sábado, 19 de agosto de 2017

Contar ou transmitir a partir da experiência não é ler!

Cristina Maria Rosa


Ler e contar são duas formas de mediar o mistério, duas importantes práticas de alfabetização literária que, na maioria dos casos, são usadas indiscriminadamente. No entanto, há diferenças entre ler e contar.

Contar é antropológico, ancestral. Contar é acessar um repertório individual e coletivo que faz sentido a determinada família ou mesmo sociedade. É narrar a experiência, é “transmitir a partir da experiência[1]”. Contar é propagar uma história, rememorar um fazer, um ocorrido, uma fatalidade. É experimentar o retorno a emoções já vividas, que se presentificam nas palavras e em silêncios. Contar é tornar perene no tempo “a partir do vislumbre de um narrador qualificado” o “sentido do que lhe está sendo transmitido”. Contar é repassar adiante e, de acordo com Silveira (2011) “assim como a própria narrativa”, contar não é um ato “desinteressado”, ingênuo, espontâneo.
Contar também é selecionar eventos, formatos e epílogos que nem sempre estão escritos e produzi-los oralmente. Neste fazer, o contador circunscreve um grupo de palavras, expressões e sentimentos integrantes de seu repertório e oferece, simultaneamente, suas escolhas éticas, morais, artísticas. Contar, então, é mobilizar um repertório particular: de temas, personagens, enredos, tempos e modos de falar e de reapresentar o passado que, de algum modo, vai se tornando o presente de quem ouve.
Ao contar, mesmo que o narrador acione textos que possuem a característica da longevidade, universalizados pelo impacto e repercussão – e Le petit Chaperon Rouge, de Charles Perrault, é um bom exemplo – a forma de narrar é própria e, para tal, concorre um léxico pessoal, restrito à experiência leitora e narradora do sujeito, além de suas filiações históricas, políticas, filosóficas e literárias. Contar um episódio, parte de uma empreitada, pode ser uma aventura antropológica repleta de aberturas para a construção de sentidos estéticos e literários. Mas nem sempre. Pode ser também e, apenas, uma subtração e/ou higienização de um texto originalmente bruto, rico, autoral.
As versões orais de narrativas clássicas nas quais há abrandamentos de temas e desfechos revelam as escolhas morais e éticas dos adultos que decidem o tipo de contato que a criança terá com a escrita original. Desse modo, interditam o leitor na vivência plena de um pacto com o autor. Versões abrandadas, com objetivo de atenuar ou mesmo postergar o contato com temas estruturadores da psique humana como a morte, a traição e o abandono, por exemplo, são encontradas em profusão, indicando uma indisposição ou incapacidade do adulto quanto ao tema, trama ou desfecho. Essas variantes aligeiradamente inventadas subestimam os ouvintes, omitem constructos literários, violam a obra, depreciam o trabalho do autor e relegam a criança a estruturas mais simples da língua, ignorando ou desdenhando sua capacidade de atribuir sentidos ao lido/fruído. O devaneio, a imaginação, a capacidade de criar, a inventividade, a fantasia são faculdades inerentes aos humanos que têm “necessidade de manifestar e dar corpo às suas capacidades inventivas”. Para Bartolomeu Campos de Queirós (2009):

Possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais elementos, que inauguram a vida, como essenciais para o seu crescimento. Nesse sentido é indispensável a presença da literatura em todos os espaços por onde circula a infância. Todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora.

Contar não é ler e ler é diferente de contar.
Ler é cultural, é reinventar a escrita, é assumir que a linguagem é uma “faculdade cognitiva exclusiva da espécie humana que permite a cada indivíduo representar e expressar simbolicamente sua experiência de vida” (BAGNO, 2014, p. 192). Como “seres muito particulares”, produzimos sentido “por meio de símbolos, sinais, signos, ícones”. A escrita é uma dessas formas de produzir sentido e pode ser conceituada como “um fenômeno social, uma forma de ação e de interação social”. Assim, “produzir um texto significa dizer algo a alguém, por algum motivo, de algum modo, em determinada situação” (FIAD & VAL, 2014, p. 264).
A produção de um texto, porém, exige um “leitor proficiente”, aquele que não só “decodifica as palavras que compõem o texto escrito”, mas, também, “constrói sentidos de acordo com as condições de funcionamento do gênero em foco”. Para tal, mobiliza “um conjunto de saberes sobre a língua”, representado por “outros textos, o gênero textual, o assunto focalizado, o autor do texto, o suporte e os modos de leitura”, de acordo com Da Mata (2014, p. 165).
A fruição de um texto demanda, também, um experiente da espécie que, ao exercer o ofício de mediador, “crie as condições para fazer com que seja possível que um livro e um leitor se encontrem”, em “rituais, momentos e atmosferas propícias” (REYES, 2014, p.213). Esta figura é preponderante para inserir novos e outros no processo de gostar de ler desde tenra infância, uma vez que os pequenos são inexperientes. Para Reyes (2014, p. 213):

Durante a primeira infância, quando a criança não lê sozinha, a leitura é um trabalho em parceria e o adulto é quem vai dando sentido a essas páginas que para o bebê não seriam nada, sem sua presença e sua voz. Por isso, os primeiros mediadores de leitura são os pais, as mães, os avós e os educadores da primeira infância e, paulatinamente, à medida que as crianças se aproximam da língua escrita, vão se somando outros professores, bibliotecários, livreiros e diversos adultos que acompanham a leitura das crianças.

Na leitura – prática letrada mais frequente em nossa vida social (Da Mata, 2014, p. 165) –, o leitor empresta sua voz e, através dela, os sons, alturas, tons, frequências e articulações para colorir, descobrir, adornar, esclarecer, incrementar, apurar, desenredar, duvidar, expor, declarar, revelar, desvelar, divulgar, manifestar, enfeixar, aprofundar, desvendar as tramas em palavras grafadas por outrem, o autor. Toma emprestado dele o invento – o livro e seus segredos – e se empresta ao ler. Torna-se instrumento encantado para apresentar o que o outro – o inventor – criou.
Assim, a leitura, diferente da contação de histórias, oportuniza o contato com o texto literário[2] que, apesar do tempo e do mediador, mantém-se inalterado, com o léxico, a estrutura textual e as escolhas poéticas, filosóficas, éticas – todas – do autor. Neste caso, é preservada a experiência estética com o texto produzido, única para cada sujeito leitor ou ouvinte. Nas palavras de Cunha (2014, p. 112-113):

[...] podemos entender a experiência estética literária como a soma da percepção/apreensão inicial de uma criação literária e das muitas reações (emocionais, intelectuais ou outras) que esta suscita (...). Tal produção literária é – ela também – uma experiência estética, cujo resultado seu criador quer fazer único e inconfundível, com marcas que ele gostaria que fossem percebidas pelo leitor como pegadas no caminho da leitura de sua obra. Assim, na descoberta dessas, (...) o leitor tem um papel de criação. (...) Isso torna a experiência com a leitura da obra literária algo tão rigorosamente pessoal para o leitor quanto foi a criação para seu autor. Por isso mesmo, é insubstituível a fruição surgida do contato direto (por audição, leitura ou até assistência da representação, no caso do teatro) com a obra literária: nenhuma resenha, nenhuma palavra de entusiasmo, nenhuma excelente ação de mediação que se faça necessária, para facilitar o encontro do leitor com a obra, pode dispensar seu corpo a corpo com o texto literário.

Ler é diferente de contar. Não é mais, nem menos. É diferente. Na escola, a criança – aprendiz da espécie humana que através da fala e pela escrita aprende a organizar o pensamento – acessa, com a audição de histórias lidas, contatos e aprimoramentos das relações com a cultura escrita, uma de nossas maiores conquistas antropológicas. Ler para os pequenos desde tenra infância, então, é inseri-los no que de melhor produzimos como “sapiens”: a escrita autoral ou, um modo particular de ver/sentir/narrar o mundo e, um bom mediador, dá nome a quem de direito: ao autor, a autoria; ao mediador, os sentimentos todos que encontrou ali e quer perpetuar, divulgar, evidenciar.



[1] No texto Experiência e Pobreza, o filósofo Walter Benjamin (1933), disserta sobre a perda da capacidade de contar histórias – e de, com elas, dar ensinamentos morais através do intercâmbio de experiências –, ocasionada pela dissolução dos vínculos familiares e pelo empobrecimento de experiências comunicáveis da população.
[2] “Modo muito singular de construir sentidos”, o contato com a linguagem literária oportuniza uma “intensidade” de interação com “a palavra que é só palavra” e uma experiência “libertária de ser e viver”, de acordo com Rildo Cosson (2014, p. 185). Para Cristina Álvares (2004, p. 1), a escrita literária tem três características fundamentais: “ela é coisa na/da linguagem, aquilo que na/da linguagem não é discurso, mas silêncio”, a escrita ou a leitura de um texto literário “é uma actividade que rompe (no sentido violento) o laço social” e, esta ruptura “tem um alcance e um valor sexuais”. “Prática cultural de natureza artística”, para Paulino (2014, p. 177), a leitura do texto literário se diferencia por oportunizar contato com “outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas ações, pensamentos, emoções”.

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Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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