terça-feira, 22 de junho de 2021

Lendo literatura diante das telas...

 


Lendo via telas: argumentos...

Cristina Maria  Rosa

Por que devemos ler literatura para as crianças mesmo de modo remoto?

O argumento central da minha reflexão [1] é que nós, professores, sabedores da distância que existe entre as crianças que nós educamos e os livros, somos os maiores responsáveis por oferecer, apresentar, indicar, selecionar, ler primeiro e ler de novo, em voz alta na sala de aula, os melhores textos literários que a nossa biblioteca possui.

E somos compelidos a estarmos, sempre, em momentos de formação continuada. É elogiável a busca por educação, qualificação, ampliação, aprimoramento e aprofundamento de nossa condição de leitores.

Eu sou uma professora experiente com a leitura de textos literários na escola. Eu me mantenho estudando, lendo literatura e sobre literatura, exercitando a leitura e a alfabetização literária com diferenciados grupos de leitores e é essa condição que as pessoas ao meu redor reconhecem. A condição de estar vinculada com o tema que estudo, me apropriando das novidades da área mas, ao mesmo tempo, não deixando de reconhecer os valores dos textos mais antigos, que já existem nas nossas bibliotecas. Então, o argumento de que nós não temos livros suficientes para oferecer duzentos textos literários por ano, para as crianças que estão nas escolas, não se sustenta mais. Não se sustenta!

Outro dado é que, desde o dia que nós tivemos que migrar para as telas (celulares, tablets e notebooks), nos comunicar de modo remoto e on-line com nossos alunos, descobrimos “um mundo” de textos disponíveis em bancos literários do país, os textos em domínio público. E foi desse modo que muitos de nós, professores, percebemos o conhecimento literário que não tínhamos, que não partilhávamos.

Paralelo a esse movimento de acesso a bancos de textos – diferenciados acervos literários disponíveis em arquivos e com acesso gratuito de modo online – recebemos várias contribuições de pessoas que passaram a ler ou a indicar o que liam, através de programas como lives, podcast, áudios e vídeos. Algumas dessas pessoas, por serem profissionais das mídias, ofereceram programas em canais no Instagran e no Youtube e/ou programas de áudio com dicas literárias. Pesquisadores e estudiosos também disponibilizaram entrevistas, palestras, leituras e artigos com resultados de pesquisas literárias. Hoje, para além dos livros que nós temos em casa, além de impressos que há nas bibliotecas das escolas, nós já somos mais “craques” no uso de todo esse universo que está disponível através de conexões com as pessoas e seus programas.

Então, por que não utilizá-los? Por que não nos apropriarmos desses modos de fazer? O que é diferente em tudo isso? O diferente é aquilo que é lido, o texto que está nas mãos do professor. Isso é o diferente! É esse texto que vai qualificar o nosso aluno. E é esse texto, professora e professor, que vai te qualificar!

Quando nós entregamos para nossos alunos “qualquer coisa”, nós também ganhamos qualquer coisa como retorno. Porque, ao entrar em contato com o texto "qualquer coisa”, eu também perdi a oportunidade de ler um texto bom. Eu não me livrei da tarefa, eu tive que pensar nela. E se eu selecionei um texto "qualquer coisa” para enviar ao meu aluno, eu perdi tempo. Mais que isso: eu enviei para a casa de um aluno um texto, em meu nome, me representando.

Já imaginaste, professora, se a mãe, a tia, a prima, a amiga daquela família é uma professora que gosta de literatura? Se ela é uma bibliotecária? E se elas lerem esse texto e perguntarem à criança: “Qual é o nome da tua professora e em que escola ela trabalha?”

Corremos o risco de a mãe, o pai, a avó, a tia, a amiga daquele aluno descobrir, professora, que tu mandaste para a casa deles um texto "qualquer coisa”, ao invés de mandar literatura. Tempo perdido. Na verdade, tempo desperdiçado. Envie o melhor. Corra riscos professora! Corra riscos professor!

E a morte?

Sim, é muito forte falar sobre a morte com crianças. Mas, se não falarmos, quem falará? Se não falarmos sobre a morte literariamente, quem falará? Se não abordarmos nossas dores, literariamente, quem fará? A quem é reservado tratar das coisas humanas na escola?

Os pais em casa usam todas as ferramentas que possuem para educar seus filhos. Às vezes, professora, eles não têm as ferramentas que tu tens. Às vezes, os pais têm, mas não sabem usar. Tu aprendeste na Faculdade a usar as ferramentas para educar. Isso é o que caracteriza a nossa profissão. Professor é quem estuda para saber mediar. Essa é nossa profissão!

O processo de formação ocorre quando acessamos um banco de informações que está nas licenciaturas, na Universidade, nas bibliotecas e quando as utilizamos nas salas de aula. O intuito é que as crianças recebam o que é importante.

Quem sabe o que é importante? Tu, professora, tu sabes o que é importante, tu sabes o que é necessário para que uma criança, ao final do 1º ano, seja promovida para o 2º ano. Para um grau mais elevado de conhecimentos, inclusive os literários. Essa é nossa profissão. Nós não podemos atribuir estas tarefas a outra pessoa. Não podemos. Essa tarefa é a nossa tarefa. Não existe outra.

Ao enviar, ao selecionar, ao preparar um exercício a partir de um texto que não é literário, eu estou corrompendo a noção de literário. Além disso, estou negando acesso ao literário.

Tu professora, tu sabes o que é um texto literário. Quando tu ouves um texto literário lido por alguém que admiras ou quando acessas um texto literário na Biblioteca Pública Pelotense, na Biblioteca do Colégio Municipal Pelotense, no CETEP, na Feira do Livro, em uma livraria ou em um sebo, os seus próprios livros ou os livros literários que estão na biblioteca da tua escola, tu sabes diferenciar um texto literário de um texto “qualquer coisa”. E eu não estou considerando que um texto “qualquer coisa”, não tenha valor. Tem. Mas não é literário. Tem valor, qualquer texto tem valor, integra nossa cultura escrita. Não estou desprezando outros formatos, eu estou afirmando que o outro formato não pode ser usado no lugar do texto literário.

A pergunta que fiz...

A situação hipotética que criei, da criança que é perguntada pela professora no sexto ano a respeito de seu conhecimento literário retorna aqui como argumento.

Se uma professora licenciada em Letras quiser apresentar à seus alunos, aos onze ou doze anos, os “Grandes Escritores Brasileiros”, aqueles que precisam ser conhecidos na pré-adolescência e na adolescência e obtiver dela a resposta de que só conhece textos em pedaços, publicados nos livros didáticos, como será a formação literária da criança dali por diante? Por onde deverá começar, a professora de literatura, no sexto ano?

Sabemos que os textos literários aos pedaços, publicados na maior parte dos livros didáticos, representam um projeto de inserção das crianças no mundo da literatura, através do conhecimento de gêneros literários. Isto é insuficiente para formar o gosto pela leitura.

Insuficiente!

Nenhuma criança aprende a gostar e se apaixona pela literatura lendo apenas os livros didáticos e respondendo perguntas irrespondíveis sobre esses textos. Perguntas óbvias, cuja resposta não interessa a ninguém. Isso não é literatura! Isso é corromper a literatura e é roubar das crianças o direito de conhecer literatura na escola.



[1] Texto produzido a partir de Conferência realizada a professores da rede pública municipal a convite do CETEP/SMED. Pelotas, 13 de maio de 2021. Agradeço à Luzia Helena Brandt Martins pela transcrição.


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