quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Lendo e escrevendo: a Graça que queríamos ter perto...


Conhecer Graça Paulino: um privilégio

Cristina Maria Rosa


Graça Paulino, há dois anos, fechou os olhos e não mais abriu. Foi um choque para todos que a amávamos e a queríamos perto. Séria, rindo, irônica, brava, concentrada, lendo, brincando com seus cães, apreciando um café da manhã com ovo e iogurte, no almoço, uma galinha caipira com couve e um espumante ou vinho no Bem Bom, de qualquer jeito ou a qualquer hora era a graça que qieríamos ter perto. Foi muito bom viver e sempre é alentador lembrar detalhes, momentos, frases, olhares e o tom de voz que ficou impresso na memória de quem, como eu, teve o privilégio de tê-la.

Graça foi minha orientadora em um momento muito especial. Com ela descobri quem eu sou na coluna vertebral que sustenta a pesquisa científica sobre e leitura literária no País. Por ela me tornei uma pesquisadora mais focada, mais voltada à Pedagoga que sempre fui, mais comprometida com a escola e as crianças que nela circulam.

 

Tributo

Para homenagear Graça, para mantê-la perto, lembrada, amada, nós que a conhecemos reunimos memórias. Dela e sobre ela. Algumas, já publiquei; outras, ainda pretendo. Em julho, no dia dois, Rildo me enviou uma cartinha. Ele escreveu:

 

Cristina,

Entrei de férias e resolvi fazer uma limpa em velhas pastas de arquivo. Eis que encontrei este texto que Graça escreveu e não sei se publicou em algum lugar. Talvez lhe interesse, talvez você já o tenha. De qualquer maneira, segue. Abraço, Prof. Rildo Cosson. Programa de Pós-Graduação em Letras – UFPB.

 

Emocionada por ter sido lembrada como destinatária e pela delicadeza de Rildo, publico aqui o presente recebido.

 

 

Quadro histórico e referenciais teóricos de interações entre Letras e Educação: pesquisas acadêmicas sobre leitura literária na escola (1980-2002).

Graça Paulino

 

1. Literatura para crianças e jovens como objeto de pesquisas no Brasil

A pesquisa voltada para a produção e recepção de livros cujos destinatários virtuais são crianças e jovens, envolvendo, por isso, a mediação escolar, tem crescido de modo sistemático e diversificado desde os anos 80 nas universidades brasileiras. Cresceu, por exemplo, a ponto de reduzir seu interesse pelo objeto fechado, a que se denominaria "literatura infanto-juvenil", para acercar-se dos sujeitos do processo de apropriação – os leitores - como definidores desse objeto cultural de estudos. Isso demonstra que os grupos ligados a tais pesquisas não ignoraram o deslocamento teórico ocorrido na área de Estudos Literários, a partir dos últimos anos da década de 70, que marca um percurso em direção a leitores e leituras.

Na esteira de renovação do ensino de português, o trabalho com a leitura literária na escola básica tomou força no início dos 80, especialmente graças aos trabalhos de Regina Zilberman, Marisa Lajolo e de seus orientandos, quase todos professores da área de Letras. Aliás, um dos grandes méritos das reflexões e pesquisas das duas especialistas foi exatamente a iniciativa de ligar as áreas de Teoria Literária e Educação, geralmente vistas como bem distanciadas em seus objetos de pesquisa e ensino. Em certo momento se percebeu que seria difícil pesquisar a produção literária, sem levar em conta o processo de formação dos leitores literários, que necessariamente passava pela pesquisa das práticas escolares de leitura, com problemas que poderiam ser detectados pelo olhar arguto da academia. Esse olhar, mesmo em sua condição “de fora”, permitiu a humanização do processo, numa atividade de pesquisa que não permanecia "pura", pois se mostrava comprometida com os sujeitos – alunos e professores da educação básica – que demandavam a transformação de práticas escolares autoritárias, inadequadas ao  universo da arte literária.

Neste novo século, nas escolas de Letras, ainda há especialistas em Literatura que ignoram ou menosprezam as pesquisas voltadas para a formação escolar de leitores literários, assim como nas faculdades de Educação há especialistas da área de ensino de linguagem que desprezam as especificidades da produção e da recepção literárias, consideradas como de menor impacto e valor social ou como processo “inexoravelmente” elitizado por estratégias burguesas de legitimação (Bourdieu, 1987).

Todavia, os Parâmetros Curriculares e outros documentos oficiais, ao abrirem espaço para a educação estética, indicam que a percepção de que na Educação essa experiência tem espaço próprio tende a tornar-se forte, especialmente quando se trabalha paralelamente em Letras no processo de inserção dos estudos literários numa área maior de estudos socioculturais, exigindo formação teórica e metodológica diferenciada e dando conta da pluralidade de saberes e fazeres que constitui o cotidiano, escolar ou não. As leituras são reconhecidas, então, na diversidade que as caracteriza, relacionadas a objetivos, estratégias e conhecimentos prévios dos leitores, organizações linguísticas e textuais, contextos de recepção, suportes, enfim, a todo um jogo de forças socioculturais determinantes da aparentemente simples interação do leitor com o texto ou do também aparentemente simples controle desse processo pelos professores.

De qualquer modo, não só na última década do século XX, mas, como de início foi dito, nos seus últimos vinte anos, as pesquisas voltadas para o letramento literário, em sua natureza social, aí se incluindo o mundo da escola, têm-se multiplicado. Os maiores pólos brasileiros de produção científica na área são Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Campinas e São Paulo. Quase nunca usando a denominação de "letramento", termo de existência e circulação recente no Brasil, as pesquisas da área, de qualquer modo, voltaram-se e ainda se voltam, em sua maior parte, para questões referentes aos modos de inserção dos alunos e professores nas práticas de leitura, predominando a atenção para a literatura infantil, nas instâncias de produção e recepção, com suas possíveis mediações escolares.

A denominação "letramento" está sendo aqui assumida como a caracterizou Magda Soares (1996): "inserção nas práticas sociais de leitura e escrita". Segundo a autora, os níveis de letramento podem ser avaliados, podem caracterizar indivíduos ou grupos sociais e podem marcar diferenças socioculturais importantes nas sociedades letradas Por minha vez, passo a denominar "letramento literário" (PAULINO, 1997) à inserção de indivíduos e grupos em práticas de recepção literária, caracterizada esta como interação leitor/texto de cunho predominantemente estético, isto é, envolvendo, ao mesmo tempo, tal como a descreveu Jauss (1979) a percepção sensorial do texto, em sua materialidade significante; sua recriação como fazer poético-intelectual e o investimento do imaginário, como processo catártico.

 No Rio, desejamos destacar duas vertentes de pesquisas sobre letramento literário: uma voltada para a iniciação e formação escolar e não-escolar de leitores em geral, outra, para a iniciação literária de crianças no contexto escolar, estando incluída nas duas a preocupação com a formação de professores. A primeira vertente pode ser bem representada pelo grupo de Eliana Yunes, pesquisadora de literatura infantil desde os anos 70, que depois coordenou o PROLER, enquanto Affonso Romano de S’Antanna dirigiu a Biblioteca Nacional, no inicio do governo Fernando Henrique Cardoso. Destaca-se nessa vertente a tentativa de unir pesquisa e interferência direta em programas governamentais de democratização da leitura.

A segunda vertente de pesquisa sobre literatura infantil no Rio de Janeiro se localiza mais claramente na linha da crítica cultural e nas interfaces de produções de linguagem propostas pela filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin. Uma figura da Educação que se destaca nessa última vertente é Sônia Kramer. É digno de nota que seu trabalho pessoal não se tenha voltado especificamente para a recepção literária, mas para questões ligadas às diversas leituras de professores e alunos. Em um de seus artigos recentes (KRAMER, 2000), ela mesma se ocupa em destacar também a importância do trabalho de Maria Luíza Oswald, denominado Aprender com a literatura, de 1997, que abriria um "filão", antes sem consideração específica no grupo, dentro do campo geral dos letramentos.  Dissertações e teses em curso ou concluídas depois da de Oswald no Rio demonstram que a definição explícita de um objeto literário para pesquisas na área da Educação exige não apenas tratar de "gosto" ou de "obrigação" de leitura na escola, mas também de definições metodológicas específicas do campo de Estudos Literários.

No estado de São Paulo, o Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP trabalha especialmente com letramento literário e seus elos com a instituição escolar a partir das iniciativas de pesquisa da professora de Teoria Literária Marisa Lajolo. Com uma inserção mais antiga no campo, desde seu livro Usos e abusos da literatura na escola (1982), que focalizou o uso não estético da poesia de Bilac nas escolas brasileiras durante a República Velha, Lajolo desenvolveu posteriormente pesquisas em dupla com Regina Zilberman, da PUC do Rio Grande do Sul, não por acaso também da área de Teoria Literária. Lajolo e Zilberman puderam circular pela história cultural, pela pesquisa de arquivos de e/ou sobre literatura e escola, e pela formação das leituras no Brasil. Junto com Márcia Abreu, professora também da UNICAMP, e com os orientandos de ambas, Lajolo vem desenvolvendo um grande projeto denominado Memórias de Leitura, que, embora não se restrinja à história do letramento literário, a ele dedica explicitamente algumas de suas direções.

Na USP, Nelly Novais Coelho publicaria, além de outros livros sobre o tema, em 1983, a primeira edição de seu Dicionário crítico de literatura infantil e juvenil brasileira, reeditado várias vezes e apresentando, na edição ampliada de 1995, uma bibliografia brasileira sobre literatura infantil e juvenil que ultrapassa o número de cinquenta pesquisadores conhecidos, espalhados pelas universidades do País. Destaca-se também, na USP, o trabalho de Edmir Perrotti, cuja tese, defendida em 1989, depois seria publicada e tornada referência constante na área: Confinamento cultural, infância e leitura (PERROTTI, 1989). Esse pesquisador viria denunciar com firmeza a mitificação da leitura, como parte integrante de uma "ideologia das necessidades", que serviu, especialmente durante os anos de ditadura militar, para esconder conflitos e contradições sociais que incomodavam sobremaneira ao grupo dirigente autoritarista.

Em Porto Alegre, fortaleceu-se, desde o início da década de 80, uma equipe de pesquisas voltada para questões ligadas a literatura e ensino, orientada por Regina Zilberman na PUC-RS. Os livros sobre esse objeto de estudo se multiplicaram, graças às participações de Glória Bordini, Vera Teixeira Aguiar, e de outros especialistas em Literatura da Universidade Católica, que se preocuparam em interferir na formação de professores da escola básica, desenvolvendo um diálogo de iniciação às práticas literárias de leitura até então quase inexistente na área de Educação. Não por acaso, o artigo de Regina incluído no dossiê "O Letramento no Brasil" (Educação em Revista n. 31) se intitula "Literatura infantil e aprendizagem da leitura". Com uma contribuição significativa, representada por publicações de reconhecimento nacional nessa área, por participações em programas de democratização de leitura e de melhoria das condições de ensino/aprendizagem no processamento literário de textos na escola, Regina Zilberman constitui, sem dúvida, hoje, um dos exemplos de ação e pesquisa bem sucedidas na confluência literatura/educação.

 

Mais...

Amanhã, publico mais uma parte do texto. Ele é intitulado “A situação de Belo Horizonte na pesquisa das relações literatura/escola”.

Viva Graça Paulino!

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