terça-feira, 15 de novembro de 2022

Lulu e o direito à dignidade

 


Lulu:
direito à liberdade, ao respeito e à dignidade.

Cristina Maria Rosa

 

Em “Cinco livros para falar sobre o ECA: um olhar literário e pedagógico”, descrevo e analiso obras literárias que podem ser acionados por educadores quando o foco é apresentar e/ou dialogar sobre os Direitos das Crianças e dos Adolescentes garantidos pelo ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Do acervo da Sala de Leitura Erico Verissimo selecionei Lulu, de Fabrício Carpinejar (Edelbra, 2014) como “representante” do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade. Nele, implicitamente, há informações e construções literárias que sustentam um diálogo sobre essas três palavras-chave.

Metodologia de estudo

A análise documental tem sido preponderante para a configuração de um rol de obras a serem acionadas na formação de professoras e professores, bibliotecárias e bibliotecários e gestoras e gestores escolares, além de ofertarem aos docentes em exercício, mediações possíveis.

Meus procedimentos foram:

a) Conhecer o acervo;

b) Ler todas os livros;

c) Selecionar as obras vinculadas ao foco da investigação;

d) Descrevê-las gráfica, editorial e biograficamente;

e) Analisá-las criticamente quanto a seu caráter literário e pedagógico.

Após a leitura de parte considerável do acervo, selecionei cinco como os mais potentes para os objetivos.

Resultados

Por que Lulu de Fabrício Carpinejar pode ser um potente instrumento para apresentar e dialogar sobre o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade?

Obra instigante, complexa, escrita por um autor brasileiro respeitado, à primeira vista, Lulu não é o que parece.

Iniciando pelo título.

Lulu costuma ser um apelido ou um diminutivo. Ao ler a capa, sou convidada a pensar em uma bebê, uma criança pequena ou mesmo em algum adulto que manteve o apelido de infância. No entanto, logo depois das primeiras frases inscritas na primeira página – Lulu não escuta a chaleira chiando. Lulu não escuta o sussurro. Lulu não escuta a grama encurvando antes da chuva... – é minha emoção que passa a acompanhar a forma poética de perceber a singularidade do cotidiano da personagem.

Carpinejar, o autor, sussurra em meus ouvidos ouvintes que o silêncio existe. E, depois disso, nunca mais pude esquecer que sim, há som quando a grama encurva antes da chuva! E há vida quando se doma o medo, quando não se mostra vantagem nem superioridade.

Escrito em frases curtas e marcantes, narra poeticamente o silêncio na vida de uma menina, a Lulu do título. Com capa acartonada e ilustrações de Serena Riglietti,  Lulu se sustenta literariamente. Mais que isso, é uma porta aberta a pensar a singularidade. E por isso, cabe tão bem na lista de sugestões para abrigar diálogos sobre direitos.

Neste caso, direito à liberdade, ao respeito e à dignidade.

Lulu, ainda, tem qualidades pedagógicas. Pode ser destinado à formação de leitores sobre o tema acima referido e que integra o ECA, mas, também, pode vir a apresentar aos pequenos, um modo de vida de um grupo de pessoas: as que ouvem pouco ou não ouvem nada. Necessita, para a leitura em voz alta, para si e para os outros, de delicadeza, fôlego e resiliência. Demanda um leitor ciente de seus limites, de suas possibilidades de mediador, de suas qualidades pedagógicas, de suas potencialidades como letrado.

O livro de 32 páginas é em Português e, ao fim, inclui minibiografia do autor e da ilustradora. Foi lançado pela Editora Edelbra em 2014. Fenômeno de vendas à época, não se encontra na maioria das listas de livros do escritor quando se busca, na rede, informações sobre sua biobibliografia.

Provavelmente, por ser “para crianças”.

Para mim, é um dos melhores e mais profundos livros do autor.

Universal por escrever sobre uma infância que não ouve, em Lulu Carpinejar aborda o medo.

E...

Quem não tem medo?

Por que Lulu representa o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade?

Investir em modos de pensar, em pluralidade de ideias é permitir que o silêncio se instale entre os leitores e os ouvintes. Que lugar mais adequado que a sala de aula para isso? Potente desencadeador de reflexões e diálogos, Lulu oportuniza reflexões sobre o conceito de dignidade e respeito.

Instiga a considerar o que é respeito.

O que é dignidade.

O que é liberdade.

Carpinejar, no livro, apresenta conceitos. Silêncio, batimentos cardíacos, barulho do estômago, chio de chaleira, “galhos cerzindo casacos de frutas”. Apresenta noções de percentual de escuta, ao escrever: “Cinquenta por cento num ouvido, quarenta no outro. Lulu não escuta” (2014: páginas 18 e 19). Lulu reúne, assim, qualidades suficientes para um mediador oferecer, através da leitura literária, contato profundo com uma nova e inesperada existência, que podemos experimentar se “taparmos” ou ouvidos. No livro, a “diferença” da personagem não é menos nem falta.

Pelo seu poder reverberador, me ensina a pensar em aprimorar minha escuta. Não a orgânica, biológica. A escuta das pessoas e do mundo que nos cerca.

Mais...

Quer saber mais sobre este livro? Encontrei uma resenha bem interessante. Leia em: https://olhandoporai.wordpress.com/2015/03/12/resenha-lulu-fabricio-carpinejar/

No site da Livraria da Travessa (https://www.travessa.com.br/lulu-1-ed-2014/artigo/00db6ada-efa7-4ec9-b4b5-99d3cc5b04ed) há outra resenha. Leia:

Este livro traz um tipo de personagem normalmente distante das histórias infantis: Lulu é uma menina com deficiência auditiva. Fabrício Carpinejar apresenta de forma poética e com uma percepção muito singular, o cotidiano de uma menina observadora e sensível. O cotidiano de Lulu é diferente? Tudo para Lulu é menos complicado do que pode parecer, assim como são simples as coisas para todas as crianças. E neste livro as ilustrações de Serena Riglietti enchem de cor a poesia das coisas simples.

domingo, 13 de novembro de 2022

A morte na encruzilhada


 Três moças em uma encruzilhada...

Cristina Maria Rosa

 

Se tu ainda não conheces As Três moças de encruzilhada, do Mario Quintana, não sabes o que já perdeste. É um conto inserido em Sapato Furado (1994), um dos livros que apresenta a “prosa poética” do escritor aqui do Rio Grande do Sul. No livro, há "de tudo" de Quintana.

Como sabes, o poeta não escrevia apenas poemas...

Poemas nunca são “apenas”.

Expressei-me mal.

O que eu queria dizer é que nas quarenta e oito páginas deste “Sapato”, há vinte e nove textos sobre variados temas, indicados em um organizado sumário, ao final. Editado pela Global, é possível entrar em contato com humor, precisão, delicadeza, originalidade. Mais. Com o inusitado de uma personagem que não tem receio de se apresentar ao leitor: a Morte.

Assim mesmo, com letra maiúscula.

Sim.

Em Sapato Furado, esta velha senhora é levada a sério!

Pois é...

Mas não é o livro e nem o conto que quero te convidar a ler...

O que eu quero é te contar que foi o conto de Quintana que nos inspirou a dar nome às nossas três primeiras ovelhas crioulas aqui do sítio Nonna Ambrogio.

Foi assim...

Sem nome, passaram a viver entre o gramado e os arbustos. Comendo sem parar – tudo que é verde elas experimentam – se recolhem a cada pequena ameaça de chuva, sol forte ou latido de algum de nossos cães. Nessas andanças nutritivas, nos deram, por um tempo, a oportunidade de observá-las.

Após suas decisões e indecisões, ocorreu um link com Quintana, um entre nossos autores prediletos

São três moças, nossas três ovelhas.

Sozinhas em “em bando”, enfrentam, todos os dias, encruzilhadas.

Correr sítio acima ou disparar para o canteiro de lírios? Fugir ou enfrentar os cães? Comer ou não as videiras? Namorar ou não o carneiro Nero? Deixar-se tosquiar ou não? Balir ou silenciar?

Dar nomes...

A mais nova, filhote ainda, mostrou-se a de maior personalidade e, por isso, a nomeamos “Sim”. De boca cheia, grita por mais comida. Reúne as demais e as toca para o abrigo. Se elas se revoltam, corre sozinha. Procura Nero como avalista de suas empreitadas ou como refúgio, quando as outras duas se enraivecem. Ao mesmo tempo, afronta o carneiro, arrancando de sua boca um naco de grama.

A mais velha, forte, decidida, orgulhosa, corajosa, nomeamos “Não”. Sempre que está contrariada, bate a pata direita dianteira no chão, como a dizer: – Não passarás! É altiva, olha longe, encara a todos antes de decidir. Não recua.  Grita, se necessário. Ignora o carneiro, que está louco por um namoro. Passa perto e dispara. Ela nega encontros. Justifica-se a escolha.

E a terceira, quase uma solteirona pois já é adulta e nunca namorou, demos o nome de “Talvez”. Talvez não é preta nem branca e, ora corre, hora descansa; ora se empolga, ora respira; ora observa, ora descarta; ora come, ora dorme.

Talvez, vez ou outra, segue o bando. Às vezes, faz carreira solo.

Três moças. Três ovelhas.

E a Morte?

Leia sobre ela em...

Mais...

Para saber mais sobre Mario Quintana, Sapato Furado e As três moças de Encruzilhada, leia: https://crisalfabetoaparte.blogspot.com/2016/08/sapato-furado-de-mario-quintana.html