Lendo via telas: argumentos...
Cristina Maria Rosa
Por que devemos ler literatura para as crianças mesmo de modo remoto?
O argumento central da
minha reflexão [1] é que nós, professores, sabedores da distância que existe entre
as crianças que nós educamos e os livros, somos os maiores responsáveis por
oferecer, apresentar, indicar, selecionar, ler primeiro e ler de novo, em voz alta na sala de aula, os melhores textos literários que a
nossa biblioteca possui.
E somos compelidos a estarmos, sempre, em momentos de formação continuada. É elogiável a busca por educação, qualificação,
ampliação, aprimoramento e aprofundamento de nossa condição de leitores.
Eu sou uma professora
experiente com a leitura de textos literários na escola. Eu me mantenho
estudando, lendo literatura e sobre literatura, exercitando a leitura e a
alfabetização literária com diferenciados grupos de leitores e é essa condição
que as pessoas ao meu redor reconhecem. A condição de estar vinculada com o
tema que estudo, me apropriando das novidades da área mas, ao mesmo tempo, não deixando de
reconhecer os valores dos textos mais antigos, que já existem nas nossas
bibliotecas. Então, o argumento de que nós não temos livros suficientes para
oferecer duzentos textos literários por ano, para as crianças que estão nas
escolas, não se sustenta mais. Não se sustenta!
Outro dado é que, desde
o dia que nós tivemos que migrar para as telas (celulares, tablets e
notebooks), nos comunicar de modo remoto e on-line com nossos alunos,
descobrimos “um mundo” de textos disponíveis em bancos literários do país, os textos
em domínio público. E foi desse modo que muitos de nós, professores, percebemos
o conhecimento literário que não tínhamos, que não partilhávamos.
Paralelo a esse
movimento de acesso a bancos de textos – diferenciados acervos literários disponíveis
em arquivos e com acesso gratuito de modo online – recebemos várias
contribuições de pessoas que passaram a ler ou a indicar o que liam, através de
programas como lives, podcast, áudios e vídeos. Algumas dessas pessoas, por serem profissionais das mídias, ofereceram programas em canais no Instagran e no
Youtube e/ou programas de áudio com dicas literárias. Pesquisadores e estudiosos
também disponibilizaram entrevistas, palestras, leituras e artigos com resultados de
pesquisas literárias. Hoje, para além dos livros que nós temos em casa, além
de impressos que há nas bibliotecas das escolas, nós já somos mais “craques” no
uso de todo esse universo que está disponível através de conexões com as pessoas e seus programas.
Então, por que não
utilizá-los? Por que não nos apropriarmos desses modos de fazer? O que é
diferente em tudo isso? O diferente é aquilo que é lido, o texto que está nas
mãos do professor. Isso é o diferente! É esse texto que vai qualificar o nosso
aluno. E é esse texto, professora e professor, que vai te qualificar!
Quando nós entregamos
para nossos alunos “qualquer coisa”, nós também ganhamos qualquer coisa como
retorno. Porque, ao entrar em contato com o texto "qualquer coisa”, eu também
perdi a oportunidade de ler um texto bom. Eu não me livrei da tarefa, eu tive
que pensar nela. E se eu selecionei um texto "qualquer coisa” para enviar ao
meu aluno, eu perdi tempo. Mais que isso: eu enviei para a casa de um aluno um
texto, em meu nome, me representando.
Já imaginaste, professora,
se a mãe, a tia, a prima, a amiga daquela família é uma professora que gosta de
literatura? Se ela é uma bibliotecária? E se elas lerem esse texto e perguntarem
à criança: “Qual é o nome da tua professora e em que escola ela trabalha?”
Corremos o risco de a
mãe, o pai, a avó, a tia, a amiga daquele aluno descobrir, professora, que tu mandaste
para a casa deles um texto "qualquer coisa”, ao invés de mandar literatura.
Tempo perdido. Na verdade, tempo desperdiçado. Envie o melhor. Corra riscos
professora! Corra riscos professor!
E
a morte?
Sim, é muito forte
falar sobre a morte com crianças. Mas, se não falarmos, quem falará? Se não
falarmos sobre a morte literariamente, quem falará? Se não abordarmos nossas dores, literariamente, quem fará? A quem é reservado tratar das coisas humanas
na escola?
Os pais em casa usam
todas as ferramentas que possuem para educar seus filhos. Às vezes, professora,
eles não têm as ferramentas que tu tens. Às vezes, os pais têm, mas não sabem usar.
Tu aprendeste na Faculdade a usar as ferramentas para educar. Isso é o que
caracteriza a nossa profissão. Professor é quem estuda para saber mediar. Essa
é nossa profissão!
O processo de formação
ocorre quando acessamos um banco de informações que está nas licenciaturas, na
Universidade, nas bibliotecas e quando as utilizamos nas salas de aula. O intuito
é que as crianças recebam o que é importante.
Quem sabe o que é
importante? Tu, professora, tu sabes o que é importante, tu sabes o que é
necessário para que uma criança, ao final do 1º ano, seja promovida para o 2º
ano. Para um grau mais elevado de conhecimentos, inclusive os literários. Essa
é nossa profissão. Nós não podemos atribuir estas tarefas a outra pessoa. Não
podemos. Essa tarefa é a nossa tarefa. Não existe outra.
Ao enviar, ao selecionar,
ao preparar um exercício a partir de um texto que não é literário, eu estou
corrompendo a noção de literário. Além disso, estou negando acesso ao
literário.
Tu professora, tu sabes
o que é um texto literário. Quando tu ouves um texto literário lido por alguém
que admiras ou quando acessas um texto literário na Biblioteca Pública
Pelotense, na Biblioteca do Colégio Municipal Pelotense, no CETEP, na Feira do
Livro, em uma livraria ou em um sebo, os seus próprios livros ou os livros
literários que estão na biblioteca da tua escola, tu sabes diferenciar um texto
literário de um texto “qualquer coisa”. E eu não estou considerando que um
texto “qualquer coisa”, não tenha valor. Tem. Mas não é literário. Tem valor, qualquer
texto tem valor, integra nossa cultura escrita. Não estou desprezando outros
formatos, eu estou afirmando que o outro formato não pode ser usado no lugar do
texto literário.
A
pergunta que fiz...
A situação hipotética
que criei, da criança que é perguntada pela professora no sexto ano a respeito
de seu conhecimento literário retorna aqui como argumento.
Se uma professora licenciada
em Letras quiser apresentar à seus alunos, aos onze ou doze anos, os “Grandes
Escritores Brasileiros”, aqueles que precisam ser conhecidos na pré-adolescência e na
adolescência e obtiver dela a resposta de que só conhece textos em pedaços, publicados
nos livros didáticos, como será a formação literária da criança dali por diante?
Por onde deverá começar, a professora de literatura, no sexto ano?
Sabemos que os textos literários aos pedaços, publicados na maior parte dos livros didáticos, representam um projeto de inserção das crianças no mundo da literatura, através do conhecimento de gêneros literários. Isto é insuficiente para formar o gosto pela leitura.
Insuficiente!
Nenhuma criança aprende a gostar e se apaixona pela literatura lendo apenas os livros didáticos e respondendo perguntas irrespondíveis sobre esses textos. Perguntas óbvias, cuja resposta não interessa a ninguém. Isso não é literatura! Isso é corromper a literatura e é roubar das crianças o direito de conhecer literatura na escola.
[1]
Texto produzido a partir de Conferência realizada a professores da rede pública
municipal a convite do CETEP/SMED. Pelotas, 13 de maio de 2021. Agradeço à
Luzia Helena Brandt Martins pela transcrição.
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