opinião publicada no TradiçãoCristina Maria Rosa
Tive alunas, muitas. Uma delas, escreveu-me. Não uma carta, que não
somos mais disso. Perguntas. O que é infância para ti?
Quando eu era criança, a infância era a que eu vivia. Não era um
conceito. Era uma experiência. E uma percepção. Das larguezas e dos limites. Sim,
eu percebia que havia outras: as infâncias dos irmãos, das primas, dos colegas
escola. Havia crianças com infâncias mais ricas, mais livres. Outras, mais
abandonadas, menos afetuosas, mais ignoradas. Na minha, íamos à escola, ao
cinema, à missa; líamos o jornal, brincávamos na rua, viajávamos para a zona
rural nos finais de semana, tomávamos banho de rio e comíamos as guloseimas da Nonna.
Na Pedagogia, aprendi que há infâncias. Na literatura, muitas
crianças e seus universos infantis me foram apresentados: Emília, por
Lobato (1920), Fernando, por Verissimo (1936), Lili, por Quintana
(1948). E Arabela, Carolina e Maria, por Meireles. Outras
tantas conheci e sobre seus modos de existir, escrevi. Tudo para radicar suas
presenças. E, assim, inventivamente, fabulei uma criança e sua infância. Ao
engenhar como deveria ser, desejei generalizar: direitos, deveres,
possibilidades. Assim, a criança inventada por mim é oriunda de uma tríade: é
um exemplar da espécie, é herdeira legítima da cultura e não é boa nem má (Paul
Bloom, 2014).
Desembaralhando...
Animais parcialmente inteligentes, nós, humanos não sobrevivemos
sozinhos, precisamos de grupos para aprender: a comer, andar, falar. Por
possuir um tipo estrito de inteligência, nos apartamos da natureza e estamos
apagando os passos. Sem emoção, elogio, aprovação, adoecemos. A fonte desse argumento
está na leitura que fiz de Sapiens: uma breve história da humanidade, de
Yuval Harari (2015).
A criança que idealizei é herdeira legítima da cultura. Herdeiros
são os “nossos” com o melhor e o pior que temos. “Cultura” pode ser coloquialmente
entendida como procedimentos e artefatos da e na história. A
cultura escrita, que é do que trato aqui, é tudo o que produzimos que nos
encanta e representa. Música, poesia e prosa. Fórmulas e equações, tratados e
acordos, receitas e diagnósticos. Manuais, mapas, livros sagrados e jornais.
Memórias, bússolas e mais, se houver...
Observando os projetos de infâncias em curso, percebo que nenhum
adulto de bom senso abre mão do melhor para os seus. E como sociedade, temos
como dever ofertar. Na escola, todas as crianças devem ser consideradas
legítimas herdeiras. Assim, aprender a ler e escrever não pode ser prêmio. Nem
exceção. Legar é disponibilizar livros, métodos, relações exemplares. Lentes,
como se dizia no século XIX. O princípio é: o saber produzido por todos, é de
todos. É um princípio de sobrevivência. Do saber, das instâncias que o generalizam,
da sociedade e, em derradeira análise, da espécie. A criança que está nascendo
no século XXI é um exemplar da espécie humana, é uma herdeira legítima da
cultura, não é boa nem má e sua infância dura bem pouquinho...
Nenhum comentário:
Postar um comentário