terça-feira, 29 de agosto de 2017

"A professora, o aluno e os ovos" te representa?

Instigada por uma leitura – A professora, o aluno e os ovos – que realizei recentemente, fiquei curiosa a respeito de sua repercussão entre professores. Decidi enviar o texto a minha rede de WhatsApp e perguntar se a posição defendida pela desembargadora representava a cada um[2]. A seguir, o artigo da desembargadora. Logo depois, as respostas que obtive.

A professora, o aluno e os ovos
Que as condutas antiéticas, violentas e desprezíveis nos mais amplos quadrantes lamentavelmente permearam nossa sociedade, todos sabemos. Nesse contexto, o episódio do aluno que agrediu fisicamente a professora que prestigiara, elogiara ou incitara, em redes sociais, o ato de jogar ovos em políticos ganhou visibilidade nacional, justamente porque atingiu o mais venerável reduto, depois da família, que ainda deveria servir de resistência às degradantes posturas ao início apontadas. O presente é para falar do mestre. Aquele que ensina. O detentor de uma das mais nobres tarefas e que sobre o qual emociona inclusive falar. A sagrada figura do professor, adstringindo-me especialmente àquele que exerce o mister como meio e razão de vida, em salas de aula, vê-se hoje bastante vilipendiada e desacatada, fruto, repito, da ruína de preceitos básicos de ética que penetraram e envolveram a sociedade. Daí porque, hoje, mais do que nunca, o professor há de manter uma postura altiva, respeitável, superior e, para isso, dar exemplo aos discípulos até no que possa parecer filigrana. Logo, o simples fato de uma educadora, investida na função, prestigiar que se joguem ovos em quem quer que seja abre espaço e dá exemplo à incivilidade. E a incivilidade é o início do caos, é a falta de limite, de controle, de argumento; é a falta de respeito. Jamais podemos dar oportunidade a que incivilidades se criem ou propaguem, quanto mais elogiá-las. Digo isso, porque o fato lamentável que enseja o presente comentário se constitui na falência da relação professor/aluno; mestre/discípulo. De se lembrar que um professor em sala de aula, principalmente de escola pública, está diante da mais absoluta diversidade de seres em desenvolvimento — carentes, abonados, cândidos, violentos, infratores, abandonados, equilibrados, revoltados, felizes ou infelizes. Em meio a tal contexto de profundas diferenças e origens, jamais pode o mestre demonstrar, mesmo que pense, aprovação para com qualquer incivilidade, pois ao atirar um ovo, em meio à desordem, pode receber uma pedra. O professor, principalmente, porque mestre, não se pode descuidar de tudo isso, relevando-se que a instantaneidade e acessibilidade generalizada proporcionadas pelas redes sociais, onde todos são "amigos", amalgamou nossas manifestações enquanto simples cidadãos com as que devemos ter enquanto profissionais. Assim, seja qual for a opinião emanada de um educador, deve ser ela, sempre, cuidadosamente entremeada e revestida por mensagens de tolerância, amor e respeito ao próximo (Jaccottet, 28/08/2017).

As opiniões recebidas
As opiniões, na íntegra estão a seguir. Foram inseridas neste rol à medida que foram chegando, via WhatsApp, como retorno a minha indagação, que foi assim escrita: "Bom dia. Li esta matéria no Jornal Zero hora. Trata de nossa profissão. Ela te representa? Obrigada por opinar".
O intuito de minha pesquisa informal foi provocar colegas, professores que atuam em escolas e estudantes de Pedagogia a se posicionar a partir do olhar do outro, um cidadão que observa o exercício de nossa profissão e opina, publicamente, escrevendo um artigo em um veículo de grande abrangência.  

1ª opinião: Minha opinião? Eu não entendi o tom dela. Não sei se está afirmando ou sendo irônica.
2ª opinião: Difícil. Complexo. Existem pontos a serem considerados. De alguma maneira, somos exemplos. Entretanto, parece-me uma defesa ao posicionamento 'neutro', sem ideologia, do professor. Sou totalmente contrária. Sou professora, ser pensante, com ideias próprias e não considero como obrigação minha, manter-me isenta ou neutra. Costumo expor meus pensamentos, sim.  Quanto à “ovada”, considero que o tal deputado é merecedor, por todas as atrocidades que defende. Afinal, o que é um ovo para quem defende estupro e tortura? Existe diferença entre um ovo e uma pedra. Aí entra a minha função de educadora: demonstrar que o ovo tem um significado; uma pedra, cadeira ou soco, resultados bem distintos.
3ª opinião: Não.
4ª opinião: Também defendo a idéia de que professor jamais pode demonstrar atitudes de falta com a verdade, ação correta, violência... Antes, sim, desenvolver entre os alunos e onde estiver estimular o amor e a paz, valores que tanto fazem falta a humanidade, hoje e sempre.
5ª opinião: A opinião da autora é de não elogiarmos quando alguém faz algo errado, tipo jogar ovo nos políticos. Que não podemos incentivar a incivilidade. Concordo com ela.
6ª opinião: Bom dia! Muito bom o texto! Representa-me, sim, e concordo com a autora. Professor tem que ensinar não só com a palavra, mas com o exemplo. Diálogo, respeito sempre.
7ª opinião: É verdade e me representa. Deus livre o professor de cometer alguma atrocidade! Este será julgado na hora, sendo que, com algumas outras profissões, suas atitudes até podem ser desculpadas e não se faz nada contra. O professor, não, deve se manter na linha se não quiser que as coisas e pessoas virem contra ele.
8ª opinião: Sim, me representa!
9ª opinião: A nossa sociedade está cada dia mais decadente, mesmo. O mestre deveria ser um exemplo para todos e além do mais, deveria ser o mais bem pago de todas as profissões.
10ª opinião: Essa matéria, essa coluna e essa pessoa não me representam de forma alguma. Difundir a ideia de que precisamos nos cuidar para mantermos autoridade é o fim! Desde a minha formação inicial venho trabalhando com a diversidade e com a periferia e nunca tive um problema com agressividade. E sabes? Levo para a sala de aula vida, diálogo, posição política e respeito. Respeito os meus alunos, trabalho com elevação de auto-estima e da capacidade intelectual. Difundir a ideia de que devemos esconder as nossas posturas nos tira o HUMANO. E, sem isso, não penso ser viável acontecer aprendizado!
11ª opinião: Sim, me representa.  
12ª opinião: Horrível e não me representa! Tendenciosa como sempre são as reportagens desse meio. Quer dizer que jogar ovos num ser desprezível como o Bolsonaro justifica um soco de um homem numa mulher é nojento! É completamente desproporcional as "agressões" e má intenção querer compará-las.
13ª opinião: Gostei do texto, concordo que o professor é tipo um espelho para seus alunos e para a sociedade. Por isso, deve ter cuidado com as suas atitudes. Por ser mestre, todos estão de olho. Toda certeza: esse texto me representante!
14ª opinião: Interessante...
15ª opinião: Representa um desrespeito com a classe, que é essencial.
16ª opinião: Sim. Respeito ao próximo sempre.
17ª opinião: É lamentável e um absurdo que isto tenha acontecido. A isso não chamamos de professor, mestre. Não, não, não! Isso não é ser professor. Por nada não foi agredida. Onde está a vida, o exemplo, o que estudou? Não nos representa, não somos isso.
18ª opinião: A docente não me representa. Deu mau exemplo incitando em redes sociais, o ato de jogar ovos em políticos. Existem outras formas de mostrar que estamos insatisfeitos. Não desta forma. Sou contrária a qualquer tipo de agressão. Mas nada justifica o que este aluno fez. Errou! Tem que ser tratado. Se não me engano, era a primeira aula que ela dava nesta turma. Poderia ter conquistado aos poucos. Às vezes, uma palavra de carinho, um elogio transforma o ódio em amor.
19ª opinião: Com certeza, me representa!
20ª opinião: Li atentamente o texto que nos diz respeito. A gaúcha aborda com competência a seriedade que envolve o  to de educar que, por sua vez, segue sua trajetória em consonância com as concepções de mundo construídas na sua formação. Ao aprovar o arremesso de ovos no Bolssonaro, a professora abriu espaço para diversas interpretações. Foi vista como incivilidade  pela autora do artigo.
21ª opinião: Não diria que me representa, pois não concordo com a matéria na sua íntegra. Mas concordo que nós, educadores, não devemos incitar qualquer forma de agressão aos movimentos ou manifestos. Realmente, jogar ovos...
22ª opinião: Não. Como também nenhum político.
23ª opinião: Concordo com este artigo plenamente. Como alguém que passa a formação pode incitar a violência em redes sociais? Jamais! Somos formadores de opiniões, não incitadores.
24ª opinião: A reflexão da desembargadora me levou a pensar em nosso sistema jurídico. Ele escalona e pune de acordo com a violência de atitudes. Se tanto os que receberam ovos como os que recebem socos se postam diante da justiça exigindo punição a seus agressores, provavelmente as penas sejam diferenciadas. Será que é por isso que pensamos que ovos são menos violência que socos?
25ª opinião: Não me representa! Oartigo põe em discussão uma boa causa -  a não violência. Mas é superficial - muito trabalha efeitos e não dá centralidade às causas. Mas é uma posição. E talvez eu não tenha uma argumentação sólida para isso. De todo modo, a exposição da problemática faz bem.

26º opinião: Para mim, é o mesmo que dizer que a mulher se veste com uma roupa curta, quer ser estuprada ou que quem anda de iPhone na rua, quer se roubado. É culpabilizar a vítima.

O professor modelo
Acredito no professor modelo.
Sempre me manifesto assim diante de meus alunos, na Universdade e em palestras e diálogos com professores nas escolas.
Professor, no meu entender, deve ser modelo de estudante – deve estudar, portanto.
Modelo de leitor – deve ler, sempre e muito. E ler para os alunos, para indicar a eles o que foi produzido de melhor: na literatura, na área de estudos, na pesquisa científica, nas experiências bem sucedidas.
Modelo de generosidade – deve publicizar o que conhece, sempre. O saber, especialmente na escola, representa a sociedade e o que ela respeita como necessário, indispensável, relevante. Saber e dividir o saber é ter e dividir o poder. Publicizar o saber é dever da escola. É para isso que ela foi criada e não tem sentido sem esse exercício.
Modelo de gentileza: deve observar e buscar modos de viver em grupo, de aprender com os demais, de conhecer o que o outro conhece e, desse modo, tornar os processos de aprendizagem mais e mais qualitativos.

A profissão
Professor é a única profissão que, ao ser exercida, produz aquisições profundas nas mentes e nos corações de nossos semelhantes, desde pequenos. É a única profissão obrigatória em qualquer cidade do país, em qualquer localidade, longíncua que seja de onde estamos agora. É o único profissional que todos, indiscriminadamente, conhecem ou vão conhecer, entrar em contato, muitas vezes, ficar à mercê. 
O professor e a educação no Brasil, atualmente, são regidos por um grupo de leis, parâmetros, referenciais, planos, currículos (entre eles, a LDB, PCN, RCNEI, PDE, BNCC). Assim, configura-se na profissão mais regrada, mais vigiada, mais prescrita, mais legalizada entre as demais. E isso, essa profusão de parâmetros e leis, não é gratuito.
Somos regrados pelo estado pois o representamos. O estado brasileiro, seu ideal grafado na constituição, é representado em currículos, mas não só. Todas as modalidade de ensino ofertadas e reconhecidas no país são gestionadas por projetos que se expressam em programas para a escola e seus 200 dias letivos. E também, a formação dos professores - o que devem saber, qual o nível de escolaridade que devem ter e como acessam os sistemas de ensino - tudo é regrado, definido, prescrito.
Nós professores, representamos o ideal de país, ou seja, o tipo de cidadão que o Brasil almeja, pois é pelas escolhas do professor que passam a ciência e a tecnologia que é disponibilizada para a população em geral.
Somos poderosos e, por ter esse poder nas mãos, estamos no palco, sob todas as luzes, todos os holofotes.  

O professor: um maduro da espécie?
No meu entender, o professor, quando ama e respeita a sua professoralidade, impulsiona profundamente as crianças a serem mais e melhores e é o mestre que pode mediar o gosto e a habilidade para que surja o engenherio, a fisioterapeuta, o filósofo, a pedagoga.
Obrigatório desde os quatro anos, o ensino em escolas tensiona sujeitos que, diferentes, se encontram para conhecer e preservar a língua nacional, aprender a ler o mundo e a palavra, inventar um contidiano repleto de relações de curiosidade, aprofundamento, estranhamento e reescritura.
Relações humanas e profissionais.
Relações de saberes e de poderes.
Relações geracionais e culturais.
Nelas, os maduros da espécie, representados pelo professor, intentam dizer aos filhotes que, um dia, ao redor do fogo, partilhávamos o alimento, a memória, a  curisidade. E aprendíamos.

Finalizando...
Agradeço a todos que contribuíram com a pesquisa informal. Acredito que assim, dialogando e conhecendo o que os demais pensam, poderemos chegar próximo do ideal que é dialogar, se colocar no lugar do outro, rever, repensar, recuar, avançar. E partilhar a humanidade.
A metodologia da pesquisa incluiu publicar todas as opiniões.
Por fidedignidade.
Por respeito a quem escreve.
Por retribuição a quem se organiza para pensar, refletir e se expor.
OBRIGADA!



[1] Assinada pela Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Laura Louzada Jaccottet, o artigo foi publicado segunda feira, dia 28 de agosto de 2017. Nele, o e-mail da Desembargadora: lauraljac@gmail.com

sábado, 19 de agosto de 2017

Contar ou transmitir a partir da experiência não é ler!

Cristina Maria Rosa


Ler e contar são duas formas de mediar o mistério, duas importantes práticas de alfabetização literária que, na maioria dos casos, são usadas indiscriminadamente. No entanto, há diferenças entre ler e contar.

Contar é antropológico, ancestral. Contar é acessar um repertório individual e coletivo que faz sentido a determinada família ou mesmo sociedade. É narrar a experiência, é “transmitir a partir da experiência[1]”. Contar é propagar uma história, rememorar um fazer, um ocorrido, uma fatalidade. É experimentar o retorno a emoções já vividas, que se presentificam nas palavras e em silêncios. Contar é tornar perene no tempo “a partir do vislumbre de um narrador qualificado” o “sentido do que lhe está sendo transmitido”. Contar é repassar adiante e, de acordo com Silveira (2011) “assim como a própria narrativa”, contar não é um ato “desinteressado”, ingênuo, espontâneo.
Contar também é selecionar eventos, formatos e epílogos que nem sempre estão escritos e produzi-los oralmente. Neste fazer, o contador circunscreve um grupo de palavras, expressões e sentimentos integrantes de seu repertório e oferece, simultaneamente, suas escolhas éticas, morais, artísticas. Contar, então, é mobilizar um repertório particular: de temas, personagens, enredos, tempos e modos de falar e de reapresentar o passado que, de algum modo, vai se tornando o presente de quem ouve.
Ao contar, mesmo que o narrador acione textos que possuem a característica da longevidade, universalizados pelo impacto e repercussão – e Le petit Chaperon Rouge, de Charles Perrault, é um bom exemplo – a forma de narrar é própria e, para tal, concorre um léxico pessoal, restrito à experiência leitora e narradora do sujeito, além de suas filiações históricas, políticas, filosóficas e literárias. Contar um episódio, parte de uma empreitada, pode ser uma aventura antropológica repleta de aberturas para a construção de sentidos estéticos e literários. Mas nem sempre. Pode ser também e, apenas, uma subtração e/ou higienização de um texto originalmente bruto, rico, autoral.
As versões orais de narrativas clássicas nas quais há abrandamentos de temas e desfechos revelam as escolhas morais e éticas dos adultos que decidem o tipo de contato que a criança terá com a escrita original. Desse modo, interditam o leitor na vivência plena de um pacto com o autor. Versões abrandadas, com objetivo de atenuar ou mesmo postergar o contato com temas estruturadores da psique humana como a morte, a traição e o abandono, por exemplo, são encontradas em profusão, indicando uma indisposição ou incapacidade do adulto quanto ao tema, trama ou desfecho. Essas variantes aligeiradamente inventadas subestimam os ouvintes, omitem constructos literários, violam a obra, depreciam o trabalho do autor e relegam a criança a estruturas mais simples da língua, ignorando ou desdenhando sua capacidade de atribuir sentidos ao lido/fruído. O devaneio, a imaginação, a capacidade de criar, a inventividade, a fantasia são faculdades inerentes aos humanos que têm “necessidade de manifestar e dar corpo às suas capacidades inventivas”. Para Bartolomeu Campos de Queirós (2009):

Possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais elementos, que inauguram a vida, como essenciais para o seu crescimento. Nesse sentido é indispensável a presença da literatura em todos os espaços por onde circula a infância. Todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora.

Contar não é ler e ler é diferente de contar.
Ler é cultural, é reinventar a escrita, é assumir que a linguagem é uma “faculdade cognitiva exclusiva da espécie humana que permite a cada indivíduo representar e expressar simbolicamente sua experiência de vida” (BAGNO, 2014, p. 192). Como “seres muito particulares”, produzimos sentido “por meio de símbolos, sinais, signos, ícones”. A escrita é uma dessas formas de produzir sentido e pode ser conceituada como “um fenômeno social, uma forma de ação e de interação social”. Assim, “produzir um texto significa dizer algo a alguém, por algum motivo, de algum modo, em determinada situação” (FIAD & VAL, 2014, p. 264).
A produção de um texto, porém, exige um “leitor proficiente”, aquele que não só “decodifica as palavras que compõem o texto escrito”, mas, também, “constrói sentidos de acordo com as condições de funcionamento do gênero em foco”. Para tal, mobiliza “um conjunto de saberes sobre a língua”, representado por “outros textos, o gênero textual, o assunto focalizado, o autor do texto, o suporte e os modos de leitura”, de acordo com Da Mata (2014, p. 165).
A fruição de um texto demanda, também, um experiente da espécie que, ao exercer o ofício de mediador, “crie as condições para fazer com que seja possível que um livro e um leitor se encontrem”, em “rituais, momentos e atmosferas propícias” (REYES, 2014, p.213). Esta figura é preponderante para inserir novos e outros no processo de gostar de ler desde tenra infância, uma vez que os pequenos são inexperientes. Para Reyes (2014, p. 213):

Durante a primeira infância, quando a criança não lê sozinha, a leitura é um trabalho em parceria e o adulto é quem vai dando sentido a essas páginas que para o bebê não seriam nada, sem sua presença e sua voz. Por isso, os primeiros mediadores de leitura são os pais, as mães, os avós e os educadores da primeira infância e, paulatinamente, à medida que as crianças se aproximam da língua escrita, vão se somando outros professores, bibliotecários, livreiros e diversos adultos que acompanham a leitura das crianças.

Na leitura – prática letrada mais frequente em nossa vida social (Da Mata, 2014, p. 165) –, o leitor empresta sua voz e, através dela, os sons, alturas, tons, frequências e articulações para colorir, descobrir, adornar, esclarecer, incrementar, apurar, desenredar, duvidar, expor, declarar, revelar, desvelar, divulgar, manifestar, enfeixar, aprofundar, desvendar as tramas em palavras grafadas por outrem, o autor. Toma emprestado dele o invento – o livro e seus segredos – e se empresta ao ler. Torna-se instrumento encantado para apresentar o que o outro – o inventor – criou.
Assim, a leitura, diferente da contação de histórias, oportuniza o contato com o texto literário[2] que, apesar do tempo e do mediador, mantém-se inalterado, com o léxico, a estrutura textual e as escolhas poéticas, filosóficas, éticas – todas – do autor. Neste caso, é preservada a experiência estética com o texto produzido, única para cada sujeito leitor ou ouvinte. Nas palavras de Cunha (2014, p. 112-113):

[...] podemos entender a experiência estética literária como a soma da percepção/apreensão inicial de uma criação literária e das muitas reações (emocionais, intelectuais ou outras) que esta suscita (...). Tal produção literária é – ela também – uma experiência estética, cujo resultado seu criador quer fazer único e inconfundível, com marcas que ele gostaria que fossem percebidas pelo leitor como pegadas no caminho da leitura de sua obra. Assim, na descoberta dessas, (...) o leitor tem um papel de criação. (...) Isso torna a experiência com a leitura da obra literária algo tão rigorosamente pessoal para o leitor quanto foi a criação para seu autor. Por isso mesmo, é insubstituível a fruição surgida do contato direto (por audição, leitura ou até assistência da representação, no caso do teatro) com a obra literária: nenhuma resenha, nenhuma palavra de entusiasmo, nenhuma excelente ação de mediação que se faça necessária, para facilitar o encontro do leitor com a obra, pode dispensar seu corpo a corpo com o texto literário.

Ler é diferente de contar. Não é mais, nem menos. É diferente. Na escola, a criança – aprendiz da espécie humana que através da fala e pela escrita aprende a organizar o pensamento – acessa, com a audição de histórias lidas, contatos e aprimoramentos das relações com a cultura escrita, uma de nossas maiores conquistas antropológicas. Ler para os pequenos desde tenra infância, então, é inseri-los no que de melhor produzimos como “sapiens”: a escrita autoral ou, um modo particular de ver/sentir/narrar o mundo e, um bom mediador, dá nome a quem de direito: ao autor, a autoria; ao mediador, os sentimentos todos que encontrou ali e quer perpetuar, divulgar, evidenciar.



[1] No texto Experiência e Pobreza, o filósofo Walter Benjamin (1933), disserta sobre a perda da capacidade de contar histórias – e de, com elas, dar ensinamentos morais através do intercâmbio de experiências –, ocasionada pela dissolução dos vínculos familiares e pelo empobrecimento de experiências comunicáveis da população.
[2] “Modo muito singular de construir sentidos”, o contato com a linguagem literária oportuniza uma “intensidade” de interação com “a palavra que é só palavra” e uma experiência “libertária de ser e viver”, de acordo com Rildo Cosson (2014, p. 185). Para Cristina Álvares (2004, p. 1), a escrita literária tem três características fundamentais: “ela é coisa na/da linguagem, aquilo que na/da linguagem não é discurso, mas silêncio”, a escrita ou a leitura de um texto literário “é uma actividade que rompe (no sentido violento) o laço social” e, esta ruptura “tem um alcance e um valor sexuais”. “Prática cultural de natureza artística”, para Paulino (2014, p. 177), a leitura do texto literário se diferencia por oportunizar contato com “outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas ações, pensamentos, emoções”.

domingo, 13 de agosto de 2017

Bolas de Berlim e Carol: dois continhos

Cristina Rosa

Bolas de Berlim
Em três quintais e com avó de dois nomes, viveu o menino.
Cachorro não tinha, e quando ganhou, sem querer e em devaneio, pisou em cima. Depois, só a avó Nádia para consolar. E fazer uma cova e uma cruz. Marcar o lugar para não mais pisar.
No quintal. Ou melhor, em um dos quintais.
Da casa azul celeste.
Pertinho, durante toda a infância, bisavó, avó e avô, pai, mão e irmã.
A dos cachorros muitos.
O seu, aquele que morreu cedo demais, filhote ainda, o único lembrado em toda a infância. Como seu.
A irmã? Muitos.
E de nomes originais como Laika...
Lembra também de gibis e de fotonovelas.
Mas lembra mais da casa azul celeste, com porão e tudo. Nele, garrafas, aranhas e suas teias, segredos e um friozinho...
 De cheiros não lembrou. Mas sabores e sons, sim.
Sabores? Especialmente os restos de tudo em um inventado prato, à noite, para o jantar. A mistura, a cada dia de um jeito, produziu sua mais profunda noção de culinária. Hoje, adulto, perambula pelas ruas de Porto Alegre em busca de quem a imite. Inútil. Os restaurantes, todos, fazem de tudo para negar sua infância.
E os sons?
De cantigas de ninar a língua dos adultos, lembra de poder ficar só, em seu mundo, inventando uma presença e uma distância.
Presença por saber que a cantiga de ninar entoada pela avó Nádia em polonês era para os pequenos. Como ele.
A distância, quase ausência, quando os adultos resolviam adultar – que é uma maneira de deixar de ser criança – não escolhia, usufruía. Bisavó, avó e avô, pai e mãe, todos apartados por sons irreconhecíveis, palavras que não faziam sentido para o menino, abriam espaço para a infância acontecer. E ela aconteceu.
Mas de tudo, de especial, as Bolas de Berlim.
Sem recheio.
Sonhos, esses recheados com doce de leite ou goiabada, em Portugal são chamados de Bolas de Berlim. O menino não gostava. Do doce de leite ou da goiabada.
A avó Nádia?
Para o menino, só para ele, um cestinho repleto.
Fiquei até imaginando, hoje, quando soube.
Bolas de Berlim sem recheio.
Só para o menino.
Avó Nádia.
Quando pensa nela, a sua infância, o menino pensa em coisa boa.
Hoje pai de dois meninos, lembra da avó. A polonesa Nádia.
E das suas canções.
As de ninar.
Mas sabe: infância é ter um cesto de Bolas de Berlim. Sem recheio.


Carol
Na família de três meninas, era a do meio. A família mesmo era de cinco: pai, mãe e três gurias. Ela, a do meio[1].
Bonitinha, olhos claros, nem sei bem se verdes ou azuis. E bem magrinha.
Na escola foi bem cedo. Porque a mãe trabalhava fora, no banco, com horários esquisitos.
Chorava.
Mas logo em seguida, aprendeu.
A rezar. E aprontar.
Como era lindinha, com cara de inocente, as freiras sempre perdoavam.
Ela tinha desenvolvido uma técnica que era mais ou menos assim: aprontava, as freiras descobriam, ela ficava esperando. Quando elas chegavam, dedo em riste, armava as mãozinhas e fingia rezar. Dizia baixinho:
- Jesus me ajude, Jesus me ajude...
As freiras então, percebiam que ela acreditava em Deus, que ela recorria a Jesus, Maria ou mesmo a algum santo. E perdoavam.
A estratégia tinha um porém: o ceticismo da madre, a irmã mais poderosa do Colégio. Ela, a madre, sabia que aquela menininha loirinha, magrinha, bonitinha, de lindos olhos claros, era medonha!
A madre, no entanto, era muito ocupada e raras vezes tinham tempo de andar pelos corredores. Resultado: pouquíssimas vezes “pegou” a Carol. Que não era boba nem nada e tinha uma estratégia só para a madre. Querem saber? Pois conto.
Quando ela percebia que a madre estava se aproximando, sua reza era:
- São José me socorra, São José me socorra...
Por que funcionava? A madre era devota de São José e não resistia.
Assim a Carol cresceu. Aprontando e rezando.
As freiras?
Perdoando.
Inteligente, passou de cara no vestibular. Em vários.
Apesar do pai que queria Direito, foi estudar para ser professora.
Estudou. Estudou muito. Muito mesmo. E virou professora.
De crianças.
Loirinhas e moreninhas, bonitinhas todas, magrinhas e também gordinhas. Algumas de olhos claros. Algumas que nem sabiam rezar. Crianças que gostavam, adoravam, aprontar. Se a Carol pegava?
Sempre.
Mas perdoava!

sábado, 12 de agosto de 2017

Problemas da fala na criança: uma entrevista...


Lendo uma entrevista intitulada Problemas da fala na criança, realizada pelo mèdico Drauzio Varela com Rejane Rubino, decidi compartilhar.
Rejane é fonoaudióloga e professora no Curso de Fonoaudiologia na PUS/SP. A entrevista foi publicada em 19/03/2012 e está disponível em: http://drauziovarella.com.br/crianca-2/problemas-da-fala-na-crianca/

PROBLEMAS DA FALA NA CRIANÇA
Entrevista com Rejane Rubino.
Por Dráuzio Varela

Os pais olham os filhos sempre com muito orgulho. Na maioria das vezes, acham que eles têm desenvolvimento mais rápido e são mais espertos do que o das outras crianças. Mas, quando o filho apresenta alguma dificuldade para falar ou desenvolve essa habilidade mais lentamente, ficam ansiosos. Se essa ansiedade não é boa para eles, é péssima para a criança que aí, sim, poderá apresentar problemas em relação à fala.
O ser humano demora alguns anos para dominar perfeitamente o mecanismo da fala. Alguns o fazem mais depressa; outros, mais devagar. Não existe data precisa para determinar a normalidade desse processo que envolve uma série de aspectos orgânicos e psíquicos. Qualquer dúvida que surja a respeito do desenvolvimento da fala na criança deve ser esclarecida para evitar o agravamento da situação.

DESENVOLVIMENTO NORMAL DA FALA
1.      Qual é o desenvolvimento normal da fala na criança, das primeiras sílabas até a formação de frases completas?
Em termos de tempo, existe uma variabilidade muito grande. Aquilo que se considera normal não pode ser demarcado por um ponto fixo, mas por algo que comporta variação. Pesquisas mostram, por exemplo, que uma criança de 16 meses pode falar 150 palavras, enquanto outra da mesma idade não fala nenhuma palavra ainda, o que não significa que esta última apresente um problema de linguagem, porque a questão do tempo variável tem peso significativo.
É importante notar que inicialmente a criança produz vocalizações que são tomadas pela mãe e pelo pai como fala, quer dizer, a criança é interpretada como se fosse um falante antes mesmo de começar a falar.
2.      Que tipo de vocalizações são essas?
Essas vocalizações caracterizam-se pela emissão prolongada de uma vogal – aaaaa, por exemplo – ou até mesmo de sons que não serão produzidos mais tarde quando a criança for falante da língua. Depois, isso vai se transformando num balbucio que se caracteriza pela reduplicação de sílabas (babá, mamã), e que se aproxima da estrutura silábica da língua.

3.      Essas reduplicações costumam ocorrer em que faixa etária?
Elas estão presentes após os seis meses de idade. O importante é que o adulto vai tomá-las como palavras. Em geral, quando as mães dizem que o filho começou a falar porque nesse balbucio emitiu um som próximo de “mamã”, por exemplo, na verdade, ele ainda não está falando. No entanto, o fato de o adulto tomar aquilo como fala é fundamental para que ele venha a falar. A criança depende dessa interpretação para tornar-se um falante ativo.

4.      Em que nível está a fala da criança com um ano aproximadamente?
A partir dessa fala interpretativa que pai e mãe fazem, a criança vai tomando alguns fragmentos que irão reaparecer em situações parecidas às que foram faladas pelos pais. Portanto, a primeira fala tem natureza bastante imitativa. A criança repete fragmentos ditos pelo adulto que continua interpretando sua fala. Então, ela fala “nenê” e o adulto completa: “Você viu que nenê bonito?”. Esse movimento de tomar aquele pedacinho de fala e colocá-lo no contexto da língua imprime caráter gramatical à fala da criança. Esse processo de aquisição de uma gramática estruturada leva uns quatro anos, embora varie de uma criança para outra.

INTERFERÊNCIA DA ANSIEDADE PATERNA
1.      Às vezes, os pais ficam aflitos porque a criança de um ano não fala e não sabem que isso pode fazer parte do desenvolvimento normal do filho, não é?
Os pais, às vezes, comparam um filho com o outro e concluem que o mais velho na mesma idade já falava, embora nem sempre entendessem o que dizia, enquanto o menor não fala nada. Costumo dizer, quando isso é motivo de grande preocupação, que eles devem ser orientados, porque essa ansiedade pode dificultar ainda mais o processo da fala infantil, na medida em que passa para a criança a imagem de que deveria estar fazendo alguma coisa que ainda não consegue fazer.
Na clínica, é importante avaliar o modo como os pais falam sobre esse atraso. Às vezes, eles estabelecem relações entre essa demora para falar (que pode nem ser uma demora de fato) com outras histórias da vida da criança e da história deles mesmos. É importante trabalhar para que a ansiedade da família se dissipe e, se realmente houver um problema, começar o tratamento precocemente.

ORIENTAÇÃO AOS PAIS E CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO
1.      Que tipo de conselhos você dá aos pais ansiosos e que critérios estabelece para diagnosticar um real problema de linguagem?
Existem alguns fatores que precisam ser examinados. Muitas vezes a criança ainda não fala, mas mostra sinais de que a linguagem está se organizando dentro dela. Um exemplo é a maneira como ela brinca. Se não fala, mas pega uma boneca, coloca-a para dormir, tira-a da cama, finge que a alimenta e lhe dá banho, apesar do silêncio, a linguagem está presente. É como se houvesse uma espécie de narrativa, evidenciada por eventos encadeados. No entanto, se a criança não consegue estruturar uma brincadeira, pega um brinquedo e larga para pegar outro que também deixa de lado, os pais precisam ficar atentos a esse modo de reagir.
Outro fator a considerar é o efeito da fala do outro na criança. Se ela atende a fala de terceiros, não há motivo para maiores preocupações, o que não acontece quando reage como se nada do que ouvisse tocasse nela.
Há, então, elementos que se usam na avaliação de linguagem para diferenciar o atraso que requer atendimento da simples demora para falar, uma vez que é praticamente impossível fixar uma idade exata em que essa demora deixa de ser normal.

FALAR ERRADO
1.      E aquelas crianças que falam de um jeito que só as mães entendem?
Isso aponta para outro quadro que não é o atraso da linguagem. A troca de fonemas, por exemplo, que em Fonoaudiologia é chamada de desvio fonológico ou distúrbio articulatório, é um desses casos. Em vez de falar “carro” a criança fala “calo”; em vez de “vaca”, fala “faca”. Além das trocas, pode ocorrer também a omissão de sons.
Embora esteja estabelecido que em torno dos quatro anos de idade a criança deva estar com o sistema de sons da língua adquirido e estabilizado, existe certa margem de variação dentro dos limites da normalidade.
Há pais que trazem a criança com essa idade, preocupados porque ela fala errado a ponto de as pessoas de fora não entenderem o que diz.  Isso demanda análise cuidadosa para verificar que sons a criança não produz ou troca por outros a fim de determinar a necessidade de atendimento ou de esperar mais um pouco, pois ela está em fase final de aquisição da linguagem. Por exemplo: ela já fala razoavelmente bem todos os sons da língua com exceção do r duplo e dos encontros consonantais (fala “Basil” em vez de “Brasil”), em geral os últimos a serem adquiridos. Entretanto, mesmo antes dos quatro anos, pode ocorrer uma desorganização nos sistema de sons que merece o cuidado precoce do fonoaudiólogo.
2.      Você poderia dar um exemplo disso?
Há crianças que omitem sistematicamente os fonemas oclusivos velares, o /k/ de “cola” e o /g/ de “gola” e isso lhes causa incômodo e sofrimento. Lembro-me de que atendi uma menina cujo apelido era Cacá. Quando lhe perguntavam qual era seu nome, ela dizia A-á. As pessoas não entendiam, perguntavam de novo, ela repetia, mas não se fazia entender. A impossibilidade de dizer o próprio nome de maneira inteligível perturbava suas relações sociais. Num caso como esse, indica-se o atendimento mesmo antes dos quatro anos para evitar constrangimentos para a criança.
Ela se chamava Carolina e produzir o fonema /k/ fez uma enorme diferença em sua vida. O dia em que saiu da sessão falando Cacá, estava exultante. É através da fala que as pessoas se apresentam para o mundo. Não poder pronunciar corretamente o próprio nome é algo angustiante para a criança.

GAGUEIRA OU DISFLUÊNCIA
1.      Tenho a impressão de que existem menos crianças gagas atualmente. Estou errado?
Não saberia esclarecer a questão da frequência da gagueira, mas acho que é importante chamar atenção para o seguinte: certo grau de disfluência, ou gagueira, é normal na fala de todos nós e, muitas vezes, nem nos damos conta dele. Em relação à infância, há uma disfluência da fala descrita como normal que faz parte do processo de aquisição da linguagem e tende a desaparecer sozinha. Isso está relacionado com o momento em que a criança passa a produzir as próprias sentenças e tem de escolher uma palavra depois da outra. É como se estivesse diante de várias portas e estancasse hesitando por qual caminho deverá seguir. Isso não é ruim e mostra um movimento da criança na própria aquisição da linguagem.
É claro que o grau de disfluência varia de criança para criança assim como varia a preocupação das famílias. É freqüente pais levarem o filho ainda pequeno que gagueja um pouco para uma consulta com o fonoaudiólogo porque temem que ele seja gago.
Diante de uma hesitação normal, é preciso alertar os pais de que, se a reação deles for tranqüila, o problema da criança vai sumir naturalmente. Por que é importante dizer isso? Porque o modo como os pais lidam com essa fala disfluente pode criar uma autoimagem de mau falante na criança e levá-la realmente à gagueira. Quando ela começa a falar e para e o adulto interfere com dicas sobre a melhor forma de falar sem gaguejar (“pense a sentença toda antes de falar”, “respire fundo”, “fale devagar”), está brecando a fala da criança e criando uma tensão que ainda não existia. Por isso, é importante que os pais busquem orientação sobre a melhor forma de lidar com a disfluência dos filhos para não agravar um quadro que pode passar naturalmente.
2.      A partir de que idade, os pais devem preocupar-se com a gagueira dos filhos?
Eu diria que a partir dos quatro anos, aproximando-se dos cinco, porque nesse momento a criança percebe a própria disfluência e a reação que provoca nos outros.
A gagueira normal tende a diminuir a partir dos três anos e não incomoda nem inibe a criança. O problema começa quando ela evita falar em certas situações ou com determinadas pessoas e se recusa a pronunciar algumas palavras. Isso mostra que está criando mecanismos na tentativa de escapar da disfluência, o que agrava mais ainda o problema.

AVALIAÇÃO DOS FONOAUDIÓLOGOS
1.      Em que os fonoaudiólogos se baseiam para dizer que determinado comportamento em relação à fala é normal ou merece cuidados?
Sempre se inicia por uma entrevista com os pais na qual colocam por que estão procurando atendimento e contam a história da criança. Num segundo momento, o contato é com a criança. Há profissionais que optam por aplicar testes. Eu prefiro sessões livres e lúdicas. O material é gravado, transcrito e analisado para levantar erros e dificuldades que possam estar cristalizados, sintomas de um distúrbio que a criança apresenta e precisa de ajuda para superar.
2.      Esses erros costumam ser sistemáticos ou aleatórios?
Os erros da fala costumam ser sistemáticos, não no sentido de que sejam fixos, mas no sentido de que mostram uma sistematicidade própria da linguagem. Por exemplo, a criança que fala “faca” em vez de “vaca” vai trocar todos os fonemas sonoros pelos surdos. Ela vai falar “cassa” em vez de “casa”, “cato” em vez de “gato”, etc., porque isso é uma lógica própria do sistema de sons da língua. Nesses casos, não se trabalha com os sons isoladamente, mas com a oposição de sons surdos e sonoros, mexendo com todo o sistema fonológico da criança.
3.      Isso pressupõe uma avaliação bem cuidadosa, não é?
Bem cuidadosa. É preciso descobrir que sons são trocados, qual a relação existente entre eles, além de analisar outros fatores para escolher o melhor caminho para trabalhar com aquela criança especificamente.

LÍNGUA PRESA, LÍNGUA SOLTA
1.      E os casos de língua presa, como são encaminhados?
Aquilo que popularmente chamamos de língua presa, nada tem a ver com língua presa mesmo. Recentemente, foi publicada uma reportagem dizendo que o presidente Lula não tem língua presa, tem língua solta. Na verdade, o que ele, assim como outras pessoas têm, é uma projeção frontal da língua, resultante da flacidez ou hipotonia desse órgão. O ceceio característico de sua fala é provocado pelo mau posicionamento da língua, quer dizer, ela não fica contida no espaço nem na posição correta para assegurar o tônus adequado.
A língua presa, em contrapartida, está afixada na boca por uma prega que limita seus movimentos. Um bebê com língua presa pode ter dificuldade para mamar no seio da mãe, por exemplo. Por isso, às vezes, é necessário fazer uma pequena incisão para liberar os movimentos linguais.

2.      Existem exercícios para reduzir os efeitos da hipotonia da língua?
Existem, sim. Gostaria de ressaltar que o desenvolvimento da musculatura orofacial utilizada para a fala tem relação bastante próxima e forte com funções como sucção, mastigação, deglutição e respiração. Assim, o ideal seria o bebê mamar no seio materno, mas nem sempre isso é possível. Alimentado na mamadeira, é importante que ele faça força para sugar. Muitas vezes, preocupadas com o ganho de peso da criança, as mães cortam o bico e o leite jorra sem o bebê fazer esforço algum. Mesmo que o bico seja ortodôntico e o furo pequenininho, sugar no peito demanda força muito maior.
O movimento de sucção propicia o crescimento adequado das estruturas ósseas, das mandíbulas e desenvolve o tônus adequado da musculatura que vai ser empregada na fala.
O mesmo princípio deve ser observado na passagem para a alimentação sólida. Não é raro receber no consultório uma criança a quem a mãe só oferece alimentos macios e pastosos, apesar de já ter idade para aceitar a alimentação dos adultos. Às vezes, as pessoas perguntam: “Quer dizer que o modo como meu filho come interfere no modo como ele fala?”. Sim, interfere e muito.
Outro cuidado importante é observar como a criança respira. Se respira pela boca, é bom levá-la ao otorrino para uma avaliação, já que a respiração bucal pode estar relacionada com a flacidez da musculatura e língua mal posicionada.

APRENDENDO MAIS DE UMA LÍNGUA
1.      Teoricamente, a criança nasce com uma circuitaria cerebral que permite aprender a falar qualquer uma das centenas de línguas que existem.
Elas são capazes de produzir quaisquer sons, mesmo aqueles inimagináveis depois que aprendemos a falar uma língua.
2.      E as crianças que têm pais de nacionalidades diferentes e aprendem duas línguas. Isso resulta em alguma desvantagem?
Existem estudos que estabelecem certa relação entre a possibilidade de problemas de linguagem e o bilinguismo, mas já vi dezenas de crianças crescendo em situação bilíngue sem nenhum problema.
Alguns pais optam por colocar os filhos em escolas estrangeiras, porque acham vantajoso aprender mais de uma língua. Se a criança, porém, manifesta algum distúrbio de linguagem tal atitude pode provocar embaraços, uma vez que ela se vê diante de uma língua estranha quando nem domina a língua materna.