus
originais (rascunhos, desenhos, correções, discursos, aulas, projetos, mapas)
estão catalogados. Mais que isso, a fortuna crítica (tudo o que se escreveu sobre
sua obra) pode ser acessado nos acervos das Universidades, digitalizados ou não.
E também em bibliotecas, livrarias e sebos. Isso facilita o trabalho de um
pesquisador e o posiciona a respeito de seu pretenso ineditismo. Ao ler a
fortuna crítica, o pesquisador pode descobrir que é mais um, entre muitos, a estudar
O Tempo e o Vento, por exemplo.
Com relação ao processo de pesquisa de Meu ABC, o abecedário de Erico
que ficou “desaparecido” por longos anos (77), foi, como afirmou Glória Bordini
ontem (17/12/2013), no Centro Cultural Erico Verissimo) a culminância da vida
de qualquer pesquisador. Ninguém havia estudado Meu ABC. O trabalho que
desenvolvi é o primeiro e, por seu ineditismo, já possui valor. Mais que isso,
ao perceber que Verissimo não assinou nem datou um de seus livros – o único,
aparentemente – precisei buscar fontes seguras para afirmar que, sim, Meu ABC integra seu legado, é mais um de
seus livros. Assim, as fontes (documentais e orais) são fundamentais para o
trabalho do pesquisador e integram seu processo de pesquisa e reconhecimento na
comunidade acadêmica.
As fontes que pude contar (todas arroladas nas referências de meu livro)
iniciaram pela leitura das memórias de Erico Verissimo, Solo de Clarineta (I e
II) e pelos demais livros escritos por Erico para a infância (onze). Neles há
muitas revelações e algumas pistas que, juntas, levam a outros livros,
documentos, artigos e pessoas.
Pessoas que o conheceram profundamente (estou mencionando conhecimento
literário e não apenas familiar ou amizades)estão vivas e pude entrevistá-las. Nesse grupo,
Gloria Bordini e Flávio Loureiro Chaves são as maiores autoridades e foram ouvidos
por mim: Bordini, por ter inventariado o legado de Verissimo a pedido da viúva,
à época. E por ter sido umas das organizadoras do ALEV; Chaves, por ter
concluído Solo de Clarineta após a
morte de Erico, além de ter orientado inúmeros trabalhos sobre Erico na UFRGS.
Além de informações preciosas, os dois estudiosos sabem mencionar a importância
de um trabalho como o meu e atestar, acadêmica e publicamente, o seu valor.
Isso também constitui o trabalho do pesquisador, pois suas descobertas
necessitam ser partilhadas e atestadas publicamente.
Meu ABC, o abecedário escrito por Verissimo, foi editado apenas uma vez,
publicado em três tiragens (1936, 1940 e 1945) atingiu 27.500 exemplares. É
muito. Como desapareceu? Essa pergunta dirigiu meu trabalho e, mesmo com
respostas bastante confiáveis, ainda pergunto: Onde está Meu ABC? Como não
integra acervos no RS? Como foi ignorado pela crítica literária por 77 anos?
Uma curiosidade: quando meu livro ficou pronto tendo como informação a
existência de apenas um exemplar de Meu
ABC no RS, brincando, anunciei a meus alunos que, no lançamento, um casal
de velhinhos iria se aproximar com um exemplar nas mãos. Dito e feito: em Porto
Alegre, ontem, Eda, uma senhora de 83 anos, em voz entrecortada pela emoção,
veio até mim e contou sua história de alfabetização com um exemplar de Meu ABC,
presente de natal da família quando criança. E mencionou o projeto cultural que
o livro oferece aos pequenos de sua época. Minha pergunta depois disso: Foi
sorte de pesquisador encontrar Eda?
Qual a importância da
descoberta destas obras para a alfabetização e inserção da criança no mundo dos
livros?
Descobrir é muito bom, dá prazer intelectual e retorno pessoal. Indica
que estás no caminho certo, no foco, inserido na comunidade científica, mesmo
produzindo em uma Universidade periférica, parcialmente reconhecida entre as
maiores do país. No entanto, as descobertas têm de ter endereçamento e, no caso
das descobertas científicas, devem estar a serviço do público. E isso não
apenas porque estudo e trabalho financiada por recursos públicos. O endereçamento
público, ou seja, o conhecimento para todos, é a razão de existência da
Universidade.
Ao descobrir o Abecedário de Erico Verissimo, pude relacioná-lo com
outros documentos de igual valor já descobertos em aproximadamente 120 anos de
história de impressos para alfabetizar no Brasil. Pude também, inseri-lo na
historiografia da alfabetização e pude dimensioná-lo na produção literária para
a infância.
Por ter sido precedida por outras pesquisadoras, entre eles Glória
Bordini, Iole Trindade, Maria do Rosário Longo Mortatti e Regina Zilberman, no
mapeamento e categorização de impressos para letrar no Rio Grande do Sul e no
Brasil, é que me tornei a pesquisadora que sou. Isso significa dizer que ninguém
pesquisa sozinho, que ninguém se inventa do nada. Pelo contrário, me espelho em
procedimentos e trajetos já percorridos, aprendo com a tradição teórica e
metodológica quando me aventuro em buscas. A ideia de superar um conhecimento
anteriormente assentado está, do meu ponto de vista, equivocada. Penso que
acrescentamos, mesmo ao discordar. Só por reconhecer o que há anteriormente é
que nos lançamos em busca do desconhecido e nem sempre um conhecimento novo ou
publicado recentemente significa melhor, maior, mais importante.
Respondendo a segunda parte de tua pergunta
acerca da importância da
descoberta destas obras para a inserção da criança no mundo dos livros eu
diria que as crianças de hoje têm muitas possibilidades de conhecer o
significado da leitura e, mesmo assim, poucas conhecem.
Estudos me levaram a concluir que o que mais faz falta, no processo de
significado, é a atitude do mediador. Mediador é a pessoa que apresenta o livro
à criança e pode ser o pai, a avó, a mãe, um irmão mais velho e também o
professor. Diferente do professor, os demais não têm essa obrigação. Podem ou
não saber da importância do livro na vida de uma criança. O professor não. Ele
tem obrigação de saber e de mediar o processo de aprendizagem do gostar de ler.
Ao descobrir uma obra antiga, que inseriu crianças no mundo da leitura,
posso dimensionar como isso se dava em 1936, por exemplo, tempos em que minha
mãe era criança. E posso, então, apresentar a meu filho, um vínculo que só
aparentemente é familiar, mas que faz parte da história da infância, primeiro,
e da história da alfabetização em especial. E isso não é pouco!
Como vês o atual
momento da literatura de alfabetização no Brasil?
Repleta de impressos de qualidade em termos de conteúdo e forma, a
literatura que pode ser acionada por um professor no processo de letramento de
crianças é muito facilmente encontrada. Chega até as escolas através de
políticas públicas como o PNBE/MEC, por exemplo, mas também através de outros
eventos de letramento que ocorrem na sociedade (saraus de leitura, indicações
de amigos e colegas, sebos, bibliotecas temáticas, feiras do livros, diálogos
com autores). Assim, o professor não pode mais dizer que não há o que ler. No
entanto, estamos nos tornando uma sociedade mais letrada, culta, por causa
disso? Em parte. Como eu afirmei, mediador é quem apresenta ao leitor o livro e
o significado da escrita na sociedade. Esse mediador tem de ser leitor e não
qualquer leitor. Tem de ler obras de qualidade, ter critérios para a escolha do
mostrar aos pequenos. E isso não se adquire espontaneamente. O mediador deve
ser educado e esse processo ocorre, ou deveria ocorrer, preponderantemente, na
Universidade.
Existe alguma outra
pesquisa em andamento relacionada alguma obra a ser encontrada?
A vida de um pesquisador só tem início, ele está, por princípio, sempre
interessado em novas descobertas. No momento, estou em busca de outros
exemplares de Meu ABC e, acredito, eles vão aparecer. Se assim for, poderemos
ampliar o acervo, hoje restrito a um original em um local público. A presença
da imprensa em nosso trabalho é fundamental para isso, uma vez que chega onde a
Universidade nem imagina estar. A senhora Eda, que conheci ontem, é um atestado
dessa possibilidade. Leu no jornal que haveria um diálogo sobre Meu ABC de Verissimo em Porto Alegre, e,
sozinha, de transporte público, foi até lá, se apresentou, contou sua história.
Assim, ontem mesmo “descobri” um novo exemplar de Meu ABC. Eu repetiria a
pergunta: sorte de pesquisador?
Essa entrevista foi concedida a Leon Sanguiné, Jornalista do Diário Popular, em 18/12/2013, por email.
Nenhum comentário:
Postar um comentário