segunda-feira, 24 de julho de 2017

Maus-tratos emocionais e violência “benévola”: O que a literatura tem a nos dizer sobre o tema?

Drª. Cristina Maria Rosa[1]


O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o de contos de fada. Esse conto sabia dar um bom conselho quando ele era difícil de obter, e era o primeiro a ajudar em caso de emergência. Essa emergência era a emergência provocada pelo mito (BENJAMIN, 1994).

A violência contra mulheres e meninas – representada por maus tratos emocionais ou violência psicológica – também está presente nas narrativas literárias, especialmente nos contos clássicos. Neles, também, a morte[2] se apresenta, por via das dúvidas. Traidora, sua presença é sempre temida – o mal maior. Mas, enquanto ela não chega, por que não um sofrimentozinho? 
O artigo surgiu de um convite a explorar o tema no Seminário Educação em Sexualidade e Gênero, ofertado peka Drª Jane Felçipe aos mestrandos e doutorandos em Educação – PPGEducção da FACED/UFRGS , o que ocorreu na manhã do dia  10 de outubro de 2014.

O conceito:
Maus tratos emocionais ou violência psicológica pode ser compreendido como um fenômeno caracterizado por um constante e reiterado desrespeito à mulheres. Muitas vezes sutil, se manifesta pelo desprezo, desqualificação ou depreciação de gostos, escolhas e  competências da ou das mulheres. Integra o fenômeno falas, comentários ou mesmo argumentações que ridicularizam, desabonam e desacreditam a imagem da mulher ou das mulheres de forma direta ou indireta, publicamente, na presença e mesmo na ausência da ou das envolvidas. É uma violência que, em parte considerável das vezes, abre portas para outras manifestações e formas de violência como violência física, moral, patrimonial, sexual). Na elaboração desse "conceito", busquei conhecer pesquisas, artigos e palestras desenvolvidas por pesquisadores na área.
A leitura do relatório final relativo ao Seminário Educação em Sexualidasde e Relações de Gênero na Formação Inicial Docente no Ensino Superior, ocorrido em outubro de 2013 na Fundação Carlos Chagas em São Paulo, foi preponderante para a elaboração do texto. O texto, integral, publicado em 2014 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura está disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002331/233142por.pdf

As obras
Se observarmos obras como Chapeuzinho Vermelho, Pele de Asno, Barba Azul, Cinderela, A Bela e a Fera, Branca de Neve, Rapunzel, João e Maria, O Patinho Feio, A pequena Vendedora de Fósforos e A princesa e a Ervilha, só para mencionarmos alguns clássicos, perceberemos que, em cada uma delas, há um longo e programado sofrimento infligido a personagens frágeis, especialmente crianças e meninas ou mocinhas às vésperas de descobrirem-se mulheres. Nessas obras, a morte é uma ameaça presente, quase uma promessa.
Arrebatadora, a morte nos contos maravilhosos[3] é iminente e não são vicissitudes (fome, doença, terremoto, inundações) que a apresentam aos personagens. Não. Quem apresenta a morte aos pequenos, às meninas, às mocinhas, são mães, pais, madrastas, madrinhas, irmãs, vizinhas...
Em uma obra interessante – interface entre a psicanálise e a literatura – intitulada Fadas no Divã, Diana e Mário Corso (2006) avaliaram o impacto que parte significativa dos contos clássicos produziram e produzem em nossa psique, em nossa constituição como sujeitos. Ao proporem interpretações sobre personagens e tramas, lançam mão de conceitos psicanalíticos[4] para alicerçar hipóteses e, através de metáforas como “Expulsos do paraíso”, “Um lobo no caminho”, “A mãe possessiva”, “O despertar de uma mulher”, “O pai incestuoso”, “A mãe, a madrasta, a madrinha”, “Histórias de amor I: quem ama o feio, bonito lhe parece” e “Histórias de Amor III: Finais infelizes”, entre outras, o casal de autores realiza agrupamentos de narrativas nas quais esses fenômenos aparecem.
O que se pode depreender, a partir da contribuição do casal Corso, é que há, nas narrativas, intensa presença de atitudes que hoje denominamos maus tratos emocionais, abandono e desmando de adultos sobre os infantes – A menina dos fósforos, João e Maria e O patinho Feio são exemplos imbatíveis nesse critério; Ameaça de violência sexual – especialmente em Pele de Asno, mas também em Chapeuzinho Vermelho; Desterro e Violência (de pai/marido/monstro) em Barba Azul, A Bela e a Fera e Pele de Asno, por exemplo. Observa-se também, que há, em algumas das narrativas, a presença de “violência benévola”, embora essa expressão não seja utilizada na obra. Representada pela competição entre mulheres e explicitada em narrativas como A princesa e a Ervilha, Barba Azul, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho e Cinderela, a violência se localiza na “moral”, implícita ou explícita, ofertada pelo desfecho. Nas entrelinhas, no epílogo ou posterior ao fim da narrativa, o leitor compreende que “só uma princesa merece o amor de alguém”, “a curiosidade mata”, “é perigoso ser bela”, “mulheres ‘fáceis’ é que são abordadas por lobos” e para casar é necessário um rol de virtudes: ser bela, ter paciência, humildade, delicadeza...
Além disso, percebe-se a presença de maus tratos quando há punições exemplares como em Rapunzel, que ousa relacionar-se sexualmente apesar do isolamento na torre e merece o desterro em um lugar deserto no qual dá à luz seus filhos. Ao “príncipe” que preteriu a Bruxa, coube a cegueira e errar pelo mundo como castigo. São punições aos “desvios de caráter” que tornaram esses contos educativos, moralizantes, exemplares. Neles, assim como nas fábulas, inveja, soberba, ganância, gula, apetite sexual são desaconselhados em desfechos mal sucedidos.
E qual seria a intenção desses contos? De acordo com Darnton (1996), um dos autores estudados e mencionados pelos psicanalistas, o objetivo das narrativas – e a presença de violência nelas – não era o de prevenir as crianças a respeito da desobediência aos pais e nem mesmo de protegê-las do contato precoce com a sexualidade adulta. Por não serem destinadas especificamente a crianças, essas narrativas retratavam um mundo de brutalidade nua e crua e, desse modo, aparentemente, apenas ajudavam os habitantes de aldeias camponesas a atravessar as longas noites de inverno. Sua matéria? Os perigos do mundo, a crueldade, a morte, a fome, a violência dos homens e da natureza.
Nas palavras dos psicanalistas, “os contos populares, pré-modernos, talvez fizessem pouco mais do que nomear os medos presentes no coração de todos, adultos e crianças, que se reuniam em volta do fogo enquanto os lobos uivavam lá fora, o frio recrudescia, a fome era um espectro capaz de ceifar a vida dos mais frágeis, mês a mês” (KEHL, 2006, p. 16). Walter Benjamin (1994), no entanto, pensa que os contos eram capazes de “dar um bom conselho quando ele era difícil de obter” e podem ser considerados como ajuda preciosa “em caso de emergência”. Complementa: “Essa emergência era a emergência provocada pelo mito (BENJAMIN, 1994, p. 232,).
Nomear medos, oferecer ajuda ou mesmo prevenir comportamentos são hipóteses que buscam responder a presença desses contos ainda hoje entre nós, de seu impacto no imaginário infantil, mas não só. Ao observar a presença de maus tratos emocionais e violência “benévola” em narrativas literárias, podemos escolher se, como e quando ler. Para nós mesmos e para os demais. Para nossas crianças?
Narrativas clássicas
As narrativas orais – forma milenar de transmissão do conhecimento – são consideradas “técnicas de transmissão oral” que “apelam ao poder imaginativo dos pequenos ouvintes” e são capazes de conectá-las ao “elemento maravilhoso” e “à multiplicidade de sentidos que caracterizam o mito[5] em todas as culturas e em todas as épocas, formando um “acervo comum de histórias, através do qual a humanidade reconhece a si mesma (KEHL, 2006, p. 16).
Para Benjamin (1994, p. 221), “contar história sempre foi a arte de contá-la de novo” e “quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido”. O pesquisador acredita que é assim que “se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo”. Do oral, as histórias migraram para a forma escrita e, também por isso, produziram sua longevidade em nossa memória cultural.
Mas, quais são os “nossos” clássicos[6]? Quais os contos que nos ajudam a “atravessar as longas noites de inverno”? Qual é o “acervo comum de histórias” que conhecemos e partilhamos?
Pica Pau?Como adultos brasileiros, temos uma infância mediada pela escola[7], que se utilizou desse acervo comum de narrativas que circulavam oralmente em todas as culturas, tornando-o também o nosso acervo clássico, ou seja, incorporando e disseminando o que já se conhecia na Europa desde 1697 – a obra de Charles Perrault, primeiro a dar acabamento literário ao que hoje conhecemos como Contos Maravilhosos, de Fadas ou de Encantamento. Mesmo nosso maior escritor de literatura para crianças – Monteiro Lobato – bebeu nessa fonte e, ao ler as aventuras contidas no Sítio do Picapau Amarelo, imediatamente nos conectamos com o “universal”.
Mas, o que é um clássico?
Para Sergius Gonzaga (2011), que busca circunscrever alguns “traços definidores do que hoje se considera um texto clássico”, a primeira característica é a atemporalidade, ou seja, clássica é uma obra que ultrapassa “o seu tempo, persistindo de alguma maneira na memória coletiva e sendo atualizada por sucessivas leituras, no transcurso da história”. 
Outra das características mencionadas por Gonzaga em seu texto é a presença, nos clássicos, de “paixões humanas de maneira intensa, original e múltipla” e serem obras que “registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu tempo. A linguagem é outra das características marcantes e definidoras de uma obra clássica, de acordo com Gonzaga. Para ele, nas obras clássicas há a presença de “formas de expressão inusitadas, originais e de grande repercussão na própria história literária.
Por serem “obras de reconhecido valor histórico ou documental, mesmo não alcançando a universalidade inconteste”, autores nacionais[8] ou mesmo regionais podem ser considerados clássicos e, no Rio grande do Sul, João Simões Lopes Neto é um deles. Para Gonzaga, ainda, “talvez a característica fundamental de uma obra clássica seja a sua inesgotabilidade”, ou seja, a capacidade que um livro tem de permanecer interessante, novo a cada leitura, múltiplo, tendo sempre algo a nos dizer. Ele cita Calvino (1993) para corroborar sua afirmação: "Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer".
Para o estudioso, um “clássico é fundamental também pelo efeito que deflagra na consciência do leitor” e, de acordo com esse olhar, propõe que o consideremos, “simultaneamente” como “forma única de conhecimento”, “utilização da linguagem de uma maneira exemplar, original e inesperada” e “um conjunto de revelações, idéias e sentimentos que têm a propriedade de durar na memória mais do que outras manifestações artísticas”.
 E na literatura para crianças, o que são considerados clássicos?
Na literatura escrita para as crianças, atualmente, são reconhecidos como clássicos os Contos de Fadas, também nomeados Contos Maravilhosos ou Contos de Encantamento. São as narrativas compiladas da oralidade por Charles Perrault (1628-1703) e pelos Irmãos Grimm – Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) – e as narrativas criadas por Hans Christian Andersen (1805-1875), preponderantemente.
Quais as características desses contos maravilhosos que os tornam clássicos? Com certeza, a longevidade, a presença intensa e concomitante nas infâncias desde então. São narrativas que persistem na “memória coletiva” e têm sido atualizados “por sucessivas leituras” e mesmo recontações e reescrituras.
Outra das características dos contos maravilhosos que os tornam clássicos é a abordagem de temas humanos, como o amor, e nele a inveja, o ciúme, as disputas e as violações e o medo – do abandono, da solidão, da crueldade e da morte, entre outros. Esses “temas”, tratados “de maneira intensa, original e múltipla” encantam, produzem o desejo de serem desvendados, desvelados desde tenra idade.
Ao registrar e simultaneamente inventar “a complexidade de seu tempo”, os contos maravilhosos revelam a infância que havia em priscas eras, e as tramas que a ela eram pertinentes. Mesmo tendo se passado trezentos e dezessete anos de sua primeira grafia conhecida (PERRAULT, 1697), o memorável encontro de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mau parece ser absolutamente passível de acontecer.
Hoje.
Aqui ao lado, em algum parque...
E é isso que o torna clássico: indica uma infância possível: ingênua, no limite entre a curiosidade e o perigo. Um cristal: transparente e prestes a quebrar.
O medo é “uma das sementes privilegiadas da fantasia e da invenção”, é um “sentimento vital que nos protege do risco da morte” e as “crianças procuram o medo”, de acordo com Kehl (2006, p. 17). Ouvir histórias “é um dos recursos de que as crianças dispõem para desenhar o mapa imaginário que indica seu lugar na família[9] e no mundo” e contar histórias é o “papel geracional que cabe aos pais frente aos filhos” (KEHL, 2006, p. 18).
Uma obra, para ser considerada clássica precisa, também, criar formas de expressão “inusitadas, originais e de grande repercussão na própria história literária”. Neste caso, a clássica expressão “Era uma vez...”, que abre grande parte dos contos, por eternamente original, tem forte impacto na memória afetiva de gerações, sendo empregada sempre que se quer anunciar uma leitura ou mesmo o mistério.
Os clássicos – compilados e/ou inventados pelos autores acima citados – são obras “de reconhecido valor histórico ou documental”, integrando a história da língua dos países de origem bem como retratos de um tempo e de um modo de pensar não apenas a infância. Pela qualidade, diversidade e contribuição à dicionarização da língua, sua filologia e mesmo memória oral, os contos registrados pelos irmãos Grimm, por exemplo, foram considerados patrimônio cultural[10].
Outra importante razão para os contos de encantamento serem considerados clássicos é sua “inesgotabilidade”, ou seja, é possível fazer diferenciadas e infindáveis leituras de uma mesma narrativa. Leituras e recontos, vide as inúmeras versões hoje conhecidas de algumas delas.
Clássicos Infantis Brasileiros
No Brasil, podem-se considerar clássicas as narrativas de Monteiro Lobato, pois possuem as características que Ítalo Calvino ressalta como indispensáveis ou mesmo componentes de um clássico: possuem longevidade, tratam temas humanos com intensidade, registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu tempo, criam formas de expressão inusitadas, originais e de grande repercussão, têm valor histórico e documental e oferecem uma possibilidade inesgotável de leituras...
No entanto, diferentemente dos clássicos universais, há algumas características que aparecem preponderantemente em textos literários para a infância e a ingenuidade é a maior das características. Valor perdido ou mesmo desatualizado na vida adulta, a ingenuidade é plausível e fundante na literatura para a infância.
Outras das características presentes que configuram, definem ou mesmo organizam um texto para que ele seja considerado como pertencente ao campo da arte literária infantil são: a presença da magia ou elemento mágico, a necessidade da imaginação ou faz-de-conta, a ancestralidade ou pertencimento (personagens interligados familiarmente), a localização geográfica e temporal indefinida (tempo/espaço inexistente), a literariedade (linguagem metafórica) e a ludicidade (mentira/verdade).
Assim, textos literários infantis são textos que estabelecem uma conexão imediata com a imaginação, com o mundo que existe como desejo, possibilidade. O texto literário nos remete a situações inusitadas e podemos, através dele, transgredir (a ordem, as leis, as regras, as idades) ou mesmo só pensar que se faz isso. Através dele podemos brincar de ser outro, mais novo, mais velho, com poder, sem nenhum, com muito ouro, com quase nada. Como exemplo, temos o invencível traço de Eva Furnari e seu Pandolfo: "No reino da Bestolândia, havia um jovem príncipe chamado Pandolfo. Pandolfo nada entendia de amor ou amizade...". Pronto, já entrei no reino, visualizei Pandolfo, ele é jovem, não entende nada de amor ou amizade, o reino existe e quero saber o que será dito na próxima página. É Eva Furnari e suas invencionices. Literatura pura, da mais alta qualidade.
Textos literários infantis são também textos que apresentam vínculo com a ancestralidade, com nossa condição de humanos em sociedade. O texto literário nos faz pertencer e nos ensina que, um dia, em torno do fogo, ouvíamos e contávamos e, desse modo, inventávamos a linguagem...
Textos literários infantis são os que prevêem a existência de elementos mágicos, fantásticos, inverossímeis que, na trama, são absolutamente possíveis de existir, como o pó de pirlimpimpim. São textos caracterizados pela presença de linguagem metafórica e, em alguns casos, de palavras ou expressões inventadas, que produzem tamanho efeito no leitor que ele acaba acreditando nelas, vivendo-as, multipicando-as. Um exemplo?

“Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam” (...). E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe correndo, em pós” (ROSA, 1992).


Textos literários infantis são brinquedos inventados por nós, através de um mecanismo incrível, o nosso cérebro e nossa imaginação. Não há máquina que imite, é criação pura, invencionice, bobices e gostosuras, como diz Fanny Abramovich. Doce e útil, a literatura tem o compromisso de encantar o leitor e, ao mesmo tempo, torná-lo mais culto, mais perspicaz, mais inteligente, mais curioso... A obra literária não tem a tarefa de informar, embora possa fazer isso, não tem a tarefa de educar, apesar de poder. Tem compromisso com a imaginação, a emoção, a estética...
Simples assim...
Punto e basta, como diriam meus ancestrais...
Narrativas Modernas
E os contos infantis modernos? Apresentam “maus tratos emocionais e violência benévola” em seus roteiros e conteúdos, em suas imagens e desfechos? Se sim, como podemos nos apropriar desses contos para entender/impedir/minimizar a dor e o sofrimento causados à infância?
Antes de tudo, é preciso considerar o que seriam “maus tratos” e “violência” em narrativas literárias, uma vez que a linguagem literária tem como característica um não explícito vínculo com o real. Para Todorov (1975), o texto literário “não entra em uma relação referencial com o ‘mundo’ como o fazem frequentemente as frases de nosso discurso cotidiano” e ele “não é representativo de outra coisa senão de si mesmo” (1975, p. 14). Com o desejo de ser pedagógica, moralizante, ética, a literatura infantil produzida modernamente tem passado ao largo de questões polêmicas e dolorosas. “Higienizada” a partir da invenção da infância, grande parte do que conhecemos como literatura apresenta um “final feliz”, indicando infâncias que não mais se defrontam com o medo, a crueldade, a morte.
Há, no entanto, exceções...
Para Todorov (2012), a literatura tem um poder imenso: ela pode “nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver” (p. 76). Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é, para Todorov, “pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos” e a realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente, “a experiência humana” (p. 77). 
A intenção de produzir prazer e pensamento – quase uma unanimidade entre os pensadores mais modernos acerca da literatura – é, no entanto, uma raridade entre os escritos modernos[11] e, apenas com critérios, leitura intensa e frequente além de delicadeza, é que teremos as condições de selecionar o que pode ser utilizado para evidenciar/produzir o desvelamento das abordagens adultas inadequadas à infância.
Acredito que a boa literatura tem o dever/poder de nos tirar da “zona de conforto”, rosa ou azul que escolhemos para representar a infância. Ela veio ao mundo não para ser objeto de deleite, apenas, de prazer estético.
Literatura é arte! E, sim, deve fazer pensar sobre a condição humana [12].

Referências:
BENJAMIN, W. 1994. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã: Psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.
DARNTON, R. 1996. O grande massacre dos Gatos. Rio de Janeiro: Graal.
GONZAGA, S. 2011. O que delimita um clássico? Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/literatura/temadomes/temadomes_classicos_2.htm
KEHL, M. R. 2016. Prefácio. In: CORSO, D & CORSO, M. Fadas no Divã: Psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed.
LABBÉ, B. & PUECH, M. 2012. A vida e a Morte. São Paulo: Scipione.
MEIRELES, C. 1951. Problemas da Literatura Infantil. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Educação.
TODOROV, T. 1975. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva.
TODOROV, T. 2012. A literatura em Perigo. Rio de Janeiro: Difel.




[1] Pedagoga, Doutora em Educação (UFRGS), Pós-Doutora em Estudos Literários na Educação (UFMG, 2011), Docente na FaE/UFPel. E-mail: cris@ufpel.tche.br Blog: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/
[2] Todas as vidas têm valor, mas esse valor não é o mesmo para todo mundo. Como mais inteligente que os demais seres vivos, a espécie humana pensa que todas as vidas lhe pertencem e, ao atribuir valor diferenciado à vida, a morte de alguns parece plausível. Seria essa a origem da violência? Quer pensar mais sobre isso? Um texto bacana é A vida e a Morte, de Brigite Labbé e Michel Puech.
[3] As “Narrativas Maravilhosas” ou “Contos de Fadas” pertencem ao gênero literário intitulado “Literatura Fantástica”. Gêneros literários são “precisamente essas escalas através das quais a obra se relaciona com o universo da literatura” (TODOROV, 1975, P. 12).
[4] A teoria psicanalítica (Sigmund Freud, 1882-1940), pode ser conhecida em três publicações: Interpretação dos Sonhos (1899), Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) e Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Para a Psicanálise, o sexo está no centro do comportamento humano. Ele motiva sua realização pessoal e, por outro lado, seus distúrbios emocionais mais profundos; reina absoluto no inconsciente. Fonte: http://www.infoescola.com/psicologia/psicanalise/
[5] Mito vem da palavra grega mythos. Pode ser traduzido como discurso ou narrativa. Diferente da Filosofia (discurso racional que surgiu para se contrapor ao modelo mítico desenvolvido na Grécia Antiga), mito significa contar, narrar algo para alguém que reconhece o proferidor do discurso como autoridade sobre aquilo que foi dito. O sentido original está intimamente ligado à oralidade; as histórias eram passadas de geração a geração através do canto. Fonte: http://www.brasilescola.com/filosofia/mito-filosofia.htm
[6] Sugestão de leitura: CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
[7] A escola pública, como a conhecemos, existe no Brasil desde 1930 (criação do Ministério da Educação). Considerado o principal idealizador das grandes mudanças que marcaram a educação brasileira no século 20, Anísio Teixeira (1900-1971) foi pioneiro na implantação de escolas públicas de todos os níveis, que refletiam seu objetivo de oferecer educação gratuita para todos. Após o Manifesto de 1932 (Pioneiros da Educação), a Constituição de 1934 traça as linhas mestras de uma política educacional brasileira. Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/formacao/anisio-teixeira-428158.shtml
[8] Gonzaga cita como Clássicos Brasileiros os seguintes autores: Machado de Assis, os poetas Carlos Drummond e Manuel Bandeira, os inventores da linguagem João Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Rubem Braga e os modernos Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e Moacyr Scliar. Fonte: http://oficinaliterariacharleskiefer.blogspot.com.br/2009/10/curso-classicos-brasileiros-com-sergius.html
[9] Em reportagem sobre o menino Bernardo, assassinado recentemente pela madrasta com a conivência do pai na cidade de Três Passos, há o relato de uma conversa com uma médica amiga da família. Ela pergunta: “Bernardo, se você fosse personagem de uma história, qual gostaria de ser?” E ele responde: “Nenhum. Ninguém me conta histórias!” Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/09/as-falhas-na-rede-de-protecao-que-nao-salvou-bernardo-boldrini-4608042.html
[10] Os manuscritos do primeiro volume dos Contos de Fada para o Lar e as Crianças (1812) dos irmãos Grimm foram reconhecidos pela UNESCO como patrimônio cultural da humanidade. Integral em: http://www.brasil.diplo.de/Vertretung/brasilien/pt/__pr/Nachrichten_20Archiv/02.05.13_20contos_20de_20fadas.html
[11] Há bastante tempo, Cecília Meireles (1951) já se referia a obras adequadas à infância. Para ela, “um livro de literatura infantil é, antes de mais nada, uma obra literária. Nem se deveria consentir que as crianças freqüentassem obras insignificantes, para não perderem tempo e prejudicarem seu gosto”. Sábia Cecília!
[12] Revisão do Texto: Bitica Rosa

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