Cristina Maria Rosa
Ler e contar são
duas formas de mediar o mistério, duas importantes práticas de alfabetização
literária que, na maioria dos casos, são usadas indiscriminadamente. No
entanto, há diferenças entre ler e contar.
Contar é
antropológico, ancestral. Contar é
acessar um repertório individual e coletivo que faz sentido a determinada
família ou mesmo sociedade. É narrar a experiência, é “transmitir a partir da
experiência[1]”. Contar
é propagar uma história, rememorar um fazer, um ocorrido, uma fatalidade. É
experimentar o retorno a emoções já vividas, que se presentificam nas palavras
e em silêncios. Contar é tornar perene no tempo “a partir do vislumbre de um
narrador qualificado” o “sentido do que lhe está sendo transmitido”. Contar é
repassar adiante e, de acordo com Silveira (2011) “assim como a própria narrativa”,
contar não é um ato “desinteressado”, ingênuo, espontâneo.
Contar também é
selecionar eventos, formatos e epílogos que nem sempre estão escritos e
produzi-los oralmente. Neste fazer, o contador circunscreve um grupo de
palavras, expressões e sentimentos integrantes de seu repertório e oferece, simultaneamente, suas escolhas éticas, morais, artísticas.
Contar, então, é mobilizar um repertório particular: de temas, personagens,
enredos, tempos e modos de falar e de reapresentar o passado que, de algum
modo, vai se tornando o presente de quem ouve.
Ao contar, mesmo
que o narrador acione textos que possuem a característica da longevidade, universalizados
pelo impacto e repercussão – e Le petit Chaperon Rouge, de Charles Perrault, é um bom
exemplo – a forma de narrar é própria e, para tal, concorre um léxico pessoal,
restrito à experiência leitora e narradora do sujeito, além de suas filiações
históricas, políticas, filosóficas e literárias. Contar um episódio, parte de
uma empreitada, pode ser uma aventura
antropológica repleta de aberturas para a construção de sentidos estéticos
e literários. Mas nem sempre. Pode ser também e, apenas, uma subtração e/ou
higienização de um texto originalmente bruto, rico, autoral.
As versões orais de
narrativas clássicas nas quais há abrandamentos de temas e desfechos revelam as
escolhas morais e éticas dos adultos que decidem o tipo de contato que a
criança terá com a escrita original. Desse modo, interditam o leitor na
vivência plena de um pacto com o
autor. Versões abrandadas, com objetivo de atenuar ou mesmo postergar o contato
com temas estruturadores da psique
humana como a morte, a traição e o abandono, por exemplo, são encontradas em
profusão, indicando uma indisposição ou incapacidade do adulto quanto ao tema,
trama ou desfecho. Essas variantes aligeiradamente inventadas subestimam os
ouvintes, omitem constructos literários, violam a obra, depreciam o trabalho do
autor e relegam a criança a estruturas mais simples da língua, ignorando ou desdenhando
sua capacidade de atribuir sentidos ao lido/fruído. O devaneio, a imaginação, a
capacidade de criar, a inventividade, a fantasia são faculdades inerentes aos
humanos que têm “necessidade de manifestar e dar corpo às suas capacidades
inventivas”. Para Bartolomeu Campos de Queirós (2009):
Possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é
garantir a presença de tais elementos, que inauguram a vida, como essenciais
para o seu crescimento. Nesse sentido é indispensável a presença da literatura
em todos os espaços por onde circula a infância. Todas as atividades que têm a
literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma
sociedade leitora.
Contar não é ler e
ler é diferente de contar.
Ler é cultural, é reinventar
a escrita, é assumir que a linguagem é uma “faculdade cognitiva exclusiva da
espécie humana que permite a cada indivíduo representar e expressar
simbolicamente sua experiência de vida” (BAGNO, 2014, p. 192). Como “seres
muito particulares”, produzimos sentido “por meio de símbolos, sinais,
signos, ícones”. A escrita é uma dessas formas de produzir sentido e pode ser
conceituada como “um fenômeno social, uma forma de ação e de interação social”.
Assim, “produzir um texto significa dizer algo a alguém, por algum motivo, de
algum modo, em determinada situação” (FIAD & VAL, 2014, p. 264).
A produção de um
texto, porém, exige um “leitor proficiente”, aquele que não só “decodifica as
palavras que compõem o texto escrito”, mas, também, “constrói sentidos de
acordo com as condições de funcionamento do gênero em foco”. Para tal, mobiliza
“um conjunto de saberes sobre a língua”, representado por “outros textos, o
gênero textual, o assunto focalizado, o autor do texto, o suporte e os modos de
leitura”, de acordo com Da Mata (2014, p. 165).
A fruição de um
texto demanda, também, um experiente da
espécie que, ao exercer o ofício de mediador, “crie as condições para fazer
com que seja possível que um livro e um leitor se encontrem”, em “rituais,
momentos e atmosferas propícias” (REYES, 2014, p.213). Esta figura é preponderante para inserir
novos e outros no processo de gostar de ler desde tenra infância, uma vez que
os pequenos são inexperientes. Para Reyes (2014, p. 213):
Durante a primeira infância,
quando a criança não lê sozinha, a leitura é um trabalho em parceria e o adulto
é quem vai dando sentido a essas páginas que para o bebê não seriam nada, sem
sua presença e sua voz. Por isso, os primeiros mediadores de leitura são os
pais, as mães, os avós e os educadores da primeira infância e, paulatinamente,
à medida que as crianças se aproximam da língua escrita, vão se somando outros
professores, bibliotecários, livreiros e diversos adultos que acompanham a
leitura das crianças.
Na leitura – prática letrada mais
frequente em nossa vida social (Da Mata, 2014, p. 165) –, o leitor empresta sua
voz e, através dela, os sons, alturas, tons, frequências e articulações para
colorir, descobrir, adornar, esclarecer, incrementar,
apurar, desenredar, duvidar, expor, declarar, revelar, desvelar, divulgar,
manifestar, enfeixar, aprofundar, desvendar as tramas em palavras grafadas
por outrem, o autor. Toma emprestado dele o invento – o livro e seus segredos –
e se empresta ao ler. Torna-se instrumento encantado para apresentar o
que o outro – o inventor – criou.
Assim, a leitura, diferente da
contação de histórias, oportuniza o contato com o texto literário[2]
que, apesar do tempo e do mediador, mantém-se inalterado, com o léxico, a
estrutura textual e as escolhas poéticas, filosóficas, éticas – todas – do
autor. Neste caso, é preservada a experiência
estética com o texto produzido, única para cada sujeito leitor ou ouvinte. Nas
palavras de Cunha (2014, p. 112-113):
[...] podemos entender
a experiência estética literária como a soma da percepção/apreensão
inicial de uma criação literária e das muitas reações (emocionais,
intelectuais ou outras) que esta suscita (...). Tal produção literária é – ela
também – uma experiência estética, cujo resultado seu criador quer fazer
único e inconfundível, com marcas que ele gostaria que fossem percebidas pelo
leitor como pegadas no caminho da leitura de sua obra. Assim, na descoberta
dessas, (...) o leitor tem um papel de criação. (...) Isso torna a experiência
com a leitura da obra literária algo tão rigorosamente pessoal para o leitor
quanto foi a criação para seu autor. Por isso mesmo, é insubstituível a fruição
surgida do contato direto (por audição, leitura ou até assistência da
representação, no caso do teatro) com a obra literária: nenhuma resenha,
nenhuma palavra de entusiasmo, nenhuma excelente ação de mediação que se faça
necessária, para facilitar o encontro do leitor com a obra, pode dispensar seu
corpo a corpo com o texto literário.
Ler é diferente de contar. Não é
mais, nem menos. É diferente. Na escola, a criança – aprendiz da espécie humana
que através da fala e pela escrita aprende a organizar o pensamento – acessa,
com a audição de histórias lidas, contatos e aprimoramentos das relações com a
cultura escrita, uma de nossas maiores conquistas antropológicas. Ler para os
pequenos desde tenra infância, então, é inseri-los no que de melhor produzimos
como “sapiens”: a escrita autoral ou, um modo particular de ver/sentir/narrar o
mundo e, um bom mediador, dá nome a quem de direito: ao autor, a autoria; ao
mediador, os sentimentos todos que encontrou ali e quer perpetuar, divulgar,
evidenciar.
[1] No texto Experiência
e Pobreza, o filósofo Walter Benjamin (1933), disserta sobre a perda da
capacidade de contar histórias – e de, com elas, dar ensinamentos morais
através do intercâmbio de experiências –, ocasionada pela dissolução dos
vínculos familiares e pelo empobrecimento de experiências comunicáveis da
população.
[2] “Modo muito singular de
construir sentidos”, o contato com a linguagem literária oportuniza uma
“intensidade” de interação com “a palavra que é só palavra” e uma experiência “libertária
de ser e viver”, de acordo com Rildo Cosson (2014, p. 185). Para Cristina
Álvares (2004, p. 1), a escrita literária tem três características
fundamentais: “ela é coisa na/da linguagem, aquilo que na/da linguagem não é
discurso, mas silêncio”, a escrita ou a leitura de um texto literário “é uma
actividade que rompe (no sentido violento) o laço social” e, esta ruptura “tem
um alcance e um valor sexuais”. “Prática cultural de natureza artística”, para
Paulino (2014, p. 177), a leitura do texto literário se diferencia por
oportunizar contato com “outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas
ações, pensamentos, emoções”.
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