Literatura para crianças: gêneros e tipos textuais
Cristina Maria Rosa
Gênero de natureza
interdisciplinar que integra a teoria literária[1]
– a Literatura Infantil é uma “menina” se considerarmos sua historiografia, de acordo
com Ceccantini (2010), nas orelhas de Crítica,
Teoria e Literatura Infantil, de Peter Hunt, um dos raros livros editados
no Brasil que informa acerca do panorama sobre o gênero no exterior[2].
Ao estudar o conceito de
literatura infantil em uma de nossas sextas-feiras na Universidade, após
especulações das mais diversas em que palavras como “arte, universo, gênero, conjunto,
área de estudos, tipo textual, grupo de textos, acervo, repertório” e
“linguagem” circularam livremente para definir o que é a literatura para
crianças, uma das alunas surpreendeu-se com o verbete escrito por Lígia
Cademartori no Glossário CEALE[3].
Para ela, Lígia, a literatura
infantil é um “gênero literário definido pelo público a que se destina”.
Ao argumentar, Cademartori indica que são os adultos que leem, escolhem e
definem certos textos como “próprios à leitura pela criança”. Assim, afirma a
pesquisadora, “é, a partir desse juízo, que recebem a definição de gênero e
passam a ocupar determinado lugar entre os demais livros”.
Neste momento, e considerando a natureza interdisciplinar do tema, eu pergunto: qual a concepção de
infância que regra quem julga o que é ou não adequado à leitura pela criança?
Esta concepção é perene? Não sofre modificações com o passar do tempo? Não
assistimos, nos últimos noventa, cem anos[4]
a uma sensível e infindável instituição
da infância como tema e mesmo campo de conhecimento? Não percebemos, mesmo através
de um olhar mais espontâneo, que a infância de nossos avós e pais foi significativamente
diferente da que tivemos e da que proporcionamos para nossos filhos, irmãos,
sobrinhos, alunos? E, para arrematar, não estamos lendo a respeito de infâncias,
no plural, indicando que há ou pode haver noções e mesmo vivências
concomitantes e mesmo diametralmente opostas de infância[5]?
Assim como Cademartori (2014), acredito
que o acervo ou grupo de textos definido, classificado, escrito e lido como literatura infantil está
intimamente ligado e depende da concepção que a sociedade tem da criança e da infância.
Instáveis, uma vez que variam em diferentes épocas e culturas, os dois
conceitos – infância e criança – precisam ser acionados quando se quer afirmar
tal ou qual obra como adequada ou não a esse público.
Em seu verbete no Glossário CEALE, Cademartori
recorre a Peter Hunt[6],
um dos estudiosos que se dedicou a definir o que é literatura para crianças. Na
obra Crítica, Teoria e Literatura
Infantil, traduzida e publicada pela editora Cosac Naify no Brasil em 2010,
Hunt evidencia uma “característica distintiva a partir da qual se pode conceituar
o que é literatura infantil: o livro para crianças pode ser definido a
partir do leitor implícito – isto é, a partir do tipo de leitor que o texto
prevê” (CADERMATORI, 2014, p. 199). A autora tenta, então, explicitar, em seu
verbete no Glossário CEALE, o que é o “tipo” de leitor que estaria implícito quando
da produção e circulação do texto infantil: um “leitor em formação e com
vivências limitadas por força da idade”.
E o que é um leitor em formação, eu
pergunto? Como podemos definir em que estágio desta formação está este ou
aquele pequeno que nos cerca, familiar ou aluno? Como saber o quê e quando
apresentar gêneros, autores e títulos aos infantes que, na escola, buscam
conhecer uma das mais peculiares formas de manifestação de nossa língua? Seria
a “competência linguística[7]
da criança para ler os signos” o limite? Suas “experiências de vida”? Os dois
quesitos ao mesmo tempo? Se sim, como conhecê-los e considerá-los em uma sala
de aula na qual as crianças não raras vezes têm competências linguísticas[8]
e experiências de vida distintas?
Gênero e tipo textual: precisamos de uma distinção?
Ao ler a obra Gêneros Orais e Escritos na Escola, escrita por Bernard Schneuwly[9]
e Joaquim Dolz[10], traduzida por Roxane Roxo[11]
e publicada no Brasil pela Editora Mercado de Letras em 2010, encontra-se uma
clara distinção entre gênero e tipo textual[12].
De acordo com o texto a distinção reside na possibilidade de afirmar que um gênero textual pode conter uma ou mais tipologias textuais.
E o que seria gênero textual,
para seu autor? De acordo com Bakhtin[13],
a palavra gênero tem um sentido amplo. São os diferentes tipos de textos orais
e escritos que os sujeitos utilizam, socialmente, de acordo com funções
definidas pelo contexto vivido. Cada gênero linguístico possui determinadas
características, pois, para cada situação social definida é elaborado um tipo
específico de enunciado. Além disso, cada gênero apresenta conteúdo, estilo e
composição própria e a definição de cada gênero se dá em função da temática em
foco, dos participantes envolvidos no contexto e na vontade do locutor. Desse
modo, pode-se inferir que há uma relação de interconexão e dependência
entre gênero e contexto que cria uma dupla necessidade: conhecimento do gênero
em si e, também, do contexto do qual é expressão e ao qual se destina.
Após apoiar-se em Bakhtin, Schneuwly (2010) passa a defender a tese de que
a passagem dos gêneros primários (discursos que se originam de situações
espontâneas) para os secundários (comunicações culturais mais elaboradas, de
cunho artístico, científico e sociopolítico) depende da diversidade de tipos de
textos aos quais as crianças são expostas. Assim, quanto maior a heterogeneidade
de gêneros e tipos a elas ofertados, maior a possibilidade de escolha e de
migração de um discurso menos elaborado para a leitura produção de textos
complexos.
Efetivamente produzidos em nosso
cotidiano, os gêneros são textos que
cumprem funções em situações comunicativas e que apresentam características
gerais comuns — como forma, estrutura linguística e assunto — facilmente
identificáveis. Um dos exemplos mais banais é o e-mail, que veio substituir a carta anteriormente enviada pelo
correio. Hoje, o e-mail está em vias de desaparecimento; em seu lugar, algo
mais instantâneo: o WhatsApp. Lista de compras, cartazes, panfletos, romances, novelas,
editoriais, monografia, atas, piada, contos de fadas, cardápio, ensaio,
editorial entre outros, são exemplos de gêneros textuais.
Gêneros, então, são as inúmeras
formas textuais escritas ou orais estáveis, da mesma forma que são inúmeras as
práticas sociais a que elas servem e, enquanto a prática social estiver em
vigor, o gênero textual a ela associado circulará.
Já os
tipos textuais, para Schneuwly (2010) são “composições linguísticas que têm como característica a predominância de
certas estruturas sintáticas, tempos e modos verbais, classes gramaticais,
combinações”, de acordo com sua função e intencionalidade no interior do gênero
textual. Diferentemente dos gêneros textuais – inúmeros – a tipologia textual é
limitada: Narrativo, Descritivo, Argumentativo, Expositivo e Injuntivo.
Relação entre gênero e tipo textual
A relação que há entre gênero e
tipo textual é que no caso do gênero, ele pode conter uma ou mais tipologias textuais.
Exemplos:
ü Para os gêneros crônica, romance, fábula, piada, contos de fadas, entre
outros, a tipologia textual predominante é a narrativa;
ü Para os gêneros anúncio de classificado, lista de compras, cardápio,
cartaz de procura-se, a tipologia que predomina é a descritiva;
ü Para os gêneros manifesto, sermão, monografia, ensaio, editorial,
dissertação, a tipologia predominante é argumentativa;
ü Para os gêneros livro didático, verbete de dicionário e enciclopédia, é
a tipologia expositiva que predomina;
ü Para os gêneros propaganda, receita culinária, manual de instruções,
entre outros, a tipologia injuntiva
é a mais recorrente[14].
Concluindo: unindo conceito com
sua explicitação
A literatura infantil é um gênero
literário produzido por adultos (autores, ilustradores, editoras, medidores) para
a infância que estes adultos imaginam existir entre as crianças de seu tempo.
Volúvel, indefinida, em trânsito, a infância é um conceito de difíceis
contornos. De natureza interdisciplinar, o trato às questões
das crianças e da infância não necessariamente precisam ser todas inseridas na
obras que para elas preparamos, lemos, disponibilizamos. Uma vez que são os
adultos que escrevem, leem, escolhem e definem certos textos como “próprios à
leitura pela criança”, a literatura infantil é fruto de épocas: mais ou menos
assertivas, vão deixando um rastro de pistas para compreendermos como tratamos
nossos pequenos, como os inserimos em nossas questões, todas elas tão
importantes na vida adulta.
O que pensamos e como tratamos a
morte na literatura para as crianças? O que pensamos e como tratamos o abandono
na literatura para as crianças? O que pensamos e como tratamos a indiferença na
literatura para as crianças? O que pensamos e como tratamos o amor na literatura
para as crianças? O que pensamos e como tratamos a inveja na literatura para as
crianças? Essas e outras questões indicam que
a literatura para crianças é assunto sério. Arte. Doce e útil. Arte.
Sempre.
[1] Campo de estudo e sistematização da
Literatura como área do conhecimento, bem como os modos de análise deste campo,
tem entre suas ocupações análises historiográficas e criticas de obras, gêneros, autores, épocas,
estilos, tipos e, também, relações entre literatura, política e ideologia além
da função do leitor na constituição do literário, entre outros.
[2] Reino Unido, Alemanha, França e Estados Unidos, de
acordo como Ceccantini (2010), produzem, desde longa data, estudos sobre a
literatura para a infância que nos são desconhecidos.
[3] CADEMARTORI, Lígia. Literatura Infantil. Glossário CEALE. UFMG, 2014. Disponível também
online em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/
[4] Considero Monteiro Lobato (1882-1948) o primeiro
autor que, através de sua obra, instituiu um conceito inovador de infância via
literatura. Ao produzir Emilia, sua personagem
mais interessante, inventou uma infância irreverente, que pensa, se insurge, é
descomprometida com o futuro, ignora hierarquias e, ao mesmo tempo, inventa o
seu presente. Desse modo, o escritor de “O Sítio do Picapau Amarelo” produziu
um alargamento conceitual – nos adultos da época e nos que os sucederam – da
palavra infância e do que se espera ou se pode desejar dos pequenos. Seu
primeiro livro, A menina do narizinho
arrebitado (1920), dá inicio, é o marco zero do tempo da infância na literatura brasileira. Embora as infâncias ali
presentes sejam elementos de ficção, suas atitudes, proposições, formas de pensar
e se relacionar reverberaram e conformaram literária e empiricamente as infâncias
de quem o leu e o legou.
[5] Sobre o tema, ver A invenção da Infância, curta-metragem de Liliana
Sulzbach no qual a expressão “ser criança não significa ter infância” indica o
objetivo de instituir uma reflexão sobre o que é ser criança no mundo
atualmente.
[6] HUNT, Peter. Crítica,
Teoria e Literatura Infantil. São Paulo, Cosac Naify, 2010.
[7] De acordo com Luiz Carlos Travaglia (2014), competência linguística é um termo que
denomina a capacidade do usuário da língua de produzir e entender um número
infinito de sequências linguísticas significativas, que são denominadas
sentenças, frases ou enunciados, a partir de um número finito de regras e
estruturas. Segundo alguns, é o conjunto de normas ou regras que temos em nossa
mente (internalizadas, portanto) que nos permite emitir e receber frases, e
julgar se elas são ou não bem formadas ou se podem ou não ser consideradas como
frases que pertencem à língua.
[8]
O que são competências linguísticas?
[9] Professor e pesquisador em Didática do
Francês/Língua Materna, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
(FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE), Suíça.
[10]
Professor e pesquisador
em Didática do Francês/Língua Materna, da Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE), Suíça.
[11] Roxane Rojo é pesquisadora no Programa de Estudos
Pós-Graduados em Lingüística Aplicada (LAEL) da PUC-SP e coordenadora do
convênio interinstitucional estabelecido entre o Programa de Lingüística
Aplicada da PUC-SP e a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FAPSE)
da Universidade de Genebra
[12] Na obra, os autores, Bernard
Schneuwly e Joaquim Dolz se ocupam em responder a algumas questões como: Por
que se trabalhar com gêneros e não com tipos de textos? Em que esses trabalhos
e esses conceitos são diferentes? O que é gênero de texto? Que gêneros
selecionar para ensino, e como organizá-los ao longo do currículo? Como pensar
progressões curriculares? Deve-se trabalhar somente com os gêneros de
circulação escolar? De circulação extra-escolar? Ambos? Quais são os mais
relevantes em cada caso?
[13] BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[14] De acordo com
Schneuwly (2010), é importante salientar a presença do adjetivo predominante ou recorrente,
pois cada gênero pode apresentar mais de uma tipologia, daí a designação
sequência textual, já que os textos podem ser elaborados com sequências de mais
de uma tipologia textual, embora sempre uma delas prevaleça. Por exemplo, em
uma crônica pode haver uma sequência narrativa, uma descritiva e até mesmo uma
sequência argumentativa.
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