Gênero, família e sexualidade em obras para a infância
Cristina Maria Rosa
Há obras de literatura que oportunizem conhecer, explorar e discutir as temáticas gênero, família e sexualidade transviada na infância? Inscrito no XXXI Congresso de Iniciação Científica que ocorrerá entre 17 e 21 de outubro de 2022 na UFPel, o trabalho intitulado HETEROCISNORMATIVIDADE EM ACERVO DE LITERATURA INFANTIL, de autoria do Rafael Mendes - estudante da licenciatura em Pedagogia, foi aprovado. Orientado por mim, Cristina, o trabalho tem como diferencial a dedicação intensa de Rafael ao acervo da SLEV. Quer conhecer o resumo que o Rafael enviou ao evento? Leia a seguir...
HETEROCISNORMATIVIDADE EM ACERVO DE LITERATURA INFANTIL
Rafael Mendes
INTRODUÇÃO
Com a pesquisa pretendo realizar uma curadoria crítica acerca de obras literárias que possam explorar discussões das temáticas gênero, família e sexualidade transviada na infância. Utilizei, como banco de dados, parte do acervo literário da Sala de Leitura Érico Veríssimo (FAE/UFPel). Ramos (2008) compreende a literatura para crianças como um elemento importante na construção do imaginário infantil em relação à cultura do adulto, funcionando como mecanismo de fixação e normatização das identidades femininas e masculinas. Nesse sentido, busco revelar se há representações de gênero transviadas da heterocisnormatividade em narrativas literárias destinadas ao público infantil, fundamentando-se nos estudos da teoria queer (BUTLER, 2003) e transviada (BENTO, 2017), que problematizam a naturalização da performance de gênero em relação ao sexo biológico, pois O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. (BUTLER 2003, pg. 59) Em uma estrutura social colonialmente dominante que busca a sustentação da família nuclear tradicional, a naturalização de gênero atua como mecanismo de desvalidação de subjetividades transviadas. Penso que a literatura pode vir a intervir e ser instrumento de validação e proteção da diversidade de infâncias ao oportunizar práticas de letramento que atuem na desnaturalização desses discursos hegemônicos. A leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, permitindo ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade sem perder de vista sua subjetividade e história. O leitor não esquece suas próprias dimensões, mas expande as fronteiras do conhecido, que absorve através da imaginação e decifra por meio do intelecto (ZILBERMAN,2008, pg. 27). Dessa forma, a literatura pode atuar na subjetivação do leitor, possibilitando a criação e (re)criação de suas visões do mundo e de si mesmo, potencializando a pluralidade. Portanto, para práticas de leitura com crianças, a escolha do livro e a mediação do mesmo é fundamental para formar futuros leitores sensíveis a tais processos de significação, o que evidencia a importância da bibliodiversidade no acervo da Faculdade de Educação, que atua na base da construção do repertório literário de professores mediadores em formação. 2.
METODOLOGIA
De caráter qualitativo, a pesquisa teve como procedimentos a
seleção, análise e interpretação de obras literárias. O primeiro momento se caracterizou
pelo acesso a 280 livros para crianças inseridos no acervo da Sala de Leitura
Érico Veríssimo da Faculdade de Educação da UFPel. Os livros foram escolhidos
por extensão de texto (até 120 páginas) e ilustrados. Estabeleci como critério
de análise a perspectiva pós estruturalista de produção de sujeitos com base na
teoria queer, proposto pela autora norte-americana Judith Butler (2003) no livro
“Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” e nos estudos
transviados da autora brasileira Berenice Bento (2017), que traçam alternativas
decoloniais à teoria queer, em vista das especificidades da nossa
territorialidade marginal. Ademais, complementei o estudo com as contribuições
de Louro (1997) no livro “Gênero, sexualidade e educação, uma perspectiva pós estruturalista” e Ramos (2008) em “A construção do gênero e da sexualidade
na literatura infantil". Utilizando a interpretação de sentidos como base
metodológica para análise dos dados a partir de Gomes (2007), que diz que O
Método de Interpretação de Sentidos é uma tentativa de avançarmos mais na
interpretação, caminhando além dos conteúdos de textos na direção de seus
contextos e revelando as lógicas e as explicações mais abrangentes presentes
numa determinada cultura acerca de um determinado tema. Nesse método, é de
fundamental importância que estabeleçamos confrontos entre: dimensão subjetiva
e posicionamentos de grupos; texto e subtexto; texto e contexto; falas e ações
mais amplas; cognição e sentimento, dentre outros aspectos. Nele, ancorados
numa base teórica conceitual que procura articular concepções da filosofia e
das ciências sociais, tentamos caminhar tanto na compreensão (atitude
hermenêutica) quanto na crítica (atitude dialética) dos dados gerados de uma
pesquisa. (p. 96) Inicialmente, procurei fazer uma análise dos livros de forma
atenta às suas narrativas, observando a presença de certos discursos
hegemônicos e contra hegemônicos, seguindo os seguintes procedimentos: 1.
Seleção de narrativas de gênero, família e sexualidade; 2. Leitura deleite com
foco no tema; 3. Criação de categorias para estes selecionados: os “livros
potentes” e os “livros problemáticos”; 4. Releitura destes e seleção de cinco
obras com a presença de elementos transviados da heterocisnormatividade para
análise mais profunda. As obras selecionadas para esta primeira apresentação
pública da pesquisa são: A Mochila de Camila (BARCELLOS, 2003), Os meninos e as
meninas (LABBÉ, 2005), Bia na África (DREGUER, 2007) e Omo-oba: histórias de
princesas (OLIVEIRA, 2017). A seguir apresento o uso do Método de Interpretação
de Sentidos na leitura das obras selecionadas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Diante do acervo consultado – 280 livros inseridos no acervo da
Sala de Leitura Erico Verissimo – não evidenciei a presença de personagens e/ou
tramas transviados da heterocisnormatividade, ou seja, não identifiquei a
presença de personagem LGBTQIA+ ou performance de gênero neutro. Também não
encontrei representações para além da família nuclear (tradicional), ou alguma
menção a sexualidades pra além do fator biológico. A exceção é “Os meninos e as
meninas” (LABBÉ, 2005) que, de forma paradidática e heterocisnormativa, trata o
tema gênero e sexualidade. Nos livros lidos encontrei uma forte marcação de
gênero binária. Neles, o amor, o namoro e o casamento heterocisnormativos eram
incitados, como em A Mochila de Camila, (BARCELLOS, 2003), em que a personagem
vai revelando o que tem na sua mochila (cadernos, lápis e laços de fita) e, na
última página, a ilustração apresenta ela com um menino, ambos rodeados por
corações e, no texto o seguinte: “A felicidade de poder voltar pra casa depois
da escola, a alegria de poder sorrir e sonhar; E a esperança de crescer feliz,
ficar grande, namorar e casar”. Essas narrativas me trouxeram a compreensão de que
gênero e sexualidades estavam muito presentes nos livros, não havendo
neutralidade no tema. O que há é um “apagamento” de narrativas desviantes.
Segundo Bento (2017) “a inquietação a respeito do quão apropriado é ensinar
temas queer, gays ou lésbicos está claramente ligada ao medo de que o tema
possa corromper o estudante”, ou seja, é uma questão ideológica. Por exemplo,
em Cada sapo com seu sapo, cada princesa com sua sutileza, (Miguez, 2004), a
princesa que estava brincando, faz um trato com um sapo e acaba sendo obrigada
a se casar. Em uma ilustração eles estão deitados na cama e, enquanto ele
sorri, ela parece incomodada. No texto, a seguinte inscrição: “Sapo na mesa,
sapo na cama, sapo no colo da dama, tecendo nova trama, um beijo na boca
reclama; A língua não mente o que o coração sente...O sapo pressente o amor
nascente”. No epílogo do livro, a princesa se apaixona pelo sapo e os dois
ficam juntos. Essa leitura me faz questionar: Que sentidos podemos identificar
nesse discurso? Que tipo de impressões uma pequena leitora faz do mundo adulto
após esta experiência literária? O que esse livro diz sobre as mulheres, sobre
o amor, casamento, heterossexualidade, estupro e pedofilia? Apesar da ausência
de livros com narrativas transviadas da heterocisnormatividade, encontrei
algumas obras muito potentes como Omo-oba: histórias de princesas, da
brasileira Kiusam de Oliveira (2017). Nela de forma acessível às crianças, a
filosofia dos Itãs das Orixás Oiá, Oxum, Iemanjá, Olocum, Ajê Xalugá e Oduduá é
apresentada. Por ofertar uma subversão da imagem feminina branca e canonizada,
considerei Omo-oba de extrema delicadeza para explorar diálogos acerca de como
o gênero se constrói socialmente em diversas expressões e corporalidades, em
diferentes lugares e tempos, desnaturalizando-o. 4. CONCLUSÕES A pesquisa em
andamento tem contribuído para compreensão de fenômenos educacionais, pois os
livros de literatura infantil nos apontam para quais elementos culturais são julgados
adequados na educação de crianças em nossa sociedade, já que atuam como
expressão linguística de um discurso (ZILBERMAN, 2008). Dessa forma, observei
que a maioria das obras lidas, até o momento, objetivam a naturalização do
discurso hegemônico judaico-cristão, colaborando pouco para as discussões acerca
das temáticas gênero, família e sexualidade transviada na infância. Em vista
disso, a continuidade da pesquisa se dará no sentido de concluir a
interpretação de sentidos dos livros escolhidos. Penso, ainda, realizar uma
busca, no restante do acervo e em outros espaços, por obras que possam compor
uma lista de referência para abordagem do tema nas escolas.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DREGUER, Ricardo; GUEDES, Avelino; BORGES, Rogério. Bia na África.
Moderna, 2007.
OLIVEIRA, Kiusam de. MARINHO, Josias. Omo-Oba: histórias de
princesas. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva
pós estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.
RAMOS, Josiane Becker de Oliveira. A construção do gênero e da
sexualidade na literatura infantil. 2008. Dissertação (mestrado em Educação) –
Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná. BENTO,
Berenice. Transviad@ s: gênero, sexualidade e direitos humanos. EdUFBA, 2017.
GOMES, Romeu. Análise e interpretação de dados de pesquisa
qualitativa. Pesquisa social: teoria, método e criatividade, v. 26, p. 79-108,
2007.
LABBÉ, Brigitte; PUECH, Michel. Os meninos e as meninas. São Paulo:
Scipione, 2005.
MIGUEZ, Fatima. Cada sapo com seu sapo cada princesa com a sua
sutileza. São Paulo: DCL, 2004.
ZILBERMAN, Regina. O papel da literatura na escola. Via atlântica,
n. 14, p. 11- 22, 2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário