Ao dar
início à escrita das Memórias de infância de João Bez Batti, não imaginava que
meu primeiro projeto, fotográfico e memorialístico denominado “Sanguíneo” e
iniciado no dia quatro de agosto de 2016, fosse ter desdobramentos a ponto de
se tornar um “livro de memórias”. Naquele mesmo agosto, em um ímpeto emotivo e
necessário para meus borbulhamentos internos, outros textos, de igual vigor
literário surgiram: “João” e “Mãos”, ambos no dia cinco e “Longevas
Pelotenses”, no dia 09 de agosto.
Depois
disso, silêncio. Havia enviado pelo correio o texto “Longevas Pelotenses” a
João e aguardava algum retorno. Com o telefonema anunciando a emoção de Bez
Batti ao receber por escrito parte de suas memórias, vislumbramos meu retorno a
seu atelier em Bento Gonçalves. E foi lá, depois de lermos juntos o que eu havia
escrito e de reconhecermos o impacto de um na vida e obra do outro, que o
projeto surgiu.
Mas, pensando bem – e a memória nem sempre é
fiel ao pensamento – foi em um café da manhã que João desatou o nó, bem
amarrado até então. Com olhos plenos de saudade, mencionou a avó, a mãe, o pai,
as irmãs, o irmão, também ele um produtor de arte. Apalpou cada seixo, ouviu
novamente o rio, andou por suas margens. Naquela manhã, João percebeu mais uma
vez os odores do Vapor que o levou a Porto Alegre, revisitou a incompreensão
que até hoje guarda da atitude do pai que o enviou, sentiu os sapatos que se
obrigou a vestir para conhecer a madrugada na Capital.
João
Bez Batti, outra vez menino, baixou a guarda.
Rimos,
choramos, falamos, calamos.
Eu?
Eu
escrevi.
Um a
um, os personagens apresentados por João passaram a povoar nossas conversas e,
pelo impacto que em mim causavam, grafei o que sentia. Em um misto de relato e
emoção, quis devolver a João a confidencialidade. Mostrar a ele como suas
“memórias” estavam reverberando dentro de minha própria infância, também ela
marcada por relações fortes com pai, mãe, irmãos. Ao buscar eternizar aquele
presente, reconhecia fragmentos da cultura italiana que a mim também foi
legada: as frutas, a polenta, os almoços, a leitura.
Foi
assim que grafei “Catador de Pedras”, no dia trinta de novembro, já com meu
notebook deitado sobre a mesa no café da manhã da casa de João. Foi ali também
que escrevei “Polenta cortada a fio” e “Negrinho”, ambos no dia primeiro de
dezembro, após diálogos regados a vinho, água e o que mais tivéssemos. Às
vezes, intercalados com queijo, pão, doces de Pelotas.
Nas
vésperas do Natal, a convite do João e sua família, estive em Bento Gonçalves.
Fui partilhar com ele as festas de fim de ano e o acompanhei em algumas
pequenas viagens pela redondeza. Eu dirigia, perguntava, ele falava. Alex
gravava.
Na
mesa, após um almoço, enquanto João e Alex estudavam no atelier um modo de
serem aprendizes um do outro, escrevi “Aurora” e “Elegância”. Era vinte e um de
dezembro e eu não queria mais deixar de viver nos Caminhos de Pedra. No último
dia do ano de 2016, após mais uns de convivência, com as lembranças ampliadas, Caquis na abóbora, uma pungente memória
dos hábitos do pai e Ciranda Cirandinha –
saudade explícita da professora da infância de João Bez Batti – ganharam
forma sob as teclas do notebook.
Com a
voz capturada pelo celular nas pequenas viagens que fizemos conheci os baús
trazidos da Italia, os segredos que o pai de João guardava e a viagem de vapor
que João empreendera em menino. Naquele dia decidi: as memórias de João Bez
Batti em meu livro se encerrariam com a chegada a Porto Alegre. Ao degravar a
voz de Bez Batti nos posteriores dois e três de janeiro, compus “Os baús de
Giovanni”, “Os segredos do seu Giovanni” e “Um vapor a Porto Alegre. Não, não
eram mais memórias. Palavras se tornaram batidas de marreta nas duras
lembranças que não queríamos esfarelar. Esculpir,
Interno e Contador de histórias – os últimos textos - foram escritos entre dezoito
e vinte de janeiro de 2017.
No
encontro com Bez Batti em fins de janeiro, levei os textos para que os lesse e
corrigisse. Ao mesmo tempo, encaminhei-os à Luciana, que vive na Itália e é
bilíngue. Por sua vez, Luciana recorreu à Bianca Pessana, uma amiga italiana que contribuiu lendo e
comparando os textos originais com a tradução já iniciada. Depois de diálogos
entre as duas, a versão para o italiano foi finalizada e passou a integrar o projeto.
Quando os textos tornados para o italiano se incorporaram ao projeto, pude ler a
língua que nossos pais nos legaram. Passei a ouvir a voz do “Giuseppe”, uma
saudade que é infindável. E tive a certeza de que ele teria um sorriso para as
filhas que retomaram sua origem.
Escrever a infância – ou parte das memórias de infância –
de João Bez Batti foi o melhor que as férias de 2016 me oportunizaram. Ao recompor
suas lembranças e esquecimentos, pude ser como Ecléa Bosi, “ao mesmo tempo
sujeito e objeto”. Sujeito enquanto indagava, procurava saber. Objeto enquanto
ouvia, registrava, “sendo como que um instrumento de receber e transmitir suas
lembranças” (BOSI, 1994, p. 38). Optei
pela infância lembrada. E tomei como rumo nossas conversas à mesa: do café da
manhã, quando encontrava um pêssego recém colhido, ao Vinho do Porto, após os
maravilhosos bifes acebolados preparados pelo Alex Nunes, em mais uma de suas
gentilezas para conosco.
João, sabedor de meu desejo, lançou-se corajosamente a
ser biografado.
E isso é indescritível, inigualável.
Ter a confidência de alguém é uma herança. Espero ter sabido herdar.
Obs: Infelizmente, João não autorizou a publicação desse trabalho. Mas ele existiu.