Resumo: A
leitura literária ofertada às crianças tem sido eventual, aleatória, não planejada
e nem registrada em diários de classe, indicando um tratamento de menoridade
intelectual por parte dos alfabetizadores. A origem deste fenômeno está
localizada no desconhecimento do poder da literatura, bem como de seus sujeitos
– os gêneros e as obras literárias –, na falta de repertório e acervo adequados
e no demasiado valor atribuído aos demais conteúdos escolares. Acredito que o
gosto pela leitura não é um atributo genético e precisa ser ensinado, produzido
entre os seres humanos, pois ninguém nasce gostando de ler (ANTUNES, 2013). No
artigo apresento uma reflexão acerca da premência de bons contatos com o mundo
da leitura literária desde tenra idade, proponho a alfabetização literária como condição para a formação do leitor e utilizo
como argumento resultados obtidos em uma experiência bem sucedida de interação
entre autor, mediador e público ouvinte. Minhas reflexões e atitudes estão alicerçadas
nos escritos de Abramovich (2003), Coelho (2000), Fischer (2012), Lajolo &
Zilberman (1985), Machado (2004, 2012), Paulino (2010) e Todorov (2012), para
quem ler é atribuir significados. Os procedimentos metodológicos empregados foram:
a) contato com os mediadores; b) envio, por email, de um conto; c) leitura do
conto pelo mediador às crianças; d) ilustração do conto pelos ouvintes; e)
diálogo autor/crianças/mediador na escola; f) tratamento gráfico e edição de
texto pelo autor; g) retorno à escola em novo formato – banner e e-book – para
uso do mediador com as crianças. Os resultados indicam que os objetivos foram
alcançados e permitem a continuidade e amadurecimento dos vínculos inicialmente
existentes.
Palavras-chaves: Alfabetização literária, Mediador,
Infância.
1.
Introdução
Alfabetização literária é um processo de apresentação do mundo da
literatura aos demais. Para tal, é preponderante a atitude de um mediador - uma
pessoa que "estende pontes entre os livros e os leitores" (REYES,
2014). Ao selecionar “livros que fascinam”, os mediadores transformam pessoas
em leitores. Leitores de imagens, leitores de textos, leitores de sentidos,
leitores de vidas.
A alfabetização literária demanda um futuro leitor, um mediador e um
livro. O pretenso leitor está em cada uma das pessoas que ainda não lê por
prazer. O mediador, em cada uma daquelas que já descobriram o gosto de ler.
Sim, pois ninguém nasce gostando de ler. Nem desgostando. De acordo com Antunes
(2013), “o gosto pela leitura não é um atributo genético. Precisa ser ensinado,
produzido entre os seres humanos [...]". Graça Paulino (2014) afirma que a
leitura literária pressupõe “uma prática cultural de natureza artística,
estabelecendo com o texto lido uma interação prazerosa” e é necessário um
“pacto entre leitor e texto” que inclui, necessariamente, “a dimensão
imaginária”, pois é através dela que “se inventam outros mundos, em que nascem
seres diversos, com suas ações, pensamentos, emoções” (p. 177).
Assim, alfabetizar-se requer um sujeito que deseja - o futuro leitor -,
um sujeito que ama – o leitor – e um objeto de desejo: o livro. É uma equação
simples, tramada através de um pacto. O pacto é vivido no texto não escrito que
Bartolomeu Campos de Queirós (2009) anunciou desejar conhecer. Para ele, o
autor propõe um diálogo que necessita do leitor e este diálogo, esse
entendimento, a nova obra que brota da interação autor/leitor é a verdadeira
literatura, a obra (no sentido da manufatura) literária. Ao mesmo tempo
insondável e experimentação, a obra não escrita revela o literário do pacto.
As reflexões
acima expostas originaram-se de evidências no mundo da pesquisa acerca de
leitura literária ofertada a crianças na escola. Percebi, observando
professoras, ouvindo crianças, dialogando sobre leitura literária em cursos
para educadores e lendo na escola para crianças que os eventos de letramento
literário ocorrem eventualmente. Além disso, as escolhas de livros a serem
lidos não obedecem a critérios: são aleatórias, não planejadas e nem registradas
em diários de classe, indicando um tratamento de menoridade intelectual à
literatura por parte dos alfabetizadores. A partir de pesquisas realizadas[i],
afirmo que a origem desta “menoridade intelectual” está localizada no
desconhecimento do poder da literatura, bem como de seus sujeitos – os gêneros
e as obras literárias –, na falta de repertório e acervo adequados e no
demasiado valor atribuído aos demais conteúdos, preponderantemente o ensino da
estrutura da escrita da língua materna[ii],
o que me permite lamentar que, da escola saiam escreventes. Leitores,
raramente. No artigo apresento uma reflexão acerca da premência de bons
contatos com o mundo da leitura literária desde tenra idade e utilizo como
argumento resultados obtidos em uma experiência bem sucedida de interação entre
autor, mediador e público ouvinte.
O
“desaparecimento” da leitura literária na escola tendo o mediador como
referência – um professor exemplar, leitor, apreciador de obras e autores,
preparado para apresentar às crianças a leitura através de obras
criteriosamente escolhidas –, reflete o tratamento amador que a leitura recebe:
é comum que o professor abra mão de seu protagonismo como leitor em nome de uma
leitura dos iguais, ou seja, logo que as crianças aprendem a balbuciar sílabas,
substituem os professores na tarefa de ler para os colegas. Além disso, a
leitura é utilizada para acalmar crianças ou como prêmio por bom comportamento;
a qualquer momento é suspensa, como castigo; a escolha do que ler é casual, sem
critérios pré-definidos; a biblioteca da escola não é conhecida nem utilizada
pelo professor; os clássicos, pouco conhecidos e, quando lidos, substituídos
por recontos; os modernos ficam restritos a autores estrangeiros famosos ou a
um ou dois brasileiros em igual condição; na escolha do que ler, os textos
curtos são os mais acionados; há predomínio da imagem sobre o texto entre os
prediletos dos professores e, na maior parte das escolas pesquisadas; não há
eventos contínuos e permanentes de leitura literária. Entre os professores,
poucos investem em repertório e acervo pessoal no que tange à literatura para
crianças e mesmo para si.
Tendo como
princípios que ler é atribuir significado ao lido, que a leitura literária é
condição para a formação do leitor e o gosto pela leitura não é um atributo
genético, precisa ser ensinado, produzido entre os seres humanos (Antunes,
2013), uma de minhas ocupações tem sido produzir impacto entre os mediadores.
Formadora de professores que atuam na faixa etária conhecida como infância – de
zero a onze anos ou do maternal ao quinto ano – tenho buscado propor e
acompanhar resultados de proposições de leitura literária na escola. Busco, com
isso, ofertar aos professores ferramentas de conhecimento[iii]
e atitudes mediadoras (como ler). O intuito é a atuação na sala de aula através
do contato com bons livros e metodologias adequadas.
2.
Literatura para a Infância
Frágil pela
sua temporalidade, a infância tem difícil definição, segundo Hunt (2010). A
literatura para ela, também. Em suas conclusões acerca do que é a criança[iv],
ele escreve: “A definição de infância muda, mesmo no âmbito de uma cultura
pequena, aparentemente homogênea, tal como muda o entendimento das infâncias no
passado” (p. 94). Para ele, “a infância não é hoje (se é que alguma vez foi) um
conceito estável. Por conseguinte, não se pode esperar que a literatura
definida por ela seja estável” (p. 94).
A literatura
infantil ou literatura escrita e destinada à infância tem como característica
maior o seu suposto público: a criança. Assim, e “por inquietante que seja,
pode ser definida como: livros lidos por; especialmente adequados para; ou
especialmente satisfatórios para membros do grupo hoje definido como crianças”
(HUNT, 2010, 96). Esse modo de pensar possibilita agregar a ideia de que livros
infantis seriam apenas os “essencialmente contemporâneos” (p. 96) uma vez que
os “conceitos de infância mudam tão depressa” que um livro “envelheceria” junto
com a geração para a qual foi criado. Será?
Ao buscar
compreender como aconteceu de o ensino de literatura na escola ter se tornado o
que é atualmente, Todorov (2012) reconhece como preponderante, no ambiente
universitário, a “tendência que se recusa a ver na literatura um discurso sobre
o mundo” (p. 40). Diz, ainda, que essa “tendência” exerce uma “influência
notável sobre a orientação dos futuros professores de literatura” e que,
diferente do estruturalismo clássico, o pós-estruturalismo “só pode dizer uma
única verdade, a saber: que a verdade não existe ou que ela se mantém para
sempre inacessível”. Para além, informa que “a tese segundo a qual a literatura
não mantém ligação significativa com o mundo e que, por conseguinte, sua
apreciação não deve levar em conta o que ela nos diz do mundo”, tem uma
“história longa e complexa paralela ao advento da modernidade” e sugere que, na
escola, diferentemente da Universidade, o que se deve destinar a todos é “a
literatura” (p. 40). Eu perguntaria: E o que é a literatura?
Arte, diriam
alguns. Artesania e beleza, outros. Palavras para serem apreciadas, metáforas
especialmente escolhidas para nos fazerem pensar, a literatura pode muito,
segundo Todorov (2012, p. 76). Dolce
e utile, a literatura não nasce como
arte ou contemplação estética, apenas. A “contemplação estética”, o “juízo do
gosto” e o “sentido do belo”, como características da arte, são instituídos
como “entidades autônomas” nos séculos XVII e XVIII, de acordo com Todorov (2012,
p. 49-50). Do reconhecimento da dimensão estética como uma “característica
humana universal” se passou a uma nova perspectiva: o isolamento dessa
característica ou aspecto secundário “instituindo-o como encarnação de uma
única atitude, a contemplação do belo” e, como consequência, a cisão entre útil
e belo, que levará à criação do próprio termo “estética” ou, “ciência da
percepção”.
Todorov
(2012) ao reunir ensaios em “A literatura em Perigo”, se insurge contra essa
tentativa de afirmar a Literatura à margem de ligações significativas com o
mundo. Ao mencionar apontamentos em um diário de Benjamin Constant – análise de
um trabalho sobre a estética de Kant – o pesquisador informa que ali aparece,
pela primeira vez em francês, a expressão “a arte pela arte”. Indicando a
posição de Constant – que situa a prática literária no cerne de outros
discursos públicos – Todorov (2010), menciona uma passagem, datada de 1807, que
representa a posição insurgente:
A literatura refere-se a tudo. Não
pode ser separada da política, da religião, da moral. É a expressão das
opiniões dos homens sobre cada uma das coisas. Como tudo na natureza, é efeito
e causa. Imaginá-la como fenômeno isolado é não imaginá-la (CONSTANT in
TODOROV, 2012, p. 59).
Conceituada
como “tudo que concerne ao exercício do pensamento na forma de escritos,
excetuando-se as ciências físicas” (STAËL in TODOROV, 2012, p. 60), a
literatura seria a grande expressão humana. Mais que isso, penso, evidenciaria
a impossível separação entre o doce – o prazer, o deleite, a fruição de
palavras, expressões, metáforas, sons, silêncios, menções, esquecimentos –, e o
útil, representado pela reflexão, elucubração, diletantismo, engenhosidade,
suposição, inferências. No literário, indiferentemente se para adultos ou crianças.
Entre os estudiosos brasileiros de literatura
há forte tendência em afirmar que a literatura é arte que produz, ao mesmo
tempo e com igual intensidade, experiência estética e pensamento. A literatura
infantil é, “antes de tudo, literatura”, diz Novaes Coelho (2010. p. 28).
Fenômeno “visceralmente humano”, a noção de literatura que vem predominando
entre os estudiosos, de acordo com Novaes Coelho (2010), é a de identificá-la
como “um dinâmico processo de produção/recepção que, conscientemente ou não, se
converte em favor de intervenção sociológica, ética ou política”, estando
implícita a “transformação das noções já consagradas” de, entre outras, “tempo,
espaço, personagens, ação, linguagem, estruturas poéticas, valores éticos” (p.
28). E é enfática ao afirmar que, para “além do prazer/emoção estéticos, a
literatura contemporânea visa alertar ou transformar a consciência crítica de
seu leitor/receptor” (NOVAES COELHO, 2010, p. 29).
Abramovich
(1997, p. 14) por sua vez, afirma que “ler é um ato fluido, ininterrupto, de
encantamento e de necessidade vital”. Em busca de um exemplo, cita o
ficcionista Erico Verissimo, para dizer de seu entendimento a respeito da
função do escritor:
... o menos que um escritor pode
fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua
lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ela caia
a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a
lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada
elétrica, acendamos o nosso toco de vela, ou, em último caso, risquemos
fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.
(VERISSIMO em ABRAMOVICH, 1997, p. 100).
Para a
pesquisadora do Letramento Literário, Graça Paulino (2010), a literatura
depende de valores a ela atribuídos em cada época histórica, o que significa
que para conceituá-la é necessário que esteja sendo manipulada, ou, que esteja
em “mãos de leitores de carne e osso”. Em suas palavras: “A validade artística de
cada produção, seja teatro, seja uma música, depende de quem está ‘lendo’. Não
há e nunca houve uma verdadeira arte que valesse o mesmo para todos no mundo,
em todas as épocas, porque as pessoas têm expectativas, preferências e
repertórios diferentes” (PAULINO, 2010, p. 139). No entanto, deixa clara sua
posição: “O prazer e o crescimento humanos que uma experiência artística pode
trazer nunca seriam perda de tempo. Tempo é muito mais que dinheiro, porque a
nossa vida inteirinha se faz do tempo, a nossa realização intelectual se faz no
tempo, assim como nossos amores, nossas tristezas, nossos sonhos, nossas
amizades, nossas brincadeiras” (p. 139-140).
Ao conceituar
a literatura como um caminho na direção de “mais tolerância nesse atormentado
planeta” e, também, “alguns passos para uma vida menos aborrecida”, Fischer
(2011, p. 30), busca leitores que tomem “as palavras tidas como sagradas em sua
dimensão humana”, ou seja, “como textos que interpretam a vida e a morte e
procuram aliviar nossa imensa ignorância sobre o mundo, nossos insuperáveis
temores sobre o destino individual e coletivo, nosso eterno pânico por não
controlar a natureza” (p. 30). Em um interessante texto intitulado “Escrever
para quê?” o professor tece, de maneira bastante sucinta, sua reposta à
questão, ancorado na descrição de um personagem que “conseguiu comprar um velho
caderno de notas e resolve fazer um diário”. Vigiado, ele “precisa esconder-se
numa reentrância da parede, dentro de seu próprio lar, para então ter um mínimo
de liberdade – a liberdade de anotar pensamentos, impressões, palpites,
lembranças”. O texto produzido, “atropelado, uma desordem sem pontuação
adequada, com palavras saindo erradas da caneta”, não tem importância alguma
para Fischer que, neste momento, declara: “era um homem exercendo sua sofrida,
pequena mas viva liberdade” (FISCHER, 2011, p. 100).
A literatura,
então, é inimaginável como fenômeno isolado (TODOROV, 2010), pois é um fenômeno
“visceralmente humano” (NOVAES COELHO, 2010). Expressão antropológica, portanto.
Literatura é “encantamento” e “necessidade vital” além de indicação que “não
desertamos nosso posto” (ABRAMOVICH, 1997). É “prazer e crescimento humano”
(PAULINO, 2010) e liberdade de expressar-se (FISCHER, 2011) e, por tudo isso,
ler, escrever, ouvir, imaginar é direito. De todos e de qualquer um e deve ser
ofertado desde a mais tenra idade, em um processo de alfabetização literária
(ROSA, 2015), como condição para a realização humana.
2.1 Literatura para crianças: da
higiene a bobices quaisquer
A escrita
literária para as crianças tem uma história muito recente no Brasil. Exatamente
por isso, o “discurso teórico, crítico e historiográfico que sobre ela se tem
produzido no país é um fenômeno ainda mais recente” (CECANTINI in HUNT, 2010).
Diferente de outras escritas por ter “predomínio da função estética”, a
literatura busca sustentar-se e expressar-se pela ludicidade, invencionice,
imaginação e estética da linguagem. É através dessas manifestações que a
literatura pode existir e evidenciar os desejos mais profundos do ser humano,
no caso infantil, um humano em formação. Doce e útil, a literatura para
crianças tem o compromisso de encantar o leitor e, ao mesmo
tempo, torná-lo mais culto, mais perspicaz, mais inteligente, mais
curioso: uma porta para a literatura adulta?
A obra
literária tem como função primordial apresentar ao leitor uma visão estética da
palavra, da forma como essa palavra se organiza em um texto e da forma que
podemos dar ao texto ao editá-lo. Nela, imaginação, ancestralidade, elementos mágicos,
linguagem metafórica e ludicidade se conectam para lapidar a imaginação e a
impossibilidade de existir sem ler. Ao estabelecer uma conexão imediata com a
imaginação – o mundo que existe como desejo –, o texto
literário remete a situações inusitadas e pode-se, através dele,
transgredir a ordem, as leis, as regras, as idades ou mesmo só pensar que se
faz isso. Através dele, podemos brincar de ser outro, mais novo, mais
alto, com poder, sem nenhuma beleza, com muito ouro, com quase nada. Além disso,
o texto literário insere qualquer um na ancestralidade e pertença à
espécie e ensina que, um dia, em torno do fogo, ouvia-se e contava-se e,
desse modo, inventava-se a linguagem...
Nascido com o
intuito de ensinar[v], o
texto literário para crianças pode ser um brinquedo, invencionice, bobice.
Inventado por adultos através de um mecanismo incrível ainda pouco conhecido –
a imaginação – à revelia da razão e apesar da ciência, o texto literário
infantil evidencia e mesmo denuncia a infância que gostaríamos de ver nas ruas,
nas casas, nas praças, nas escolas. Pode ter personagens que ainda não existem
e que, talvez, jamais existam. O texto literário infantil pode ser repleto de
situações impensáveis, e, por isso mesmo, desejável. Pode descrever e antever
tramas imponderáveis e, assim mesmo, convencer. A literatura para crianças,
desse modo, é criação pura, invencionice, “gostosuras e bobices”, como diz
Fanny Abramovich (1997) e é condição para a existência infantil: brincalhona,
espontânea, imatura, dispersa, vulnerável, perceptiva, curiosa, adaptável.
3.
Desenvolvimento
Bons contatos
com o mundo da leitura literária necessitam de planejamento, conhecimento,
disponibilidade e reconhecimento de que a escola é um bem público ao qual todas
as crianças têm acesso garantido por lei. Nela, no entanto, nem todas aprendem
a gostar de ler, o que é, de algum modo, uma sonegação de direitos. Tendo como
pano de fundo que a tarefa primordial da escola é inserir crianças no mundo da
leitura e que esta inserção deve ter efeito duradouro, a proposição, iniciada
em 2013 com um grupo de professoras[vi]
no sul do Rio Grande do Sul, foi estabelecer um vínculo imediato entre autor e
mediador; incentivar o mediador a ler em voz alta para seus alunos; gerar
efeito duradouro da literatura com a presença do autor na escola e; produzir um
resultado integrado, representado pela produção de um e-book com o trabalho
integrado de escritor, professor e crianças.
Inspirada nos
princípios da pesquisa qualitativa (LÜDKE e ANDRÉ, 1986) – os procedimentos
desenvolvidos foram: a) contato com
os mediadores via correio eletrônico, convidando-os ao projeto; b) envio de três narrativas infantis
para que o professor escolhesse, a partir de seus critérios, o mais adequado
para suas crianças; c) leitura da
narrativa escolhida pelo mediador às crianças e a ilustração da narrativa pelas
crianças; d) visita do autor à escola;
e) edição de texto e inserção das
imagens produzindo um livro em mídia digital; f) impressão de um banner
com o novo formato para retorno do conto ilustrado à escola.
Tendo como
produto livros em mídia digital (e-books), contou com o trabalho de professoras
leitoras – as mediadoras – com as ilustrações de crianças de três a doze anos e
com o trabalho do escritor que deu novo tratamento ao texto e as imagens,
mesclando-os. Os resultados indicam que a proposição atingiu seus propósitos –
gerar efeito duradouro da literatura integrando escritor/professor/crianças – e
pode ser generalizada.
Entre os
vários contos enviados às professoras, escolhi dois para representar o projeto
desenvolvido: Frederico, o Príncipe e
A fome da água. O primeiro trata do
silêncio imposto ao rei pelo processo de formação da índole de seu filho, um
príncipe cheio de argumentos, vontade de diálogo, energia para a luta, embora
ainda criança. O pai, um rei “repleto de
sabedoria” que “gostava de bibliotecas, cinema, viagens e música” e que “tinha
lido muito na vida, ponderado muito, errado algumas vezes, acertado outras
tantas” decidiu “por adulto, por sábio, por saber do fim dos homens”, que o
mundo precisava de um príncipe: “um novo homem, um homem melhor e mais sábio,
herdeiro de tudo que já se sabe, inventor de coisas novas, planejador de
estripulias”. Em um “reino repleto de ideias esvoaçantes, de coerências
tumultuantes, de certezas indignadas e de ponderações itinerantes”, Frederico,
o príncipe, nasceu. Em um “castelo encantador, com escadas emolientes, cômodos
vasculháveis, abraços estonteantes e banhos de piscina”, diz a narrativa,
Frederico crescia, amadurecia e virava rei.
Ao explorar o
encantamento que os adultos indicam ter quando planejam o nascimento de um
filho, as expectativas e as apostas, a narrativa denuncia que as coisas nem
sempre saem como se planeja. Ao ilustrar a narrativa, as crianças selecionaram
cenas marcantes, como a piscina, o rei, o príncipe e o castelo e o príncipe em
diálogo com a irmã.
A segunda
narrativa escolhida para ilustrar o trabalho desenvolvido foi A Fome da água que aborda, de maneira
metafórica, o afogamento de um menino em sua piscina, em casa. Salvo, ele
aprende que a água invade espaços. Importante ressaltar que a participação das
crianças – ilustradoras das narrativas escolhidas como representativas do
projeto ocorreu de acordo com o trabalho desenvolvido pelas professoras. A
primeira narrativa, Frederico, o Príncipe,
teve como ilustradores, crianças entre cinco e seis anos, que frequentavam uma
escola infantil em 2013. A segunda, A
fome da água, foi ilustrada por crianças de um segundo ano (entre oito e
onze anos) de uma EEEF em um bairro periférico da cidade de Pelotas, no ano de
2015.
4.
Conclusões
Ouvir
histórias lidas, desde há muito tempo é um hábito que envolve prazer, instrução
e informação. Reunir-se para ouvir alguém ler tornou-se também uma prática
necessária na Idade Média, pois, segundo Manguel (1999), até a invenção da
imprensa, a alfabetização era rara e os livros, propriedade dos ricos,
privilégio de um pequeno punhado de leitores.
Diferenciada
das demais linguagens por ser intrinsecamente interdisciplinar, a leitura
literária é comprometida com a capacidade ancestral de imaginar e confunde,
intencionalmente, o belo com o útil, o lúdico com o razoável, devendo ser
apresentada às crianças logo que elas dão início ao contato com o mundo. Para
Machado (2012), ela se expressa, inicialmente, nas cantigas de pai e mãe para
seu bebê ao colo e, depois, à medida que este vai crescendo, “novas formas de
criação verbal lhe vão sendo oferecidas pelos mais velhos – jogos,
brincadeiras, parlendas, adivinhas, trovas. E histórias, muitas histórias” (MACHADO,
2012, p. 11) que ficam guardadas na memória integrando seu legado cultural, sua
herança, seu repertório particular.
A literatura na escola, para que ocorra,
pressupõe um processo de alfabetização literária que não é espontâneo. Como
resultado de uma intencionalidade, deve ter planejamento. Neste cabem algumas
etapas, sem as quais o processo poderá não ter êxito. O objetivo da
alfabetização literária é tornar as crianças ouvintes competentes e leitores
fluentes e, o processo de formação desse leitor ocorre, de acordo com Machado
(2008), quando a criança entra em contato com narrativas, provérbios, ditos
populares, adivinhas, parlendas, textos ficcionais e poéticos através das vozes
do universo familiar e, logo depois, de forma organizada e frequente, passa a
conhecer os impressos – preponderantemente livros – que apresentam, em verso e
em prosa, o repertório de nossa cultura escrita.
Quando as
crianças ingressam nos anos finais do Ensino Fundamental, se estiverem alfabetizadas
literariamente, poderão interagir sem mediadores com a cultura letrada que as
envolve. Desse modo, passam a escolher o que ler, quando, com que frequência e
até mesmo indicar livros que gostam. Mesmo nesse momento, segundo Machado
(2008), “o trabalho dos professores, continua a ser imprescindível no sentido
de ampliar, a cada etapa da escolaridade, as experiências literárias de seus
alunos”.
Na
experiência desenvolvida, a proposição de estabelecer um vínculo imediato entre
autor/mediador através do envio de narrativas às professoras e seus alunos, foi
alcançado. Como primeiro passo, as professoras puderam ler as narrativas na
tela do computador, escolher entre várias a mais adequada aos seus pequenos
ouvintes, incentivá-los a ilustrar com materiais gráficos variados. Diante do resultado,
professoras e crianças puderam usufruir de um produto partilhado em que cada
ator estava representado em igual medida e importância, dividindo a criação e
projetando novas experiências. As crianças, na escola, puderam ver seus
desenhos em outras dimensões, partilhar sua produção com os demais e ler
novamente o conto, agora ilustrado.
Doce, a
“literatura infantil contemporânea deve deleitar os pequenos leitores,
cumprindo seu destino estético”, mas, “ao mesmo tempo, deve ser útil, atendendo
as demandas históricas” sugere Paulino (2010, p. 115).
Referências Bibliográficas
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F. (1997). Literatura Infantil:
Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione.
ANTUNES,
C. (2013). Mediadores de Leitura. Entrevistas. São Paulo: TV Cultura,
05/08/2013.
FISCHER.
L. A. (2011). Filosofia Mínima. Porto Alegre: Arquipélago Editorial.
LÜDKE,
M. & ANDRÉ, M. (1986). Pesquisa em
Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo: EPU.
MACHADO,
A. M. (2012). Uma rede de casas encantadas. São Paulo: Moderna.
MANGUEL,
A. 1999. Uma história da leitura. São
Paulo: Companhia das Letras.
NOVAES
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Moderna.
PAULINO,
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literário. 1979-1999. Belo Horizonte – Pelotas: Editora FaE/UFMG - EDUFPel,
2010.
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ROSA, C. M. (org.). Escritas, Leitores e
História da Leitura. Pelotas: Editora da UFPel.
ROSA,
C. M. (2014) Literatura Infantil Clássica
na Escola: Autores, Obras, Práticas. Licenciatura em Pedagogia. Literatura
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ROSA,
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Alfabetizadoras. Licenciatura em Pedagogia. TPP IV. Pesquisa de Campo.
Pelotas: UFPel.
ROSA,
C. M. 2013. Literatura no Rio Grande do Sul: autores, gêneros, eventos. X Jogo
do Livro. Belo Horizonte: CEALE/UFMG.
[i] Refere-se à pesquisa
intitulada: “Literatura Infantil Clássica na Escola: Autores, Obras, Práticas”
(ROSA, 2014). Tendo como informantes professoras alfabetizadoras descritas
quanto à formação, idade, tempo de magistério e local onde atua, foi
desenvolvida em 2013 e teve como curiosidades as seguintes questões: A
professora lê para as crianças? Qual a frequência? O que lê para suas crianças?
Registra o que lê? Onde? Há eventos de leitura na escola? Quais? Onde ocorrem?
Quais os autores que admira? Como escolhe o que vai ler para as crianças? O que
indica da Biblioteca da escola para ser lido em sala de aula? Especialmente no
que tange aos clássicos infantis, a pesquisa buscou saber se a professora
conhecia, quais contos e autores apreciava, se possuía acervo, se lia e com que
frequência, quais as obras que lidas em 2013 e se estas eram originais ou
recontos.