Conhecer Graça Paulino: um privilégioCristina Maria Rosa
Graça Paulino, há dois anos, fechou os olhos e não mais abriu. Foi um choque para todos que a amávamos e a queríamos perto. Séria, rindo, irônica, brava, concentrada, lendo, brincando com seus cães, apreciando um café da manhã com ovo e iogurte, no almoço, uma galinha caipira com couve e um espumante ou vinho no Bem Bom, de qualquer jeito ou a qualquer hora era a graça que qieríamos ter perto. Foi muito bom viver e sempre é alentador lembrar detalhes, momentos, frases, olhares e o tom de voz que ficou impresso na memória de quem, como eu, teve o privilégio de tê-la.
Graça foi minha orientadora em um momento muito especial. Com ela descobri quem eu sou na coluna vertebral que sustenta a pesquisa científica sobre e leitura literária no País. Por ela me tornei uma pesquisadora mais focada, mais voltada à Pedagoga que sempre fui, mais comprometida com a escola e as crianças que nela circulam.
Tributo
Para
homenagear Graça, para mantê-la perto, lembrada, amada, nós que a conhecemos
reunimos memórias. Dela e sobre ela. Algumas, já publiquei; outras, ainda
pretendo. Em julho, no dia dois, Rildo me enviou uma cartinha. Ele escreveu:
Cristina,
Entrei
de férias e resolvi fazer uma limpa em velhas pastas de arquivo. Eis que
encontrei este texto que Graça escreveu e não sei se publicou em algum lugar.
Talvez lhe interesse, talvez você já o tenha. De qualquer maneira, segue.
Abraço, Prof. Rildo Cosson. Programa de Pós-Graduação em Letras – UFPB.
Emocionada
por ter sido lembrada como destinatária e pela delicadeza de Rildo, publico
aqui o presente recebido.
Quadro
histórico e referenciais teóricos de interações entre Letras e Educação: pesquisas
acadêmicas sobre leitura literária na escola (1980-2002).
Graça Paulino
1. Literatura para crianças e jovens como objeto de pesquisas no Brasil
A pesquisa voltada para a produção e
recepção de livros cujos destinatários virtuais são crianças e jovens,
envolvendo, por isso, a mediação escolar, tem crescido de modo sistemático e
diversificado desde os anos 80 nas universidades brasileiras. Cresceu, por
exemplo, a ponto de reduzir seu interesse pelo objeto fechado, a que se
denominaria "literatura infanto-juvenil", para acercar-se dos
sujeitos do processo de apropriação – os leitores - como definidores desse
objeto cultural de estudos. Isso demonstra que os grupos ligados a tais
pesquisas não ignoraram o deslocamento teórico ocorrido na área de Estudos
Literários, a partir dos últimos anos da década de 70, que marca um percurso em
direção a leitores e leituras.
Na esteira de renovação do ensino de
português, o trabalho com a leitura literária na escola básica tomou força no
início dos 80, especialmente graças aos trabalhos de Regina Zilberman, Marisa
Lajolo e de seus orientandos, quase todos professores da área de Letras. Aliás,
um dos grandes méritos das reflexões e pesquisas das duas especialistas foi
exatamente a iniciativa de ligar as áreas de Teoria Literária e Educação,
geralmente vistas como bem distanciadas em seus objetos de pesquisa e ensino.
Em certo momento se percebeu que seria difícil pesquisar a produção literária,
sem levar em conta o processo de formação dos leitores literários, que
necessariamente passava pela pesquisa das práticas escolares de leitura, com
problemas que poderiam ser detectados pelo olhar arguto da academia. Esse
olhar, mesmo em sua condição “de fora”, permitiu a humanização do processo,
numa atividade de pesquisa que não permanecia "pura", pois se
mostrava comprometida com os sujeitos – alunos e professores da educação básica
– que demandavam a transformação de práticas escolares autoritárias,
inadequadas ao universo da arte
literária.
Neste novo século, nas escolas de
Letras, ainda há especialistas em Literatura que ignoram ou menosprezam as
pesquisas voltadas para a formação escolar de leitores literários, assim como
nas faculdades de Educação há especialistas da área de ensino de linguagem que
desprezam as especificidades da produção e da recepção literárias, consideradas
como de menor impacto e valor social ou como processo “inexoravelmente”
elitizado por estratégias burguesas de legitimação (Bourdieu, 1987).
Todavia, os Parâmetros Curriculares e
outros documentos oficiais, ao abrirem espaço para a educação estética, indicam
que a percepção de que na Educação essa experiência tem espaço próprio tende a
tornar-se forte, especialmente quando se trabalha paralelamente em Letras no
processo de inserção dos estudos literários numa área maior de estudos
socioculturais, exigindo formação teórica e metodológica diferenciada e dando
conta da pluralidade de saberes e fazeres que constitui o cotidiano, escolar ou
não. As leituras são reconhecidas, então, na diversidade que as caracteriza,
relacionadas a objetivos, estratégias e conhecimentos prévios dos leitores,
organizações linguísticas e textuais, contextos de recepção, suportes, enfim, a
todo um jogo de forças socioculturais determinantes da aparentemente simples
interação do leitor com o texto ou do também aparentemente simples controle
desse processo pelos professores.
De qualquer modo, não só na última
década do século XX, mas, como de início foi dito, nos seus últimos vinte anos,
as pesquisas voltadas para o letramento literário, em sua natureza social, aí
se incluindo o mundo da escola, têm-se multiplicado. Os maiores pólos
brasileiros de produção científica na área são Belo Horizonte, Porto Alegre,
Rio de Janeiro, Campinas e São Paulo. Quase nunca usando a denominação de
"letramento", termo de existência e circulação recente no Brasil, as
pesquisas da área, de qualquer modo, voltaram-se e ainda se voltam, em sua
maior parte, para questões referentes aos modos de inserção dos alunos e
professores nas práticas de leitura, predominando a atenção para a literatura
infantil, nas instâncias de produção e recepção, com suas possíveis mediações
escolares.
A denominação "letramento"
está sendo aqui assumida como a caracterizou Magda Soares (1996):
"inserção nas práticas sociais de leitura e escrita". Segundo a
autora, os níveis de letramento podem ser avaliados, podem caracterizar indivíduos
ou grupos sociais e podem marcar diferenças socioculturais importantes nas
sociedades letradas Por minha vez, passo a denominar "letramento
literário" (PAULINO, 1997) à inserção de indivíduos e grupos em práticas
de recepção literária, caracterizada esta como interação leitor/texto de cunho
predominantemente estético, isto é, envolvendo, ao mesmo tempo, tal como a
descreveu Jauss (1979) a percepção sensorial do texto, em sua materialidade
significante; sua recriação como fazer poético-intelectual e o investimento do
imaginário, como processo catártico.
No Rio, desejamos destacar duas vertentes de
pesquisas sobre letramento literário: uma voltada para a iniciação e formação
escolar e não-escolar de leitores em geral, outra, para a iniciação literária
de crianças no contexto escolar, estando incluída nas duas a preocupação com a
formação de professores. A primeira vertente pode ser bem representada pelo
grupo de Eliana Yunes, pesquisadora de literatura infantil desde os anos 70,
que depois coordenou o PROLER, enquanto Affonso Romano de S’Antanna dirigiu a
Biblioteca Nacional, no inicio do governo Fernando Henrique Cardoso. Destaca-se
nessa vertente a tentativa de unir pesquisa e interferência direta em programas
governamentais de democratização da leitura.
A segunda vertente de pesquisa sobre
literatura infantil no Rio de Janeiro se localiza mais claramente na linha da
crítica cultural e nas interfaces de produções de linguagem propostas pela
filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin. Uma figura da Educação que se
destaca nessa última vertente é Sônia Kramer. É digno de nota que seu trabalho
pessoal não se tenha voltado especificamente para a recepção literária, mas
para questões ligadas às diversas leituras de professores e alunos. Em um de
seus artigos recentes (KRAMER, 2000), ela mesma se ocupa em destacar também a importância
do trabalho de Maria Luíza Oswald, denominado Aprender com a literatura, de 1997, que abriria um
"filão", antes sem consideração específica no grupo, dentro do campo
geral dos letramentos. Dissertações e
teses em curso ou concluídas depois da de Oswald no Rio demonstram que a
definição explícita de um objeto literário para pesquisas na área da Educação
exige não apenas tratar de "gosto" ou de "obrigação" de
leitura na escola, mas também de definições metodológicas específicas do campo
de Estudos Literários.
No estado de São Paulo, o Instituto de
Estudos da Linguagem da UNICAMP trabalha especialmente com letramento literário
e seus elos com a instituição escolar a partir das iniciativas de pesquisa da
professora de Teoria Literária Marisa Lajolo. Com uma inserção mais antiga no
campo, desde seu livro Usos e abusos da
literatura na escola (1982), que
focalizou o uso não estético da poesia de Bilac nas escolas brasileiras durante
a República Velha, Lajolo desenvolveu posteriormente pesquisas em dupla com
Regina Zilberman, da PUC do Rio Grande do Sul, não por acaso também da área de
Teoria Literária. Lajolo e Zilberman puderam circular pela história cultural,
pela pesquisa de arquivos de e/ou sobre literatura e escola, e pela formação
das leituras no Brasil. Junto com Márcia Abreu, professora também da UNICAMP, e
com os orientandos de ambas, Lajolo vem desenvolvendo um grande projeto
denominado Memórias de Leitura, que,
embora não se restrinja à história do letramento literário, a ele dedica
explicitamente algumas de suas direções.
Na USP, Nelly Novais Coelho
publicaria, além de outros livros sobre o tema, em 1983, a primeira edição de
seu Dicionário crítico de literatura
infantil e juvenil brasileira, reeditado várias vezes e apresentando, na
edição ampliada de 1995, uma bibliografia brasileira sobre literatura infantil
e juvenil que ultrapassa o número de cinquenta pesquisadores conhecidos,
espalhados pelas universidades do País. Destaca-se também, na USP, o trabalho
de Edmir Perrotti, cuja tese, defendida em 1989, depois seria publicada e
tornada referência constante na área: Confinamento
cultural, infância e leitura (PERROTTI, 1989). Esse pesquisador viria
denunciar com firmeza a mitificação da leitura, como parte integrante de uma
"ideologia das necessidades", que serviu, especialmente durante os
anos de ditadura militar, para esconder conflitos e contradições sociais que
incomodavam sobremaneira ao grupo dirigente autoritarista.
Em Porto Alegre, fortaleceu-se, desde
o início da década de 80, uma equipe de pesquisas voltada para questões ligadas
a literatura e ensino, orientada por Regina Zilberman na PUC-RS. Os livros
sobre esse objeto de estudo se multiplicaram, graças às participações de Glória
Bordini, Vera Teixeira Aguiar, e de outros especialistas em Literatura da
Universidade Católica, que se preocuparam em interferir na formação de
professores da escola básica, desenvolvendo um diálogo de iniciação às práticas
literárias de leitura até então quase inexistente na área de Educação. Não por
acaso, o artigo de Regina incluído no dossiê "O Letramento no Brasil"
(Educação em Revista n. 31) se
intitula "Literatura infantil e aprendizagem da leitura". Com uma
contribuição significativa, representada por publicações de reconhecimento
nacional nessa área, por participações em programas de democratização de
leitura e de melhoria das condições de ensino/aprendizagem no processamento
literário de textos na escola, Regina Zilberman constitui, sem dúvida, hoje, um
dos exemplos de ação e pesquisa bem sucedidas na confluência
literatura/educação.
Mais...
Amanhã, publico mais uma parte do texto.
Ele é intitulado “A situação de Belo Horizonte na pesquisa das relações
literatura/escola”.
Viva
Graça Paulino!