Convidei Regina
Zilberman (2009) para escrever uma apresentação em meu livro. Ela me presenteou com
uma aula de literatura, professora e pesquisadora que sempre foi. Generosa,
dedicou seu tempo a recompor, no texto, parte considerável da história da
literatura para crianças no Brasil.
Que privilégio!
Leia aqui o escrito.
É imperdível!
Pedro Wayne: Pessoa de Letras
Regina Zilberman
No contexto da literatura sul-rio-grandense, Pedro Wayne (1904-1951)
ocupa um lugar especial. Foi adepto de primeira hora do projeto modernista,
gestado na São Paulo dos anos 1920 do século passado, e difundido pelas distintas
regiões brasileiras ao longo daquela década e das seguintes. Foi também um
motivador cultural junto à sua geração e a de então jovens artistas, como os
pintores bageenses Danúbio Gonçalves (1925), Glênio Bianchetti (1928) e Glauco
Rodrigues (1929), expoentes que, mais adiante, ao lado de Carlos Scliar
(1920-2001), de Santa Maria, e de Vasco Prado (1914-1998), de Uruguaiana,
formaram o famoso Clube da Gravura de Porto Alegre que, por volta de 1950, alavancou
as artes plásticas no Rio Grande do Sul.
Foi igual e plenamente poeta e ficcionista. Seu primeiro livro, Versos
meninósos e a lua, de 1931, comprova, em versos em que predomina a
coloquialidade e o humor, que sua adesão ao Modernismo enraizou-se em sua
linguagem lírica. Assim, não apenas compartilhou o projeto experimentalista
adotado por sua geração, como o transportou para sua linguagem literária,
colaborando para a renovação da poesia sul-rio-grandense, a seu tempo ainda
marcada pelos resíduos simbolistas herdados de Alceu Wamosy (1895-1923) e Eduardo
Guimarães (1892-1928). Tal como Alvaro Moreyra (1888-1964), buscou motivos no
cotidiano, que abordou de modo espirituoso e, em algumas circunstâncias, até
cômicos; e, como Felipe D’Oliveira (1890-1933), não abriu mão da ideia de
liberar a linguagem poética de suas amarras gramaticais e sintáticas, renovando
a expressão por meio da ousadia métrica e rítmica. Por outro lado, ao contrário
dos dois últimos poetas mencionados, Pedro Wayne não deixou o Rio Grande, nem
marchou na direção da capital, como era habitual entre jovens intelectual e
artisticamente promissores. Ele deixou a Pelotas onde se educou e começou a
trabalhar, e radicou-se em Bagé, decisão que trouxe excelentes dividendos à
cidade que o acolheu.
Foi provavelmente a opção pelo Rio Grande do Sul, e sobretudo pelo Rio
Grande “profundo”, estudando e trabalhando em cidades de evidente tradição
cultural, mas comprometidas com a economia rural, que o levou a redigir Xarqueada,
um dos mais importantes romances brasileiros da década de 1930, do século XX.
Os anos 1930 foram particularmente férteis para a literatura do Rio
Grande do Sul. Na esteira da revolução liderada por Getúlio Vargas (1882-1954),
que o levou ao poder e garantiu sua permanência na condição de presidente da
república por quinze anos, entre 1930 e1945, a elite do Estado dispôs de canais
na vida pública que repercutiram favoravelmente na economia local. Protegidos
pelo governo, pecuaristas obtiveram a liquidez que facultou investimentos não mais
no campo, mas nas cidades; essas puderam crescer, fortalecendo, por via de
consequência, uma classe média associada ao funcionalismo público e às
profissões liberais. A industrialização chegou mais tarde, por efeito da
ascensão dos grupos de imigrantes desembarcados no Sul nas últimas décadas do
oitocentos e nas primeiras do novecentos. Mas também esses novos grupos
econômicos cooperaram para o encorpamento das camadas urbanas, com efeitos no
comércio e na circulação de bens de consumo.
Ao longo dos anos 1930 e 1940, ainda que sob o tacão da ditadura e sob o
medo da expansão do nazifascismo na Europa, com seus efeitos na região sul,
onde os descendentes dos imigrantes alemães e italianos não escondiam sua
admiração por, respectivamente, Adolf Hitler (1889-1945) e Benito Mussolini
(1883-1945), o Rio Grande pôde desenvolver-se econômica e culturalmente. Por
tabela, cresceu igualmente a população escolar e aumentou o público leitor.
Evidencia-se uma demanda por literatura, que se materializa na oferta de livros
estrangeiros, nacionais e locais produzidos por editoras situadas fora e dentro
do Estado, como, neste caso, a mais importante delas, a Globo.
Quando Pedro Wayne publica Xarqueada, Érico Veríssimo (1905-1977)
já tinha escrito romances como Clarissa, Música ao longe e Um lugar
ao sol, Cyro Martins (1908-1995), publicado os contos de Campo Fora,
e Dyonélio Machado (1895-1985), lançado Os ratos, sua novela mais
prestigiada. A ficção voltada para assuntos ligados à vida rural, contudo, não
se libertara ainda da perspectiva de exaltação ao homem do campo, em especial,
o peão ou o vaqueano, compreendido como o gaúcho guerreiro, que vivera seu
momento de apogeu à época da revolta liderada por Bento Gonçalves (1788-1847).
A epopeia farroupilha, celebrada desde as novelas e poemas de Apolinário Porto
Alegre (1844-1904) e de seus contemporâneos, pertencentes à Sociedade Partenon Literário
(1868-1885), ainda fertilizava as imaginações, de que são exemplos as obras
publicadas por ocasião do centenário do movimento, em 1935. Ainda que João
Simões Lopes Neto (1865-1916) e Alcides Maya (1877-1944) tivessem diagnosticado
a superação e a decadência desse mundo rural primitivo, a ficção dos anos 30
não traduzia a nova situação, a não ser quando se dirigia à temática urbana,
como faziam Verissimo e Dyonélio, mas ainda não Cyro Martins, cujo primeiro romance
relativo a esse tema, Sem rumo, data de 1937.
É essa circunstância que assinala a importância de Xarqueada, de Pedro
Wayne. Provavelmente impressionado pela ficção militante da ficção de Jorge
Amado (1912-2001), que, até então, já tinha lançado os romances Cacau
(1933), Suor (1934), Jubiabá (1935), Mar Morto (1936) e Capitães
da Areia (1936), Pedro Wayne reconstitui, no interior do Rio Grande do Sul,
o funcionamento daquele que, até sua época, constituiu o principal motor da
economia da metade sul do Estado – os saladeiros – para mostrar e denunciar a
exploração do assalariado rural, a violência do sistema e as alternativas de
mudança. Wayne não se limita a constatar as razões da decadência de um certo
sistema econômico, exilando o campeiro, como em Sem rumo, de Cyro
Martins, e o modo autocrático e centralizador do exercício do poder, como em Música
ao longe e Um lugar ao sol, de Érico Veríssimo. Ele busca pensar a
questão desde uma perspectiva política progressista, o que ainda não se
instalara plenamente no imaginário da literatura do Rio Grande do Sul e que
aparecerá mais tarde, em romances de Dyonélio Machado (Desolação, de
1944; Passos Perdidos, de 1946), e de Cyro Martins (Estrada Nova,
de 1954).
Tais circunstâncias afiançam a Pedro Wayne posição inquestionável na
literatura do Rio Grande do Sul e na trajetória do romance brasileiro. Contudo,
como se pode verificar na pesquisa de Cristina Maria Rosa, reunida em “Um
alfabeto à parte: biobibliografia de Pedro Rubens de Freitas Weyne – O Pedro
Wayne”, o escritor radicado em Bagé foi muito mais longe. Sua produção
estendeu-se para além do romance de 1937, como testemunham obras suas lançadas
pós morte, bem como os estudos de autoria de seu filho mais velho, Ernesto Wayne
(1929-1997), poeta, professor e crítico literário, entre os quais se contam sua
dissertação de mestrado e o estudo dedicado ao pai, publicado em 1989 pelo
Instituto Estadual do Livro, do Estado do Rio Grande do Sul.
A pesquisa de Cristina Maria Rosa apresenta qualidade ímpar: com o
intuito de, primeiramente, recuperar a trajetória intelectual de Pedro Wayne,
investiga sua história, bem como a trajetória de seus ascendentes,
caracterizando o perfil de uma família profundamente comprometida com o mundo
das Letras e da Literatura. A fim de descrever e compreender o ser humano
Pedro, examina o percurso de sua existência desde os bancos escolares até a
transferência para Bagé, acompanhando, a partir daí, suas primeiras ações como
criador e animador cultural. Por sua vez, o panorama se amplia, ao incluir elementos
da vida social dos locais por onde passou o biografado, estendendo-se, ao
incluir o itinerário de seus descendentes.
A pesquisa, realizada de modo minucioso e organizada de modo didático,
não recua perante obstáculos, remetendo às fontes primárias, sejam os guardados
do próprio escritor, os depoimentos dos que o conheceram, os documentos
mantidos em arquivos pessoais e, sobretudo, institucionais. Há alguns momentos
em que a pesquisadora abre mão do posicionamento objetivo e distanciado
requerido pelo procedimento científico, para dar oportunidade a que os sujeitos
diretamente envolvidos com o escritor tenham ocasião de abrir suas memórias e
expor sua saudade.
Não poderia ser diferente: a pesquisadora teve a rara oportunidade de
conversar com a viúva de Pedro Wayne, então completando seu centenário e
senhora da lucidez necessária para contaminar a obra de Cristina Maria Rosa com
a vitalidade e a sensibilidade que moveu seus atos. Se o ponto alto da coleta
de dados coincide com o testemunho de Leopoldina de Almeida Calo Wayne, viúva
de Pedro Wayne, o momento culminante da pesquisa é o achado das Histórias da
Teté, manuscrito produzido pelo autor com o fito de estimular em sua filha
Ester o desejo de alfabetizar-se e, ao mesmo tempo, de cultivar a fantasia e o
gosto pela literatura.
Histórias da Teté, redigido segundo Cristina Maria Rosa entre os últimos
anos da década de 1930 e início da década de 1940, é uma narrativa original,
que mescla elementos das cartilhas com características da literatura infantil,
tais como enredo e personagens. Para se avaliar a importância de tal achado,
cabe verificar os paradigmas históricos com os quais aquela obra se
relacionaria.
Data de 1936 a obra Meu ABC, que Érico Veríssimo publicou pela
Livraria do Globo, sob o pseudônimo de Nanquinote, figura inventada e desenhada
pelo romancista para acolher, na Biblioteca do Nanquinote, obras
destinadas ao público infantil abrigadas por aquela editora. Em Meu ABC,
cada letra do alfabeto da língua portuguesa ocupa uma página de texto, que
apresenta uma curta narrativa composta por vocábulos, na maioria, iniciados
pelo grafema em questão. Para a letra A, dizem as frases iniciais do texto:
“O
avião voa. O avião é vermelho. O céu é azul. O menino de calças azuis aponta
para o avião e diz: “Eu queria ter um brinquedo como aquele”.[1]
É também da Livraria do Globo A festa das letras, cartilha assinada
por Cecília Meireles (1901-1964) e Josué de Castro (1908-1973) que procura
mesclar, à aprendizagem dos grafemas da língua portuguesa, a transmissão de
“preceitos de higiene alimentar, indispensáveis à sua [do leitor] vida”,
conforme declaram os autores.[2]
Também Mario Quintana (1906-1994) produziu uma cartilha, O batalhão das
letras, de 1946. Tanto A festa das letras, quanto O batalhão das letras
apresentam versos rimados para introduzir os grafemas por meio das palavras
iniciadas por elas, como se verifica nas estrofes a seguir, extraídas da obra
de Cecília Meireles e Josué de Castro:
E
os raminhos de Aipo que estão deste lado?
E
estas folhinhas verdes de Agrião!
Quem
é que ainda não sabia quem eu fosse!
–
Sou o A do Arroz-doce!
Nesses três exemplos, criados por renomados escritores brasileiros, a
exposição é bastante convencional, já que os grafemas são apresentados de
maneira separada, visando apenas seu reconhecimento pelo leitor, que os
identifica individualmente, como nesse quarteto de Mario Quintana,
Aí
vem o Batalhão das Letras
E,
na frente a comandá-lo,
O
A, de pernas abertas,
Montado
no seu cavalo.[3]
Ou então eles aparecem na abertura de vocábulos, mostrados sob formatos
diferentes (maiúsculos ou minúsculos, por exemplo), como se constata nos demais
autores citados.
É tão-somente com a publicação, a partir dos anos 1990, da Coleção ABZ,
criada por Ziraldo (1932) e reunida depois em um único volume, em O ABZ do
Ziraldo, que se propõe um outro paradigma para cartilhas que não têm como
propósito figurar na escola como livro didático. Ziraldo elabora um enredo para
cada um dos grafemas, tornando-os protagonistas de uma ação com início, meio e
fim. Assim, há uma conexão narrativa que motiva o interesse do leitor para além
da aprendizagem da forma e do significado de uma letra. Pode-se dizer que, ao
invés de alfabetizar pela introdução à ordem dos grafemas da língua portuguesa,
Ziraldo motiva o letramento, pois o leitor é introduzido ao universo da escrita
por meio de suas representações mais conhecidas, ao mesmo tempo em que se
diverte com o acompanhamento de uma história.
Quem ler as Histórias da Teté, resgatadas por Cristina Maria Rosa,
em sua obra “Um alfabeto à parte: Biobibliografia de Pedro Rubens de Freitas
Weyne – O “Pedro Wayne”, constatará que o autor radicado em Bagé foi capaz
de oferecer à sua filha um produto similar a uma época em que questões sobre
alfabetização e letramento não eram discutidas, e nem mesmo a literatura
infantil, no Rio Grande do Sul, oferecia exemplos de criatividade e renovação.
Mesmo no plano nacional, nossa produção para crianças restringia-se a poucos
nomes e, se entre eles refulgia o de Monteiro Lobato, não significa que esse grande
artista contasse com a companhia numerosa de outros escritores.
Pedro Wayne pôde, assim, ainda que no âmbito privado e sem pretensões de
torná-lo público, dar vazão a um texto inteiramente revolucionário que,
passados quase setenta anos de sua elaboração, mostra-se ainda novo e inovador,
como se tivesse vindo à luz há muito pouco tempo. Como foi capaz de elaborá-lo?
Provavelmente porque era (e o mesmo pode-se dizer de sua família, tenham sido
os ascendentes ou os descendentes) um homem letrado, amante do livro e da
leitura. Sua sensibilidade de poeta, agudizada pelo universo em que vivia, bastou
para motivar, de maneira até certo ponto espontânea, o aparecimento de tal
obra.
Obra que, agora, temos o privilégio de conhecer e apreciar. Devemos ser
muito gratos a Cristina Maria Rosa, que nos propiciou o acesso a esse valioso
material, ainda mais valorizado por ter sido objeto de tratamento qualificado
por parte de uma pesquisadora, ela também, pessoa sensível e amante das letras.
Regina Zilberman - UFRGS; FAPA
[1] NANQUINOTE [VERÍSSIMO,
Érico]. Meu ABC. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1936. Curiosamente, essa abertura
do livro guarda alguma semelhança com o capítulo inicial de Clarissa, de mesmo
autor, publicado em 1933.
[2] MEIRELES, Cecília; CASTRO, Josué. A
festa das letras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. A edição original data
de 1937.
[3] QUINTANA, Mario. O
batalhão das letras. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1946.
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