terça-feira, 10 de maio de 2011

"Histórias da Teté": o inédito manuscrito de Pedro Wayne

O campus Pelotas do IFSul recebeu entre os dias 5 e 7 de maio, pesquisadores de diferentes países para o I Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la Integración en el Conosur (ECHTEC).
Entre os vinte e seis simpósios e 535 propostas de trabalhos para apresentação inscritos no evento, a professora Cristina Rosa apresentou parte de seu trabalho de pesquisa sobre o ficcionista Pedro Wayne. O resumo pode ser lido a seguir. O trabalho completo será disponibilizado assim que os anais doevento forem publicados.




Resumo: Inserida em três campos de estudo (a Literatura, a História e a Educação), apresento a pesquisa a respeito do manuscrito “Histórias da Teté”, uma narrativa infantil em três tomos cujos personagens são as letras do alfabeto, do escritor de literatura sul-rio-grandense Pedro Wayne (1904-1951). O objetivo da investigação foi inserir o manuscrito na história da cultura escrita e vinculá-lo ao conceito de letramento literário (PAULINO, 2010). Ao trazer à tona uma inédita fonte do romancista, pude realizar estudos a respeito dos vínculos da fonte com a literatura infantil brasileira, que nos anos 20 e 30, dava seus primeiros passos. Elaborada entre os anos 1937-1942, “Histórias da Teté” concorre para o fortalecimento de um tipo de texto – o narrativo literário – e possui um discurso destinado à infância brasileira, ainda sendo “inventada” á época. O estudo foi desenvolvido entre 2007 e 2009, resultou em uma publicação que aborda a biobibliografia de Wayne e apresenta a transcrição – na íntegra – do manuscrito, além de estudos decorrentes de seu conteúdo e forma. O manuscrito “Histórias da Teté”, uma raridade entre a produção de Pedro Wayne, o interessante autor de “Xarqueada”, e merece ter acento na historiografia da cultura escrita.

Palavras-chave: Manuscrito; Literatura Infantil; Pedro Wayne.

Imagens de um ficcionista: a memória da viúva de Pedro Wayne

Aceito para comunicação no VI ENCONTRO REGIONAL SUL DE HISTÓRIA ORAL: NARRATIVAS, FRONTEIRAS E IDENTIDADES que acontecerá nos dias 24 a 27 DE MAIO DE 2011 na UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS, o artigo intitulado "Imagens de um Ficcionista: a memória da viúva de Pedro Wayne" filia-se ao Grupo: História e Memórias: Narrativas e Identidades.

O resumo enviado à organização do evento pode ser lido a seguir e o texto completo será disponibilizado após a realização do mesmo:



Resumo: A comunicação trata das memórias de Leopoldina Almeida Calo Wayne (1908-2009), a “Dininha”, viúva do ficcionista Pedro Wayne (1904-1951). Suas lembranças foram acionadas para a escrita de uma biobibliografia a respeito do romancista. Na época, às vésperas de completar 100 anos, Leopoldina se encontrava com saúde perfeita e memória privilegiada. De cunho qualitativo, a pesquisa teve como procedimento metodológico central a entrevista dialogada. Nesta, fotos, objetos, referências familiares e informações prévias mediatizaram os momentos de lembranças e de confirmação de informações. Questões como origem e desenvolvimento de sua relação de amor com o ficcionista, hábitos de leitura e escrita, o legado material, cuidados com os filhos, trabalho e manifestações políticas são elementos que foram explorados quando da escuta das lembranças da viúva de Wayne. Filha de Ramon Calo y Miguens, espanhol, natural da Galícia e Ernestina Almeida Calo, pelotense, casou-se com Pedro aos 20 anos. Embora lembrar seja difícil e doloroso, Dina parecia ter a compreensão ampla do que é o exercício, o “trabalho” emocional e intelectual da memória. Ao avaliar sua capacidade, disse: “Vivo com saudade, alguma coisa esqueci, mas me lembro de muita coisa, não me esqueço. Não posso ser hoje o que fui ontem”. Na comunicação, a memória da viúva compõe um especial retrato do escritor e acrescenta informações preciosas a sua biografia.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Onde está o “Meu ABC” de Erico Verissimo?





Inserido no universo editorial brasileiro dos anos 30 e de autoria do maior ficcionista gaúcho do século XX, o abecedário “Meu ABC” foi elaborado por Erico Verissimo, publicado em 1936 pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, ilustrado por Ernst Zeuner e assinado pelo personagem Nanquinote (VERISSSIMO, 1932, p. 181). Diferentemente dos demais livros do escritor, Meu ABC foi editado apenas uma vez e tornou-se um raro livro que integra a obra do ficcionista gaúcho.
Com a intenção de dar assento na historiografia da literatura a esse ignorado e raro documento, durante o período de coleta de informações sobre o período em que foi escrito, leitura da biografia, obra e fortuna crítica do escritor, fui convencida de seu protagonismo na elaboração e publicação de diferentes livros dedicados à infância. Nesse contexto, Meu ABC teria sido parte de um projeto do escritor que, à época, dava largos passos no que veio a se tornar a maior empresa editorial gaúcha, a Editora Globo.
De posse de informações preciosas – declarações contidas em Meu ABC (VERISSIMO, 1936) e em Gente e Bichos (VERISSIMO, 1965), confidências do escritor em Solo de Clarineta (VERISSIMO, 1973), descrição do abecedário feita por Regina Zilberman (2009) e depoimentos de Maria da Glória Bordini (2011) –, narro a história do livro que contém 25 vocábulos iniciados por grafemas, em ordem alfabética, seguidos de uma narrativa.
Considerando os estudos de Aguiar (2005, p. 43) que afirma a intenção do ficcionista em “formar e informar seus leitores”, acredito que Verissimo projetou uma série de livros dedicados à infância e à juventude, alguns em coleções, tendo iniciado a “Biblioteca de Nanquinote” pelo abecedário Meu ABC. Mais que isso, produziu-os na década de 30, ao mesmo tempo em que suas demais atividades tinham curso – foi editor, revisor, tradutor, escritor de romances, entre outras atribuições – o que indicaria que não foi uma produção ocasional. Para Aguiar (2005) a elaboração de onze títulos dedicados à infância constitui “um projeto literário consciente, uma vez que o autor deixa claros seus objetivos junto ao público (...)” e indica que Verissimo foi um escritor “em consonância com a crescente efervescência da época”, quando há significativo aumento tanto de obras como edições.
Pertencendo ao campo da análise qualitativa (LÜDKE e ANDRÉ, 1986), considero a intenção do escritor em estabelecer, inicialmente através do abecedário, um diálogo entre a criança e o adulto que seria, a posteriori, completado com a leitura de A vida de Joana d’Arc (1935), Os três porquinhos pobres (1936), As aventuras do avião vermelho (1936), Rosa Maria no castelo encantado (1936), As aventuras de Tibicuera (1937), O Urso com música na barriga (1938), A vida do Elefante Basílio (1939), Outra vez os três porquinhos (1939), Aventuras no mundo da higiene (1939) e Viagem à Aurora do Mundo (1939), conforme palavras do escritor, na apresentação da edição de 1965 de Gente e Bichos: “Destinei minhas narrativas a crianças entre quatro e dez anos. Quero dizer, escrevi-as de tal modo que, se uma pessoa ler esses contos para crianças ainda não alfabetizadas, estas poderão compreendê-los”. A metodologia empregada para o estudo e a análise de Meu ABC foi a fotografia do original além da leitura de toda a obra infantil e de suas memórias e parte da fortuna crítica.
Meu Abc – impresso em formato de paisagem com 13 cm de altura por 27 cm de largura – possui 32 páginas, possivelmente duas a menos que o original. As seis primeiras são: capa com o título Meu ABC e ilustrações que representam crianças, brinquedos e animais; no verso, papel de parede com motivos infantis e à esquerda, o ex-libris; segunda capa na qual se apresenta o personagem Nanquinote e a proposta de sua “Biblioteca”; no verso, a impressão de, possivelmente, uma marca da editora para a coleção; terceira capa na qual está impresso o pertencimento à coleção, o título do livro, o nome do ilustrador e o nome do autor. Informa que é uma “Edição da Livraria do Globo de Porto Alegre” e, possivelmente, o número da série do livro: Nº 4.
O miolo é composto de 12 páginas não numeradas, impressas frente e verso contendo em cada uma, uma ilustração e um texto relativo a uma letra do Alfabeto. Inicialmente apresentando diferentes grafias da letra em maiúsculas e minúsculas, logo apresenta uma palavra iniciada pelo grafema e um texto. Na sequência, quatro páginas pós-textuais: uma com o título “O mundo das maravilhas” na qual o autor discorre sobre a literatura e sua importância para as crianças, outra com a publicidade das coleções da Editora Globo, duas páginas com papel de parede com motivos infantis e a última capa com um texto na parte superior que diz: “Biblioteca de Nanquinote. As crianças brasileiras estão alvoroçadas depois que viram os livros da Biblioteca Nanquinote – lindos entre os mais lindos. E os pais de família estão satisfeitos porque podem dar a seus filhos livros bons, bonitos e interessantes por 4$000 o volume. Em cada livro, uma aventura engraçadíssima, ao lado de figuras maravilhosas em muitas côres!”. Além do texto, ilustração de cinco capas de livros e um convite: “Comecem hoje mesmo a ler e a colecionar os belos livros da Biblioteca de Nanquinote”.
Descrever os aspectos físicos do exemplar fotografado inclui afirmar suas condições de conservação – bastante precárias – além da exiguidade: há apenas dois registros públicos do livro, um integrando o acervo Erico Verissimo na BN e outro integrando o acervo da BLM, em Porto Alegre. Quanto ao conteúdo literário e pedagógico, os resultados indicam que o abecedário tem poucos vínculos com a qualidade da literatura de Verissimo; no entanto, representa um material que sim, poderia ter sido utilizado nas escolas para introduzir crianças no mundo da leitura. Aparentemente vinculado ao método analítico, não há estudos específicos a respeito dessa produção de Verissimo. Ela, curiosamente, não consta na maioria de suas biografias e listagem de livros publicados e nem mesmo é referido na fortuna crítica, com raras exceções, o que torna a pesquisa relevante

Confraria de Autores e Livros





A Vanguardinha, espaço cultural da Livraria Vanguarda dedicado à literatura infantil, realizou, no dia 19 de abril de 2011, o primeiro encontro da Confraria de autores e livros, um encontro de professores das redes pública e privada com pesquisadores da leitura e da literatura.
Com o tema " A arte de ler histórias", a professora Cristina "colocou à disposição dos presentes seu trabalho e sua experiência no incentivo à leitura voltada aos públicos infantil e juvenil" e "como anfitriã do evento, ela brindou a todos, ao ler, com sua bela entonação e mesmo com requintes de intérprete, um clássico de Andersen e uma bela história de Sylvia Orthof", segundo Maribel Moraes Felippe.
Para a professora, "a leitura deve causar no leitor, não necessariamente um ensinamento, mas sim um prazer estético" e os professores, "devem ler obras literárias para seus alunos, devendo fazer, de cada dia letivo, um momento de encontro com a arte da leitura".
Presente na confraria, a professora Maribel destaca que a confrade "salientou a importância da atual literatura infantil brasileira, uma das mais respeitadas do mundo em virtude de possuir forte cunho filosófico, ao contrário dos clássicos, onde prevalece o elemento mágico". Em sua opinião, "apesar de diferentes, ambos são necessários na formação da criança e devem ser utilizados na sala de aula".

Das leituras ao Letramento Literário: 1979-1999



Editado em parceria UFMG/UFPel a obra “Das Leituras ao Letramento Literário (1979-1999)”, de autoria da Dª. Graça Paulino é uma coletânea de artigos publicados em diferentes veículos durante vinte anos de trabalho da autora. Apoiado pelo CEALE/FaE/UFMG e Programa de Pós-Graduação em Educação da FaE/UFMG, foi lançado em dezembro de 2010 em Belo Horizonte (Livraria Quixote) e foi tema de um Diálogos na Casa de Simões, em Pelotas, RS, no dia 07 de abril de 2011 (Vanguarda Livraria).

A obra está disponível em:
Quixote Livraria e Café. Rua Fernandes Tourinho, 274. Savassi. Fone: 30112000. 3227-3077 e 3264-2858.
Vanguarda Livraria pelo site: http://www.livrariavanguarda.com.br/site/content/home/

LITERATURA NA ESCOLA: por uma leitura não convencional do mundo




Resumo: Neste artigo defendo a formação de um sujeito leitor desde a mais tenra idade, através de diferentes processos de letramento originados na literatura. Utilizo o argumento de que o jogo simbólico ou “faz-de-conta” é uma das ferramentas mais adequadas para a criação da fantasia, tão necessária a leituras não convencionais do mundo.
Penso que essas leituras não convencionais abrem caminho para a autonomia, a criatividade e a exploração de significados e sentidos além de atuar sobre a capacidade da criança de imaginar e representar e, assim, colocar-se no lugar do outro, um legítimo outro.
Acredito que a diversidade cultural representada pelas variadas e múltiplas linguagens que a literatura oportuniza é um forte argumento em favor do diálogo entre os diferentes e da instituição de uma sociedade menos preconceituosa.

Introdução:
O que são leituras não convencionais do mundo? Qual a relação entre escola e literatura? Como formar um sujeito não preconceituoso na escola?
Questões como essas mobilizam professores interessados em criar, a partir de um lugar social – a escola – leituras e práticas sociais não convencionais. Essas leituras e práticas implicam em uma visão de mundo não restrita ao universo cultural herdado e tem como objetivo principal, as trocas entre os diferentes, possíveis na escola desde a mais tenra idade.
Acredito que a formação de um sujeito não preconceituoso – que observa o mundo não apenas de seu universo cultural, mas busca incluir a lógica do outro nas relações de pertencimento – possa emergir a partir de processos de letramento – compreendido aqui como o uso escolar e social qualificado dos saberes conquistados a partir da leitura e da escrita.
Esses processos de letramento quando tem origem na literatura contrastam com os eventos familiares e/ou espontâneos pelos quais todas as crianças passam. Penso que, na escola, devem ser organizados com o intuito de alargar o sentido atribuído à leitura – de funcional e restrita à decodificação deve dar lugar ao prazer, primeiro, e a capacidade de estar no mundo, logo a seguir.
Ao apresentar o mundo registrado a partir do olhar de diferentes autores, cada um deles com uma visão própria do mundo, a escola pode vir a ser um local onde as relações sociais entre os diferentes se tornem menos tensas, mais ricas pela troca. Acredito que esse movimento dê margem a uma nova atribuição de sentido ao escolar – de formal e restrito à amplo e não convencional.
Penso também que o intuito maior de processos de letramento originados n literatura – no diverso, portanto - é oportunizar múltiplos entendimentos do mundo, criando e consolidando o sentido parcial e temporário das verdades.
O jogo simbólico inaugurado pela ancestral contação de histórias é uma das ferramentas para a criação da fantasia, tão necessária a leituras não convencionais do mundo. Através do “faz-de-conta” as crianças expressam o que sentem, organizam seu pensamento, interagem com outras visões de mundo e ampliam seus princípios, reconhecendo a diversidade presente na escola como um benefício ao seu processo de letramento.
Acredito que a diversidade cultural representada pelas variadas e múltiplas linguagens que a literatura oportuniza é um forte argumento em favor do diálogo entre os diferentes, uma vez que ao ouvir histórias, nos identificamos com personagens de todos os matizes éticos e, não raro, nos encantamos com as bruxas, madrastas, lobos e monstros, exigindo de todos que os consideremos a partir de sua característica mais forte: o simbólico, o fantástico.

1. Literatura: as invencionices da imaginação
A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra.
Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização...(Coelho, 2000, p. 27).

Atualmente conectada ao conceito de cultura erudita e localizada entre o capital cultural (BOURDIEU, 1982) das classes economicamente favorecidas, a literatura tem sua origem em contos e lendas ancestralmente disseminadas pela oralidade. Recolhidos por diferentes organizadores e reescritos, esses contos e lendas passaram a fazer parte de um acervo importante, cultuado e conhecido no mundo todo.
Foi assim que se tornaram internacionalmente conhecidos os contos reunidos por Andersen, entre eles o belíssimo "Os sapatos vermelhos", o romântico "O Soldadinho de Chumbo" e o enigmático "O patinho feio". Assim também conhecemos e nos apaixonamos por "A raposa e as uvas" e "O corvo e o Jarro" de Esopo, ele mesmo uma fábula que, através de narrativas breves, em prosa ou em verso, com uma mensagem moral transmitida por meio de personagens, chegou até nós por versões.
Ícones da reunião de poesias e lendas populares oralmente transmitidos, "Branca de Neve e os Sete Anões" e "Rapunzel" são obras que foram muito além da intenção primeira dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Especialistas em cultura folclórica alemã, eles nos legaram, com o registro dessas poesias e lendas, um mundo belo, mágico, estruturador.
Cultuado e conhecido no mundo todo, o universo da literatura oportunizou que conhecêssemos as estratégias de Sheerazade para não apenas se manter viva, mas também salvar seu povo, através do inimaginável "Mil e Uma Noites. A obra é um forte argumento para a necessidade da inclusão de outras lógicas e, ao mesmo tempo uma amostra do material do qual é feita a literatura: de talento e capacidade de se tornar indispensável.
Na história da literatura brasileira, contos, crendices, causos e rodas de conversas deram origem a inúmeras recontações, o que compõem hoje, os mitos e lendas brasileiras, com personagens conhecidos e imortalizados por Monteiro Lobato no já clássico "O Sítio do Pica-Pau Amarelo". Além deles, a Salamandra do Jarau e o Negrinho do Pastoreio, obra do gaúcho Simões Lopes Neto, já fazem parte do cinema brasileiro. O genial Trancoso, de Joel Rufino dos Santos e o hilário Policarpo, de "As 'armas" penadas", escrito por Benita Prieto são outros personagens desse imenso universo.
Embora a origem da literatura esteja vinculada aos relatos orais que, em círculos reais ou imaginários foram sendo amalgamados em nossa memória, é importante ressaltar que há inúmeros autores hoje que criam literatura e educadores que criam leitores.
Nesse processo de criação, como não saber do Menino Maluquinho, que tamanho desejo despertou por uma bucólica vida no interior, nas urbanas crianças de nossos dias? Como viver sem conhecer o Reizinho Mandão, o Marcelo, Marmelo, Martelo e as idéias do Nicolau que tão intensamente nos foram apresentadas pela Ruth Rocha? Como não ousar depois de conhecer a Maria “que não vai com as outras” da Sylvia Orthof e as viagens do Equilibrista, tão sutilmente escritas pela Fernanda Lopes de Almeida? E como não conhecer embarcações depois de saber que a solidão é como “uma ilha com saudade de barco” jeito todo especial da Adriana Falcão dizer as coisas?
Ludicamente habitado pelos antepassados e pelos que a sucederão, “Bisa Bia, Bisa Bel” da Ana Maria Machado produz um enigma maior que a discussão entre arte literária e pedagógica: a impossibilidade de viver sem herdar e o inexorável humano que é legar no campo do imaginário.
Eva Furnari oferece com Pandolfo Bereba, um príncipe que acha o humano interessantíssimo, a oportunidade de observarmos a arte e a pedagogia em uma forma repleta de interdependência. É nos estranhamentos que esse príncipe vive em seu passeio pelo real que se produz o que penso que pode ser o convívio radical e, ao mesmo tempo, definitivo para essa arte que se alimenta do novo e do velho ao mesmo tempo: a metáfora do ridículo.
Literatura é arte, uma arte "fascinante, misteriosa e essencial" e tão complexa "quanto a própria condição humana" (Coelho, 2000, p. 28). Esse é o argumento central da maioria dos autores que defendem a literatura enquanto arte literária, dulce, portanto. È esse também o argumento que se encontra na reunião de "Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades" que Harold Blomm recentemente organizou em quatro estações do ano.
A literatura não se divide entre infantil e adulta, embora se encontrem obras destinadas às crianças e uma literatura escrita para adultos, além de estudos que buscam circunscrever o fenômeno da literatura sob diferentes aspectos como a teoria que sustenta seu uso, os procedimentos metodológicos adequados a essa linguagem e a análise de obras, de acordo com diferentes interpretações. Penso a literatura enquanto arte literária sem prescindir de seu aspecto utile, pedagógico, pois, se a literatura é a invencionice da imaginação, como prescindir dela na escola?

2. Qual a relação entre literatura e escola?

O livro – esse instrumento sem o qual não posso imaginar minha vida e que não me é menos íntimo do que minhas mãos e meus olhos. (...) O livro é uma extensão da memória e da imaginação (BORGES, 2001, p. 188-189).

Instituição criada historicamente com uma função social, a escola simboliza e materializa um espaço público e uma possibilidade de acesso ao conhecimento. É vista como condição para ascender socialmente, base para as oportunidades no mundo do trabalho e passaporte para o respeito na sociedade. Na modernidade, a escola é o espaço dedicado à educação formal, que inicia com o acesso à linguagem escrita e culmina com a formação de um cidadão disciplinado.
A linguagem é parte do universo simbólico criado como instância intermediária, interdito (Cassirer, 1994) na relação com o mundo e “o imaginário deve utilizar o símbolo, não somente para exprimir-se, o que é óbvio, mas para existir, para passar do virtual a qualquer coisa a mais” (CASTORIADIS, 1982, p. 142).
O processo de simbolização ou o “conjunto de interpretações das experiências individuais, vividas e construídas coletivamente” não é findo. Pelo contrário, como processo, se constitui de uma gama de elementos fundantes que são as “crenças e fantasias, desejos e necessidades, sonhos e interesses, raciocínios e intuições” (FERREIRA E EIZIRIK, 1992, p. 7). A escola, embora produza seus próprios bens de sentido, não fica à margem da produção de outros sentidos que se materializam de diferentes formas, através das relações de afirmação ou negação de projetos.
Ouvir histórias lidas, desde há muito tempo é um hábito que envolve prazer, instrução e informação. Reunir-se para ouvir alguém ler tornou-se também uma prática necessária na Idade Média, pois, segundo Manguel (1999), até a invenção da imprensa, a alfabetização era rara e os livros, propriedade dos ricos, privilégio de um pequeno punhado de leitores.
Assim, pessoas que desejavam ter acesso a algum livro que apreciassem tinham mais oportunidade de ouvir o texto “recitado ou lido em voz alta do que de segurar o precioso volume nas mãos” (MANGUEL, 1999, p. 138).
Na escola, o primeiro contato com a leitura nem sempre se faz com a literatura. A maioria das crianças, pelo contrário, entra em contato com contações de história e não leitura de histórias. A maioria das professores ignora a importância do universo escrito como referência para a aprendizagem do objeto cultural – a linguagem – e do objeto imaginário – o fantástico.
Assim, é muito comum que as crianças tenham uma idéia estrita do universo literário disponível e restrinjam-se a ele para lidar com o diferente, reproduzindo valores e fazendo escolhas precoces entre o bem – representado pelo príncipe que salva – e o mal, quase sempre representado pela bruxa que se veste toda de preto e tem poder de transformar uma criança em sapo.
Essa prática exercida pela maioria das escolas resulta em crianças que, embora alfabetizadas, não utilizam a escrita e a leitura em práticas típicas de uma sociedade grafocêntrica. São crianças que lêem e escrevem escolarmente, ignorando as demais funções sociais da escrita. Isso me faz lembrar uma história que se chama “Pagando Mico” e é a respeito dos ridículos que as crianças e adolescentes são expostos na escola. O fragmento abaixo refere-se a um mico escolar:

Micos de professor são os mais difíceis de falar porque todos nós já tivemos professores e sobrevivemos, então a vontade é não dar bola. Mas tem cada um... O primeiro mico é o da caligrafia. Caligrafia é a arte ou técnica de escrever à mão com beleza e harmonia. Mas também pode ser descrita como maneira ou estilo próprio de escrever à mão. Eu, particularmente, prefiro a segunda definição... Se é maneira própria, se é estilo, por que é que a professora quer que todos escrevam de forma igual? Detalhe: vivemos na era digital, não manual e quase ninguém mais utiliza as mãos para escrever.
Se não, vejamos: As mãos, para escrever, são utilizadas em espaços, tempos e funções definidos. Espaço: escola. Nos jornais, veículo de informação mais lido no mundo, a profissão mais bem paga é a do Editor, um cara que lê muito e que escreve pouco. E que risca, corta, suprime e decide o que os outros podem ou não escrever. E nenhum escreve à mão! Tempo: Ensino Fundamental. Como o dia tem vinte e quatro horas e a escola, em média quatro, significa que, nas outras vinte as crianças e adolescentes podem – e usam – as mãos para segurar as páginas dos livros que estão lendo, para teclar... Funções: redações, temas e provas. Nas redações, temas e provas – que delas ninguém escapa – é necessário escrever à mão. E aí vem a necessidade de escrever com legibilidade, único argumento que me faz pensar na caligrafia como um jeito próprio e universal de dizer as coisas. Fora isso... Mas mico maior que querer letras iguais é querer fazer com que gurias e gurias encham linhas e mais linhas nos cadernos de caligrafia, como se isso, essa repetição de letras de forma e tamanho sempre igual, fosse fazer com que eles gostassem mais de ler, de escrever, de criar...(Rosa, 2005, p. 136-139).

Para que a leitura seja uma prática social ela precisa ampliar o universo imaginário e lingüístico das crianças e a literatura, com certeza é o caminho mais acertado: pela sua condição lúdica e pela sua qualidade pedagógica. Quanto maior a qualidade do material escrito que as crianças têm acesso, mais possibilidade de utilizarem, de forma competente, a linguagem escrita e maior a oportunidade de vincularem-se a diferentes visões de mundo, fazendo opções mais amplas e menos preconceituosas.
O acesso a diferentes gêneros literários oportuniza desfrutar, cotidianamente, de uma atividade lúdica e isso “desenvolve na criança uma atitude positiva para com a aprendizagem, a sala de aula, com a escola, pois o lúdico é estimulante, apaixonante, envolvente, mobilizador” (AMARILHA, 2003, p. 56). Penso que “os bons livros, como a própria vida, deixam no ar um certo enigma, um sabor de desconhecido que o professor deve e pode desfrutar juntamente com seus alunos” (PRIETO e CAVALCANTI, 1997, p. 17).
Como pensa Abramovich (2003, p. 17) é através da escuta e/ou da leitura de histórias se podem descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos de agir, outra ética, outra ótica. E, ao mesmo tempo, ficar sabendo História, Geografia, Filosofia, Política, Sociologia. E esta é a conexão para a formação de sujeitos leitores desde a mais tenra idade.

3. Leituras não convencionais do mundo
A escola pode desencadear um processo de construção de um sujeito não preconceituoso?
Deve. Nesse processo, o primeiro movimento é oportunizar leituras não convencionais do mundo através de uma atitude simples: ouvir histórias. Ouvir alguém ler oportuniza identificar-se com aventuras e idéias, levar em consideração as lógicas e as conclusões de outros, refletir a partir da argumentação dos personagens, se apropriar de saídas e de jogos que minimizem a dor e ampliem os valores. A tarefa primordial da escola não é fazer escolhas pelas crianças; é criar situações de identificação e de contraste com as lógicas já existentes.
Como afirma Monteiro (2004, p. 28), “a leitura oral de histórias favorece o gosto de ler, pois provoca nas crianças o desejo de ler solitariamente sem se preocupar com o número de páginas ou com a finalidade da leitura, ou seja, à vontade de ler pelo puro e simples prazer”. E ainda, a literatura e a escrita são”velhas parceiras” e saber ler e escrever “constitui marca de distinção e de superioridade em nossa tradição cultural, tanto para indivíduos como para coletividades (LAJOLO, 2001, p. 30).
A sensação, a de estar sendo "levado fisicamente" quando se ouve uma história foi descrita por Manguel na obra “Uma história da leiutra” e o autor se refere a uma sensação de voluptuosidade ao ser levado pelas palavras lidas pela babá. Mais que isso, registra a impressão de, ao ouvi-la, estar sendo levado fisicamente, como se de fato estivesse viajando “por algum lugar maravilhosamente longínquo”.
O encantamento possível com o ouvir história produz um impacto tão grande que se torna inesquecível por anos e o desejo de causar isso a si mesmo e aos outros eternamente – o princípio do prazer – pode ser desencadeado na escola, através da escolha criteriosa de livros a serem lidos e do preparo para essa leitura em voz alta.
É nessa prática cotidiana que podem se originar as trocas de capital cultural que Pierre Bourdiu (1982) define como todo o campo de saberes que se relacionam com o sentido atribuído socialmente à escola: é o capital lingüístico que circula na escola, o acervo disponível para aquisição desse capital lingüístico e as informações sobre o sistema escolar, seus procedimentos e valores.
Penso que leituras não convencionais abrem caminho para a autonomia, a criatividade e a exploração de significados e sentidos além de atuar sobre a capacidade da criança de imaginar e representar e, assim, colocar-se no lugar do outro, um legítimo outro.
E proponho o riso: rir de nós mesmos, rir de nossas certezas, rir e chorar de rir. Ler é ter direito ao riso e às lágrimas, ter direito às emoções que foram impressas com o calor do fogo ancestral em nossos imaginários e em nossos corpos. Assim, o jogo que a literatura, desde suas mais remotas origens, atualiza em cada uma das crianças que aprendem a atribuir significados, passa ao largo das discussões teóricas e metodológicas, ao largo das disputas políticas ou literárias. È o jogo que dá ingresso a um dos traços do "mais humano em nós": a arte de sonhar e fazer sonhar.

REFERÊNCIAS
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 2003.
ALMEIDA, Fernada Lopes de. O Equilibrista. São Paulo: Ática, 1998.
AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Petrópolis: Vozes, 2003.
ANDERSEN, Hans Christian. Contos. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BLOOM, Harold. Contos e Poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades. Rio de Janeiro:Objetiva, 2003.
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas IV. São Paulo, Globo, 2001.
BOURDIEU, P. & PASSERON, J.C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora AS, 1982.
CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.
ESOPO. Fábulas. São Paulo: Martin Claret, 2004.
FALCÃO, Adriana. Mania de Explicação. São Paulo: Moderna, 2001.
FERREIRA, Nilda T. e E EIZIRIK, Marisa F. Imaginário social e educação. (Em Aberto. Ano 14, n° 61, jan./mar.) Brasília: INEP, 1992.
FURNARI, Eva. Pandolfo Bereba. Rio São Paulo:
GALAND, Antoine. As mil e uma noites. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
GRIMM, Jacob e Wilhelm. Contos. Porto Alegre: L&PM, 2003.
LAJOLO, MARISA. Literatura: Leitores & Leitura.São Paulo: Moderna, 2001.
LOBATO, Monteiro. O Sítio do Pica-Pau Amarelo. São Paulo: Brasiliense, 1986.
LOPES NETO, Simões. Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Porto Alegre: Globo, 1957.
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