terça-feira, 31 de outubro de 2017

Memórias de infância de João Bez Batti: um projeto

Ao dar início à escrita das Memórias de infância de João Bez Batti, não imaginava que meu primeiro projeto, fotográfico e memorialístico denominado “Sanguíneo” e iniciado no dia quatro de agosto de 2016, fosse ter desdobramentos a ponto de se tornar um “livro de memórias”. Naquele mesmo agosto, em um ímpeto emotivo e necessário para meus borbulhamentos internos, outros textos, de igual vigor literário surgiram: “João” e “Mãos”, ambos no dia cinco e “Longevas Pelotenses”, no dia 09 de agosto.
Depois disso, silêncio. Havia enviado pelo correio o texto “Longevas Pelotenses” a João e aguardava algum retorno. Com o telefonema anunciando a emoção de Bez Batti ao receber por escrito parte de suas memórias, vislumbramos meu retorno a seu atelier em Bento Gonçalves. E foi lá, depois de lermos juntos o que eu havia escrito e de reconhecermos o impacto de um na vida e obra do outro, que o projeto surgiu.
 Mas, pensando bem – e a memória nem sempre é fiel ao pensamento – foi em um café da manhã que João desatou o nó, bem amarrado até então. Com olhos plenos de saudade, mencionou a avó, a mãe, o pai, as irmãs, o irmão, também ele um produtor de arte. Apalpou cada seixo, ouviu novamente o rio, andou por suas margens. Naquela manhã, João percebeu mais uma vez os odores do Vapor que o levou a Porto Alegre, revisitou a incompreensão que até hoje guarda da atitude do pai que o enviou, sentiu os sapatos que se obrigou a vestir para conhecer a madrugada na Capital.
João Bez Batti, outra vez menino, baixou a guarda.
Rimos, choramos, falamos, calamos.
Eu?
Eu escrevi.
Um a um, os personagens apresentados por João passaram a povoar nossas conversas e, pelo impacto que em mim causavam, grafei o que sentia. Em um misto de relato e emoção, quis devolver a João a confidencialidade. Mostrar a ele como suas “memórias” estavam reverberando dentro de minha própria infância, também ela marcada por relações fortes com pai, mãe, irmãos. Ao buscar eternizar aquele presente, reconhecia fragmentos da cultura italiana que a mim também foi legada: as frutas, a polenta, os almoços, a leitura.
Foi assim que grafei “Catador de Pedras”, no dia trinta de novembro, já com meu notebook deitado sobre a mesa no café da manhã da casa de João. Foi ali também que escrevei “Polenta cortada a fio” e “Negrinho”, ambos no dia primeiro de dezembro, após diálogos regados a vinho, água e o que mais tivéssemos. Às vezes, intercalados com queijo, pão, doces de Pelotas.
Nas vésperas do Natal, a convite do João e sua família, estive em Bento Gonçalves. Fui partilhar com ele as festas de fim de ano e o acompanhei em algumas pequenas viagens pela redondeza. Eu dirigia, perguntava, ele falava. Alex gravava.
Na mesa, após um almoço, enquanto João e Alex estudavam no atelier um modo de serem aprendizes um do outro, escrevi “Aurora” e “Elegância”. Era vinte e um de dezembro e eu não queria mais deixar de viver nos Caminhos de Pedra. No último dia do ano de 2016, após mais uns de convivência, com as lembranças ampliadas, Caquis na abóbora, uma pungente memória dos hábitos do pai e Ciranda Cirandinha – saudade explícita da professora da infância de João Bez Batti – ganharam forma sob as teclas do notebook.
Com a voz capturada pelo celular nas pequenas viagens que fizemos conheci os baús trazidos da Italia, os segredos que o pai de João guardava e a viagem de vapor que João empreendera em menino. Naquele dia decidi: as memórias de João Bez Batti em meu livro se encerrariam com a chegada a Porto Alegre. Ao degravar a voz de Bez Batti nos posteriores dois e três de janeiro, compus “Os baús de Giovanni”, “Os segredos do seu Giovanni” e “Um vapor a Porto Alegre. Não, não eram mais memórias. Palavras se tornaram batidas de marreta nas duras lembranças que não queríamos esfarelar. Esculpir, Interno e Contador de histórias – os últimos textos - foram escritos entre dezoito e vinte de janeiro de 2017.
No encontro com Bez Batti em fins de janeiro, levei os textos para que os lesse e corrigisse. Ao mesmo tempo, encaminhei-os à Luciana, que vive na Itália e é bilíngue. Por sua vez, Luciana recorreu à Bianca Pessana, uma amiga italiana que contribuiu lendo e comparando os textos originais com a tradução já iniciada. Depois de diálogos entre as duas, a versão para o italiano foi finalizada e passou a integrar o projeto. Quando os textos tornados para o italiano se incorporaram ao projeto, pude ler a língua que nossos pais nos legaram.  Passei a ouvir a voz do “Giuseppe”, uma saudade que é infindável. E tive a certeza de que ele teria um sorriso para as filhas que retomaram sua origem.
Escrever a infância – ou parte das memórias de infância – de João Bez Batti foi o melhor que as férias de 2016 me oportunizaram. Ao recompor suas lembranças e esquecimentos, pude ser como Ecléa Bosi, “ao mesmo tempo sujeito e objeto”. Sujeito enquanto indagava, procurava saber. Objeto enquanto ouvia, registrava, “sendo como que um instrumento de receber e transmitir suas lembranças” (BOSI, 1994, p. 38). Optei pela infância lembrada. E tomei como rumo nossas conversas à mesa: do café da manhã, quando encontrava um pêssego recém colhido, ao Vinho do Porto, após os maravilhosos bifes acebolados preparados pelo Alex Nunes, em mais uma de suas gentilezas para conosco.
João, sabedor de meu desejo, lançou-se corajosamente a ser biografado.
E isso é indescritível, inigualável.
Ter a confidência de alguém é uma herança. Espero ter sabido herdar.
Obs: Infelizmente, João não autorizou a publicação desse trabalho. Mas ele existiu.

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