domingo, 14 de dezembro de 2008

"Queres Ler?" na História da Cultura Escrita

Três dimensões constituem, preponderantemente, a historiografia a respeito da cultura escrita no Brasil: a escolarização como o processo por excelência de entrada nessa cultura; a produção e difusão do impresso como principais evidências de usos da escrita e; as taxas de alfabetização como o indicador privilegiado da existência de usuários da língua escrita (GALVÂO, 2007, p. 9-10). Um dos impressos que obteve um significativo sucesso (considerado inovador, eficiente e adotado oficialmente por muitos anos) foi a Cartilha “Queres Ler?”.O livro de leitura “Queres ler?” já recebeu música[1] e pelo menos uma análise na história da alfabetização (PERES, 1999). Escrita pelo professor uruguaio José Henriques Figueira “Quieres Leer?” foi adaptado pelas professoras Olga Acauan e Branca Diva Pereira de Souza, após submissão à “Commissão de exame de obras pedagógicas”. Aprovada em 1924, foi “adoptada em innumeros estabelecimentos de ensino público e particular” (ACAUAN & SOUZA, 1935). Apresentado pelo relator Dr. Antonio Henriques de Casaes, ex-docente de Pedagogia da Escola Complementar, o livro de leitura foi considerado parte do sucesso obtido pelo ensino na capital do Uruguai[2] e foi defendido com o intuito de ser um mecanismo que promoveria a “excellencia de um processo de leitura” (CASAES, 1924).
Em um pequeno intróito, as autoras atribuem ao autor “rasgos de fidalguia e desinteresse cavalheiroso” por autorizar a adaptação. Consideram que esse gesto “nascido de um espírito orientado pelas odiernas idéas pedagógicas” pois havia, por parte do professor José Henriques, a preocupação “pelo complexo problema do engrandecimento social”. As autoras consideram ainda que Figueira “revela generoso empenho de ver triunphante, além das fronteiras uruguaias, a sua nobre cruzada de ideaes em pról da educação do povo” e que essa, a educação do povo seria a “causa do porvir” (ACAUAN & SOUZA, 1935).Na edição de 1935 há a reprodução, logo depois das palavras iniciais das adaptadoras, do prólogo escrito por José Henriques Figueira em 1919, quando recebeu das autoras a adaptação para analisar. Nesse prólogo, Casaes considera a adaptação ao idioma português “bien realizado” e, para além dos motivos pedagógicos que, com certeza “facilitará el aprendizaje educativo de la lectura y escritura a los niños del Brasil” essa adaptação é “um nuevo motivo de la simpatia sincera que une El Brasil AL Uruguai, naciones vecinas y muy buenas y queridas amigas” (CASAES, 1919).
Considerado um livro de leitura inovador e bem sucedido, “Quieres Leer?” é anunciado por suas adaptadoras como um “Livro de Leitura e escripta corrente” fundado “na sciencia mental e no estudo da criança e composta de accordo com os princípios de espontaneidade, de autonomia e correlação natural das matérias (associação synergica) e dos methodos intuitivo e analytico-synthetico phonico de palavras e frases fundamentaes”. Além disso, na capa do Primeiro Livro se encontra a descrição do que poderia ser encontrado nas próximas páginas: “Lições e exercícios normaes de Leitura-escripta corrente e orthografia usual” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. XV).
Casaes, parecerista de “Quieres Leer?” ressalta as características do livro de Leitura afirmando que sempre lhe pareceu que
“a leitura e a escripta deviam ser companheiros de jornada: que a leitura precisava começar, não por simples sons, que nada significam, mas por palavras normaes, exprimindo coisas que a criança podia ver, tocar, palpar, observar; que os exercícios deveriam respeitar a ordem de difficuldades, sem precipitação, nem pressa; que a leitura, aproveitando a curiosidade natural da criança, precisava favorecer sua iniciativa, respeitar sua autonomia, ensinal-a a associar as idéias expressas pelas palavras que lia; que pela repetição de exercícios variados, afim de evitar o aborrecimento e a fadiga que a monotonia gera, se adquirisse o habito de ler; que os meninos demonstrassem sempre haverem comprehendido a matéria lida e, logo que se tronassem capazes e possuíssem certo vocabulário, dessem novos exemplos, fizessem novas applicações e observações, reveladoras do seu livre trabalho mental; que os exercícios de prosódia e orthographia, indispensáveis á leitura e á escripta, tivessem durante certo tempo, caracter meramente prático; que a imagem, desde o início, fosse companheira da Idea” (CASAES, 1924, p. VIII).
O primeiro livro de leitura “Queres ler?” traz, como conselho pedagógico fundamental a seguinte nota:
“Deve o professor pedir aos alumnos que estudem as principais estampas deste livro e que expliquem de viva voz o que as mesmas representam. Deste modo, as crianças comprehenderão que as figuras constituem uma fórma de linguagem escripta e aprenderão a ler o que o artista quis expressar com ellas” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. XVII).E para complementar, as autoras oferecem aos professores uma orientação bastante inovadora para a época, um tempo conhecido na historiografia como de silêncio na escola: “Utilizem-se as estampas deste livro para exercícios de conversação” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. XVII).

Podendo ser vinculado ao método analítico pelo escolha de palavras “normais” e “com sentido” e pela concepção de que se aprende a partir de conceitos
[3] o Livro de Leitura “Queres Ler?” também pode ser considerado de orientação sintética, uma vez que a escolha das palavras é aleatória (inicia na figura/palavra ovo), a metodologia de estudo das palavras principia pela visualização das vogais componentes da palavra (no caso da palavra ovo, a vogal o) e, logo a seguir, desemboca na decomposição da palavra em sílabas recombináveis (como fava + ovo = favo). Além disso, o livro de leitura apresenta uma orientação fonológica (universo de palavras de valor sonoro similar como ovo, ova, uva, luva, fava, favo, fala). No entanto, o que se apresenta como foco e metodologia de aprendizagem é a idéia de memorização, via repetição. Essa “orientação” pode ser observada em mais um dos conselhos das adaptadoras:

“O professor deve (...) escrever várias vezes no quadro negro a palavra ovo e procurar que os alumnos a leiam em sua unidade e a escrevam, primeiro por cópia e logo depois de memória. Proceda-se de igual modo com a palavra uva. Após esses exercícios os alumnos lerão essa lição no livro com a maior independência e individualmente” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. 1I).

Nas orientações é clara a idéia de que não se deve proceder a uma análise das “partes” da palavra: “Não se proceda ainda a nenhum exercício de analyse, pois se trata principalmente de visualizar éstas duas palavras básicas em sua unidade, isto é de fixar a imagem visual, (idéa de conjuncto e analyse-syntese empírica ou subconsciente)” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. 1).

A repetição das palavras aprendidas, em termos de escrita entre as crianças é indicada como devendo ser oral, simulada, escrita, com letra manuscrita e depois de imprensa. Exercícios para os “atrasados” também são sugeridos, contradizendo a orientação de só passar à lição seguinte quanto as crianças reconheçam as palavras ensinadas:

“Usa-se a letra manuscripta, primeiro, em seguida, letra de imprensa. (...).Logo que as crianças possam reconhecer as palavras ovo e uva, passar-se-á á lição seguinte Os exercícios de Montessori, nos quaes as crianças percorrem com a gemma dos dedos o contorno das palavras e letras que vão estudando, umas vezes, vendo o que fazem, outras com os olhos fechados, têm utilidade para as crianças atrasadas. Também é útil o exercício de escrever ‘no ar’ com os olhos abertos ou fechados, as palavras ou letras que vão aprendendo” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p. 1I).
Notas:[1] A canção “Guri” de João Batista Machado e Julio Machado Neto refere-se ao livro “Queres Ler?” como condição para aprender a escrever. A música foi composta em, e classificou-se no festival nanan.[2] No estudo que denomina “A produção e uso de livros de leitura no Rio Grande do Sul: Queres Ler? E Quero Ler” Peres (1999) afirma que foi a criação dos colégios elementares que impulsionaram, no início do século XX, uma missão especial de professores à Montevidéu, cujo intuito era observar o funcionamento das escolas primárias.[3] As autoras recomendam, a cada nova lição, que “O professor deve falar sobre os objetos que as figuras representam” (ACAUAN & SOUZA, 1935, p.1).

domingo, 7 de dezembro de 2008

Carta ao Mestre: a Pedagogia de JSLN

Dando prosseguimento às pesquisas sobre o Manuscrito “Artinha de Leitura” de JSLN, elaborei uma pequena análise da “Carta ao Mestre” que o escritor Pelotense deixou grafada logo no início de sua cartilha. Manuscrita e parcialmente ilustrada em 1907 e dedicada “as escolas urbanas e ruraes”, “Artinha da Leitura” foi encaminhada, em julho de 1908, ao Conselho de Instrucção Pública do Rio Grande do Sul que a rejeitou com as seguintes palavras:

“Sobre a cartilha primaria ‘Serie Brasiliana’, em manuscrito, de J. Simões Lopes Netto, entende o Conselho que, não podendo o Estado impõr a orthographia seguida pelo autor, deve ser reparado o trabalho por estar em desacõrdo com o Regulamento e não obedecer ao criterio de ensino” (Ata da 6ª Sessão, 25/07/1908).

Durante esses cem anos de desaparecimento o manuscrito recebeu diferentes nomes: “livro didactico-primário” por João Simões Lopes Neto (1904); “cartilha primária” pelo Conselho de Instrução Pública (1908); “livro sobre motivos rio-grandenses intitulado Artinha de Leitura” por Carlos Reverbel (1945); “Eu no Colégio” por Manoelito de Ornellas em 1955; “O verdadeiro Terra Gaúcha” por Carlos Francisco Sica Diniz (2003) e “livro de leitura” por Aldir Schlee (2006). Encontrado em novembro de 2008 e depositado aos cuidados do IJSLN, o manuscrito pode finalmente ser conhecido e estudado, uma vez que foi digitalizado pelo NDH/UFPel.
A “Carta ao Mestre” que se encontra na página 4 do manuscrito, entre outras preciosidades, indica que “Ler e escrever devem andar de par”. João Simões, então, sugere ao mestre que “logo de começo, faça por que o aprendiz vá ajeitando-se, educando a mão, os dedos, a segurar o lápis. Podendo ser, faça-o praticar com o lápis e papel, este em pequenas folhas avulsas; a chamada pena de pedra e a louza tornam a mão pezada. Vijie em que durante o trabalho, o aprendiz guarde uma posição hijienica: natural e cômoda” (JSLN, 1907, p.4).
Para o escritor, a letra e seu traçado eram importantes, tanto que escreveu:

“Durante o primeiro tempo somente exercicios de linhas, retas e curvas, e ângulos. Procure que essa tarefa inicial vá sendo bem feita e que para o deante o aprendiz escreva sempre com boa letra, simples, sem arabescos, alinhada e em pé (reta). A escrita reta ou em pé corresponde á atitude que a criança toma espontaneamente quando escreve pela primeira vez; a escrita reta que é um importante auxiliar para o ensino da leitura, é também mais lejível que a inclina da e ocupa menos espaço” (JSLN, 1907, p.4).

Embora afirme que ler e escrever “devem andar de par”, quase todas as indicações do escritor são no sentido da escrita, sem arabescos, clara, ou seja, em busca de um treino gráfico, o que pode ser observado no fragmento a seguir:

"Depois - no segundo, terceiro mez – vá dando-lhe a fazer as letras de cursivo e romanas, como exercicio de copia; dê-lhe também singelos modelos de desenhos, sem sombra, ou que elle os trace de memória: uma pá, uma chave, cadeado, relojio, chaleira, etc. Quando bastante adestrado em copiar letras e silabas, começará a escrever sob ditado e assim apura o ouvido e a atenção. Faça-o sempre ler o que escreveu" (JSLN, 1907, p. 4).

Em nota de rodapé JSLN apela para o bom senso do mestre, tanto no que concerne “a duração da aula, distribuição dos trabalhos, horário” bem como a utilização das notas de seu livro. Em suas palavras, “tudo fica subordina ao senso prático, tirocinio e cultivo do mestre” (JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 04).
É interessante conhecer um João Simões que,apesar da pouca escolaridade, indica, nesse livro didático, muito conhecimento a respeito dos processos pedagógicos.

Leitura: Mitos e Lendas

Dizem muitas coisas sobre a leitura.
Uma delas que ler em movimento (no carro, no ônibus, no avião) deixa o sujeito enjoado.
Tenho para mim que enjoado é quem não lê. Haja paciência para aturar um papo furado, desses que iniciam invariavelmente com:
- Friozonho o nosso inverno, não acha?
Outra coisa que dizem da leitura é que ler, com menos luz do que o necessário deixa o sujeito cego. Ta, dizem que a longo prazo...
Cego é quem não lê, esse é que não vê nada. Mais ou menos como aquele sujeito que, ao ser perguntado dos escândalos da política pergunta:
- Em que país?
Dizem também, e isso foi antigamente, que ler cansa a vista.
Cansa a companhia, cansa as pessoas que precisam aturar as certezas do senso comum, todas ditas com um ar de sapiência e com uma mesma fórmula:
- Meu pai aprendeu com o dele e isso eu confirmo...
E logo depois alguma pérola como “Dizem que enterrar um cipó amarrado duas vezes desata todos os problemas do vivente!”
Outra coisa da leitura que dizem é que tem hora e lugar. Isso eu confirmo. Tem hora. Todas. E tem lugar. Qualquer um. Ler é um prazer tão grande que quem gosta, não consegue esperar o lugar ideal nem o momento certo. Mesmo porque esse lugar ideal quase sempre está longe de onde estamos quando acabamos de comprar um jornal, uma revista, um livro novo. E o momento certo ou já passou ou ainda não chegou, então por que não ir dando uma olhadinha no sumário, nas manchetes, naquela foto que eu me interessei?
Tem muito mais coisas que dizem sobre a leitura. Uma é que ela afasta as crianças do brincar, da verdadeira infância. A “verdadeira” infância seria um lugar do fruir alegrias advindas do correr, pular, gritar, dar risada, esconder-se, jogar bola, comer despreocupadamente. Ou seja, para esse conceito, criança é só um corpo alegre que entra em movimento por qualquer motivo.
Eu ainda não encontrei nenhuma criança que risse, corresse, pulasse, jogasse sem imaginar grandes aventuras...
Essas “grandes aventuras” imaginadas não brotam com o suor, com o volume da voz, com a pressa do correr. Essas aventuras fazem parte do complexo universo da inteligência humana capaz de ser racional e imaginária ao mesmo tempo.
A imaginação é mãe de todas as idéias, é filiada ao regime noturno – ao sonho – e produz verdades que entram em choque com o real. É por isso que muitos preferem sonhar em vez de realizar.
Mas como eu ia dizendo, a aventura, ou melhor, a imaginação da aventura, brota desse complexo enigma cinza que temos aprisionado dentro dos ossos da cabeça.
A prisão, por pequena, demanda janelas.
As da alma, como dizem alguns, e as da imaginação, como sabemos todos.
Essas janelas precisam de ar – idéias – e de luz – imagens.
Sabe onde podemos encontrar ar e luz? Nos livros. Ou você não conhece Felpo Filva, o poeta da Eva Furnari?
Por tudo isso é que eu afirmo: Infância combina com leitura. Presente de aniversário, de Natal, de Páscoa, de amizade, de carinho, delembranças, presente, pode ser livro.
Criança não fica traumatizada se entrar em uma livraria. Silêncio combina com criança. Ler no carro, em movimento, ler no ônibus forçando a retina, ler com uma vela, ler, ler combina com Infância. E também com adolescência, com maturidade com terceira idade.
Ler combina, ler está na moda, ler é chique.
Ler indica que você tem pensado ultimamente...
Ler oferece coisas a dizer, ler faz pensar em coisas a serem ditas.
Ler é massa, é maneiro, é tri legal.
Ler é condição de humanidade e, por isso, ler é imprescindível.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

"Artinha de Leitura" na História da Cultura Escrita

Na primeira década do século XX, mais precisamente entre os anos 1904 e 1908 a Educação do Rio Grande do Sul viveu um momento único: foi um tempo em que João Simões Lopes Neto elaborou seu projeto didático, iniciado pelo manuscrito “Artinha de Leitura”, um livro para ser “amado pelas crianças”.
Ao manuscrever e submeter a julgamento do Conselho de Instrucção Pública do RS, “Artinha de Leitura” foi anunciado pelo escritor como o primeiro de uma pretendida “Série Braziliana”. Na primeira página, logo abaixo do nome curvado como “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira, JSLN dá nome aos volumes que se seguiriam: “II Eu na Escola”, “III Terra Gaúcha” e “IV Hinnos e Glorias do Brasil”. Antes mesmo de virem a público o manuscrito, em uma conferência intitulada “Educação Cívica”, JSLN declarara o “ideal” de criar um livro:

“(...) simples, lúcido, saudável, cantante, de alegria e caricioso, que os homens rindo de sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas crianças, que nele, com sua ingênua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo; um livro em que se pudesse condensar o coração meigo, valente e virtuoso da mãe brasileira; a serenidade dos nossos heróis, a independência e a probidade dos nossos estadistas, um livro vibrante em que eu pudesse fazer ressaltar a terra, o povo, a pátria, num relevo tão grande, tão firme, tão iluminado, que impressão da sua leitura fosse eterna” (JSLN in: SCHLEE, 2006, p. 280).

"Artinha da Leitura” – o livro I do projeto Simoneano – foi manuscrita e parcialmente ilustrada com colagens de recortes. Em sua capa, registra seu local de origem – Pelotas-Rio Grande do Sul – e o ano em que possivelmente foi finalizada - 1907. Além disso, JSLN apresenta-se como “Lente da Academia de Comércio de Pelotas”, dedicando sua cartilha “as escolas urbanas e ruraes”. Em julho de 1908 o escritor encaminhou os originais ao Conselho de Instrucção Pública do Rio Grande do Sul conforme Acta da 5ª Reunião (21/07/1908). Nessa, o escriba da Acta registrou:

“Foram apresentados ao Conselho para julgamento os livros: Histórias de nossa Terra de Julia Lopes de Almeida e a Cartilha de leitura: Serie Brasiliana de J. Simões Lopes Netto. Em tempo declaro que este último trabalho foi apresentado em manuscrito e com o ofício do mesmo nº 2028, desta data. Resolveu o Conselho adiar para outra sessão o julgamento dessas obras” (AHRGS: Acta da 5ª Reunião - 21/07/1908).

Repousando entre raros documentos no Memorial Público do RS, é no segundo parágrafo da Acta da 6ª Sessão (25/07/1908) que se encontra o veredicto do Conselho: “Sobre a cartilha primaria ‘Serie Brasiliana’, em manuscrito, de J. Simões Lopes Netto, entende o Conselho que, não podendo o Estado impõr a orthographia seguida pelo autor, deve ser reparado o trabalho por estar em desacõrdo com o Regulamento e não obedecer ao criterio de ensino”.
Assinada por Protásio Alves, Alvaro Batista, e Manuel Pacheco Prates, o “julgamento” não intimidou JSLN que imediatamente ocupou-se em redigir uma “Ligeira Contradicta” (JSLN, 1908) argumentando em favor da ortografia utilizada –motivo de sua recusa – além de se propor a refazê-la.

Desaparecimento
Logo depois que foi entregue ao Conselho de Instrucção Pública a “Artinha” desapareceu. Na verdade, talvez ninguém a tenha procurado por um bom tempo e só tornou-se motivo de busca quando JSLN já havia sido “descoberto” e reconhecido publicamente através do trabalho publicado por seu maior biógrafo: Carlos Reverbel em 1981. Como possivelmente acontece com outros escritores logo após a morte, o que restou do espólio do escritor pelotense passou a ser descrito, estudado, preservado sem que a “Artinha” fosse encontrada.
Ao ser arquivado na Secretaria do Interior, o trabalho de Simões passou a receber nomes diferenciados, o que pode ter contribuído para disseminar incertezas a respeito de sua existência. Inicialmente anunciado como “livro didactico-primário” por João Simões Lopes Neto (Conferência Educação Cívica, 1904), ao ser entregue ao Conselho de Instrucção Pública foi alcunhado de “Cartilha de leitura: Serie Brasiliana” (Acta da 5ª Reunião, 21/07/1908) e quatro dias depois, “cartilha primaria ‘Serie Brasiliana’ pelo mesmo Conselho (Acta da 6ª Sessão em 25/07/1908).
Carlos Reverbel, o primeiro a registrar o conteúdo do Baú deixado pelo Capitão, denominou-a de “livro sobre motivos rio-grandenses intitulado Artinha de Leitura” em uma matéria intitulada “João Simões Lopes Neto: Esboço Biográfico em tempo de reportagem” publicado na Revista Província de São Pedro em setembro de 1945.
Outro dos nomes que a “Artinha” recebeu foi de um grande amigo de Dona Velha, a esposa do escritor João Simões. Ao escrever sobre o conteúdo do Baú deixado por Simões e a ele franqueado para estudos pela viúva, Manoelito de Ornellas referiu-se ao documento como “livro Artinha de Leitura” em uma coluna do Correio do Povo em 1948. Dez anos depois, nomeou-o de “Eu no Colégio” no prefácio de Terra Gaúcha (1955).
Já em Pelotas há dois estudiosos que publicaram obras biográficas sobre o escritor e que, em seus trabalhos, referiram-se à artinha de diferentes modos: “O verdadeiro Terra Gaúcha” por Carlos Francisco Sica Diniz (2003) e “livro de leitura” por Aldir Schlee (2006).

Por que “Artinha”
Embora o nome possa parecer estranho a quem não estude os métodos e processos de alfabetização no Brasil, “artinha” é empregado em manuais de alfabetização desde 1752 quando Antonio Pereira de Figueiredo celebrizou-se pela publicação do “Novo Methodo da Grammatica Latina” – a “Artinha Latina” – considerado uma revolução no ensino do Latin no Brasil (Teixeira, 1999, p.40)
“Artinha” também pode significar um diminutivo de Arte e é sinônimo de “jeito de fazer” ou mesmo método. Além disso, pode ter sido escolhido por JSLN para nomear seu livro didático por ser similar ao Método de um outro João – o João de Deus – para alfabetizar. De orientação sintética, o método proposto por João de Deus desde 1876 (MORTATTI, 2000) está registrado em uma Cartilha Maternal denominada “Arte da Leitura”.

Encontrada
Às 15 horas do dia 21 de novembro, no auditório do Instituto João Simões Lopes Neto, entre emocionada e surpresa, a Professora Drª. Helga Landgraff Piccolo (UFRGS) contou aos presentes as peculiaridades do descobrimento do manuscrito ente seus guardados. Logo depois, em cerimônia pública, o manuscrito foi entregue ao IJSLN pelo Núcleo de Documentação Histórica da UFPel através de um “instrumento Público de Comodato”.
Já digitalizado e disponível para pesquisas, o documento raro foi escrito, muito provavelmente, sobre um caderno de escola em formato A5. Contém capa, página de rosto – na qual o autor informa que foi escrita “de acordo com a grafia aprovada pela Academia Brazileira de Letras” e “Direitos reservados conforme a Constituição Federal” além de afirmá-la “sob registro na Biblioteca Nacional” –e é dividido em quatro partes: I Parte (páginas 3-20); II Parte (páginas 21 a 32); III Parte (páginas 33 a 50) e IV Parte (páginas 51 a 80).
O manuscrito está encadernado com um capa dura, vermelha, diferente de todos os outros manuscritos deixados por JSLN, indicando que, anteriormente a sua chegada às mãos da professora Helga, provavelmente recebeu cuidados de um bibliófilo.

“Artinha de Leitura” na história da Cultura Escrita
Três dimensões constituem, preponderantemente, a historiografia a respeito da cultura escrita no Brasil: a escolarização como o processo por excelência de entrada nessa cultura; a produção e difusão do impresso como principais evidências de usos da escrita e; as taxas de alfabetização como o indicador privilegiado da existência de usuários da língua escrita (GALVÂO, 2007, p. 9-10). No entanto, existem estudos que objetivam incluir na historiografia os modos de inserção não-escolares, o manuscrito e a oralidade.
Considerando esses três aspectos fundantes da historiografia – escolarização, alfabetização e impressos – é possível afirmar que “Artinha de Leitura” de João Simões Lopes Neto estaria à margem e não poderia ser considerado pertencente à historiografia no que tange à cultura escrita. Nunca publicado, não se tem notícias de que tenha sido empregado em algum processo formal ou informal de ensino e nem mesmo que tenha sido utilizado familiarmente para alfabetizar alguém. No entanto, se considerarmos a importância do escritor João Simões Lopes Neto, o projeto didático que manuscreveu do qual “Artinha” é o primeiro volume de uma série de quatro, a qualidade do manuscrito para a época, sua preservação e seus elementos pedagógicos, teríamos mais de um argumento para considerá-lo como legítimo pertencente à História da Cultura Escrita Brasileira.
Na historiografia a respeito das cartilhas utilizadas em escolas brasileiras é possível perceber que, no final do século XIX e início do XX – o tempo de Simões – o país não possuía um autor nacional. As duas maiores expressões da época são a “Arte da Leitura” (também denominada Método João de Deus) e a Cartilha “Queres Ler?”, ambas traduções. Destinadas a ensinar a ler e escrever a crianças entre seis e dez anos, nas primeiras três décadas do século XX a cartilha de maior uso foi a “Cartilha Maternal” precedida pela Cartilha “Queres Ler?”.
O método João de Deus (de orientação sintética) está registrado em uma Cartilha Maternal denominada “Arte da Leitura”. O original, que pode ser encontrado no Brasil, é um pequeno livro escrito em português (de Portugal) que apresenta letras, sílabas, palavras e poemas em uma ordem diferente da alfabética. No final, aparece um texto poético mais longo e tabelas de adição, subtração, multiplicação e divisão. Uma tradução foi adotada nas escolas públicas do Estado do Rio Grande do Sul e editada em Porto Alegre pela Editora Selbach. Escrita pelo professor uruguaio José Henriques Figueira “Quieres Leer?” foi adaptada pelas professoras Olga Acauan Gayer e Branca Diva Pereira de Souza, após submissão à “Commissão de exame de obras pedagógicas”. Aprovada em 1924, foi “adoptada em innumeros estabelecimentos de ensino público e particular” (GAYER & SOUZA, 1935).
Diante da qualidade e da importância do legado, é importante que consideremos a “Artinha de Leitura” um livro didático para alfabetizar, como queria JSLN, e um legítimo autor que deve passar a figurar na História da Cultura Escrita Brasileira no que tange aos livros de alfabetização.

Observando a “Artinha”...
Ao ler o Livro didático de JSLN uma das conclusões preliminares é que JSLN não se limita a apresentar sua proposta de Cartilha para a infância: revela-se um Pedagogo ao sugerir atitudes aos professores, ao indicar caminhos e metodologias, conforme o trecho a seguir:

“Atenda a que o progresso do aprendiz obedece á lei do ritmo; em algumas lições ele aproveita, adeanta-se, em outras parece estacionar: naco haja pois exigências demasiadas. O ensino da leitura, ao princípio, oferece serias dificuldades; não apure o iniciando; logo que ele aprenda o mecanismo da silabação, os resultados serão surpreendentes” (JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 73-74).

Em outro fragmento de suas indicações pedagógicas JSLN está imbuído do desejo de imprimir nas crianças o amor à pátria, o orgulho nacional, o desejo de ser - quando homem - um cidadão útil. Em suas palavras:

“Snr. Mestre. (...) Não desperte nunca na criança o medo, a inveja, o ciúme, o espírito de intriga; desculpe os atos irrefletidos devidos a travessuras próprias da idade, mas castigue qualquer tendencia aos vícios do caracter; os castigos físicos ferem e rebaixam o amor próprio das crianças, e, sem emenda-las tornam-nas faltas de brio; não impôr, convencer; procure fazer voltar a criança ao bom caminho por meio de palavras meigas e firmes. Influa desde cedo a amor da pátria, o orgulho nacional, a força e a capacidade da nacionalidade, a convicção e o entusiasmo de que há de ser quando for homem - um cidadão útil” (JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 73-74).
É interessante que JSLN apresente, na Cartilha, uma consciência clara de sua autoria. Referindo-se aos estudos que realizou para a escrita da “Artinha” o criador de Blau Nunes afirmou em uma nota de rodapé à página 73:

“Não abrigo a permissão de haver feito – em essência - um trabalho original; em varios autores didaticos patrios e estranjeiros procurei orientação, conselhos ensinamentos e de copia os traduzi no meu livrinho di-lo-ás, na prática, os mestres e os aprendizes.É claro que numerosas e variadas lições de outra ordem e alcance não podem ser nem devem ser aquilo expostas; outros livros as minunciarão oportunamente; neste, trata-se simplesmente de rudimentos de leitura – e mesmo assim condensa muita materiaque anda dispersa e que copiei, traduzi, adaptei para regras humanas de uso comum, de que ninguem é exclusivo criador. Na lealdade da minha declaração vou a minha defeza”. (JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 73-74).
Sugerindo que o professor não “se deixe nunca invadir pela cólera” ele postula que “a calma, a moderação; a paciência, a meiguice e a constancia são os predicados do educador” JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 73-74).

Um Conto Inédito de JSLN
Na IV Parte do Livro “Artinha de Leitura” de JSLN, às páginas 50 até 60 há a escrita de quatro contos morais sobre a teimosia, a curiosidade, a gula e a preguiça. Únicas narrativas que se encontram na “Artinha”, JSLN tomou o cuidado de ilustrá-las com figurinhas que representam cenas com início, meio e fim.
A primeira deles é sobre a teimosia e o personagem central é um menino – Juca – que é “levado da carepa”. A segunda, inscrita às páginas 55 a 57, se chama “O Curiozo”. Vamos conhecê-lo:

O Curiozo
Certo dia um cachorrinho muito curiozo encontrou uma garrafa muito sizuda e mal que a viu, perguntou:
- Dona Garrafa, como se chama a senhora? Onde mora? O que faz? O que é que você tem dentro de si? Diga, diga!
E a garrafa, quieta, calada.
O cachorrinho, cada vez mais importuno, tornou a perguntar:
- Onde comprou o seu chapéu de lacre? Quanto custou? É de prata, a camiza do seu gargalo? Você em sua caza come doce? Diga o que é que você tem dentro de si?
E a garrafa, calada...
O curiozo torna ainda mais impertinente; meche, puxa, vira, arranha, esfola, suja, e pergunta mais, indaga mais, aborrece mais!
E a garrafa, calada...
Porem, de repente, a garrafa perde a paciência; não póde mais sofrer tanta má educação, e záz! grita ao curiozo:
- Não me aborreça!
E dá-lhe um grande estouro, na barriga, para castigo.
Ora, você que está lendo, acazo conhecerá algum menino curioso parecido com este tal cachorrinho?
E esse menino curiozo ainda não topou com alguma essoa que fizesse como fez a garrafa?
Cuidado!

domingo, 16 de novembro de 2008

Pecados Capitais em JSLN

Na IV Parte do Livro “Artinha de Leitura” de JSLN, às páginas 50 até a 60 há a escrita de quatro contos morais. Dois deles abordam a teimosia e a curiosidade e os outros dois, pecados capitais (a gula e a preguiça). Em toda a cartilha composta por 83 páginas, essas dez são as únicas que trazem narrativas.
Ilustradas com figurinhas que apresentam cenas com início, meio e fim, não há nenhuma inscrição original ou do autor sobre elas. Os textos que as acompanham– pequenas historietas criadas por JSLN – aparentemente foram escritos a partir da colagem das figuras em um caderno, base material de seu livro, e não há indicação de onde foram retiradas.
A primeira das historietas é sobre a teimosia e o personagem central é um menino – Juca – que é “levado da carépa”.
Para quem não sabe, carepa é uma espécie de caspa, ranhuras da madeira, pó sobre frutas secas ou mesmo penugem de alguns frutos (Houaiss, 2004).
Mantida com a grafia encontrada no original, podemos perceber o uso da linguagem de um século atrás. A seguir, a primeira delas:

Um teimozo

Esse Juca é levado da carepa!
Debalde sempre se lhe recomendava:
- Não brinque com fósforos!
- Não metas cacos de vidro no bolso!
- Não ponhas botões na boca!
Qual! Era o mesmo que nada: lá aparecia ele com cara chamuscada por cauza dos fósforos, com um dedo cortado pingando sangue, engasgado com um caroço ou um botão e até um dia o teimozo quazi que enguliu um alfinete. Agora o Juca teimou em fazer equilíbrio sobre uma cadeira de embalo.
Sobre uma cadeira de embalo! Sim, senhor. Vêja!
Como tive necessidade de sair de casa não sei o que teria acontecido, pois de volta, achei-o na cama, muito pálido, e chorando, das dores que sentia.
-Oh! rapaz, o que é isso? Choramingar não é responder?
Diga-me você o que foi que sucedeu ao teimoso Juca.
Desta vez tomará juízo?
Pode ser, pode ser! (JSLN, Artinha de Leitura, 1907, p.53-54
).

sábado, 15 de novembro de 2008

Luíza

Escrever um livro é uma das maneiras de eternizar um amor. Escrever é uma invenção humana ainda usada para dizer, sem que ninguém duvide, que admiramos alguém. Escrever é a possibilidade de marcar uma época, um lugar, um jeito de ser.
Foi assim que surgiu esse livro...
Entre tantas escritas que venho realizando, escrever para a Luíza foi a maneira que encontrei para eternizar seu pertencimento em minha vida. Com ele pretendi dizer que meu dia fica melhor quando a encontro para almoçar e que o olhar admirado que dedica ao meu filho me comove.
Lançado na Feira do Livro de Pelotas (15/11), "Luíza" tem como personagem central uma garotinha que nasceu com a Síndrome de Down. Foi escrito para que pais e professores leiam para suas crianças. Luíza, a menina que inspirou a História, esteve na Feira e autografou todos os livros.

domingo, 9 de novembro de 2008

Artinha de Leitura: A cartilha de JSLN

Na primeira década do século XX, mais precisamente entre os anos 1904 e 1908 a Educação do Rio Grande do Sul viveu um momento único: foi um tempo em que João Simões Lopes Neto elaborou seu projeto didático, iniciado pelo manuscrito “Artinha de Leitura”, um livro para ser “amado pelas crianças”.
Ao manuscrever e submeter a julgamento do Conselho de Instrucção Pública do RS, “Artinha de Leitura” foi anunciado pelo escritor como o primeiro de uma pretendida “Série Braziliana”. Na primeira página, logo abaixo do nome curvado como “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira, JSLN dá nome aos volumes que se seguiriam: “II Eu na Escola”, “III Terra Gaúcha” e “IV Hinnos e Glorias do Brasil”.
Antes mesmo de serem conhecidos os manuscritos, em uma conferência intitulada “Educação Cívica”, JSLN declarara o “ideal” de criar um livro:

“(...) simples, lúcido, saudável, cantante, de alegria e caricioso, que os homens rindo de sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas crianças, que nele, com sua ingênua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo; um livro em que se pudesse condensar o coração meigo, valente e virtuoso da mãe brasileira; a serenidade dos nossos heróis, a independência e a probidade dos nossos estadistas, um livro vibrante em que eu pudesse fazer ressaltar a terra, o povo, a pátria, num relevo tão grande, tão firme, tão iluminado, que impressão da sua leitura fosse eterna” (JSLN in: SCHLEE, 2006, p. 280).

“Artinha da Leitura” – o livro I do projeto Simoneano – foi manuscrita e parcialmente ilustrada com colagens de recortes em 1907 e dedicada “as escolas urbanas e ruraes”. Em julho de 1908 o escritor encaminhou os originais ao Conselho de Instrucção Pública do Rio Grande do Sul conforme Ata da 5ª Reunião (21/07/1908). Nessa, o escriba da Acta registrou:

“Foram apresentados ao Conselho para julgamento os livros: Histórias de nossa Terra de Julia Lopes de Almeida e a Cartilha de leitura: Serie Brasiliana de J. Simões Lopes Netto. Em tempo declaro que este último trabalho foi apresentado em manuscrito e com o ofício do mesmo nº 2028, desta data. Resolveu o Conselho adiar para outra sessão o julgamento dessas obras” (AHRGS: Acta da 5ª Reunião - 21/07/1908).

Repousando entre raros documentos no Memorial Público do RS, é no segundo parágrafo da Acta da 6ª Sessão (25/07/1908) que se encontra o veredicto do Conselho: “Sobre a cartilha primaria ‘Serie Brasiliana’, em manuscrito, de J. Simões Lopes Netto, entende o Conselho que, não podendo o Estado impõr a orthographia seguida pelo autor, deve ser reparado o trabalho por estar em desacõrdo com o Regulamento e não obedecer ao criterio de ensino”. Assinada por Protásio Alves, Alvaro Batista, e Manuel Pacheco Prates, o “julgamento” não intimidou JSLN que imediatamente ocupou-se em redigir uma “Ligeira Contradicta” (JSLN, 1908) argumentando em favor da ortografia utilizada – motivo de sua recusa – além de se propor a refazê-la.
Procurado por mais de cem anos desde que foi arquivado na Secretaria do Interior, o trabalho de Simões recebeu tratamento diferenciado de seus biógrafos. Mencionado como “livro didactico-primário” pelo autor em 1904 e como “cartilha primária” pelo Conselho de Instrução Pública (1908), foi também denominado “livro sobre motivos rio-grandenses intitulado Artinha de Leitura” por Carlos Reverbel (1945), “livro Artinha de Leitura” (Correio do Povo, 1948) e “Eu no Colégio” (1955) por Manoelito de Ornellas, “O verdadeiro Terra Gaúcha” por Carlos Francisco Sica Diniz (2003) e “livro de leitura” por Aldir Schlee (2006).

Com a chamada “Relíquia retorna a Pelotas” (ZH, 06/11/2008), a cartilha manuscrita por JSLN e doada à Universidade Federal de Pelotas pela professora Helga Piccolo (UFRGS) foi encontrada em sebo há 30 anos. Contém o carimbo da Secretaria do Interior (para onde supostamente foi enviada para arquivo em 1908), 92 páginas e se assemelha à Cartilha “Arte da Leitura” que traz o Método João de Deus de alfabetizar, utilizado no Brasil desde 1876. Doada em comodato ao IJSLN pela atual depositária, a professora Drª Beatriz Loner, coordenadora do NDH/UFPel, o manuscrito está encadernado com um capa dura, vermelha, diferente de todos os outros manuscritos deixados por JSLN, indicando que recebeu cuidados de um bibliófilo.

“Artinha de Leitura” na história da Cultura Escrita
Compondo o universo da proposição de obras destinadas à criança – ainda não designada literatura infantil – cronologicamente no Brasil temos o registro da proposição do “livro didactico-primario Artinha de Leitura” de João Simões Lopes Neto (1907), o livro de leitura “Narizinho Arrebitado” de Monteiro Lobato em 1921 e “Histórias da Teté” de Pedro Wayne em 1937.

Diferentemente das obras de Érico Verissimo escritas na década de 30 – fruto da sensibilidade do escritor com o “problema da literatura infantil” segundo Filipouski & Zilberman (1982, p. 13) –, as obras dos pioneiros Lopes Neto (1907), Lobato (1921) e Wayne (1937) podem ser consideradas a partir de seu vínculo com a escolarização, ou seja, com o desejo de disponibilizar, no momento da aprendizagem escolar, leituras adequadas ao universo dos leitores, no caso, a infância. A esse respeito Filipouski & Zilberman (1982, p. 13) afirmam que Monteiro Lobato “foi quem transformou o livro num elemento de diálogo entre a criança e o adulto, difundindo, alargando e democratizando a cultura”.

O interessante é perceber que entre os três autores que manifestaram preocupação com o que as crianças liam e escreviam na escola apenas a obra de Wayne é destinada ao aprendizado da leitura. Essa afirmação é possível quando se analisa o discurso anunciatório (que não sugere essa condição) e os manuscritos conhecidos de JSLN e, também, quando se entra em contato com o livro de Lobato “Narizinho Arrebitado” anunciado já à época, como um livro de leitura. Assim, a não ser que exista algum manuscrito inédito com essa característica – um livro de literatura infantil com clara intenção de alfabetizar – pode-se considerar o livro “Histórias da Teté” de Pedro Wayne como o único nessa condição produzido na primeira metade do século XX.

Outra consideração possível a partir de um olhar específicos dessas três obras – a condição literária e alfabetizadora – é a de que embora JSLN e Pedro Wayne não tenham publicado suas obras, o fato de terem escrito um texto especialmente para crianças faz com que figurem na historiografia da literatura infantil brasileira, ao lado de Lobato e Verissimo.

domingo, 2 de novembro de 2008

Artinha da Leitura: Um inédito manuscrito de JSLN

Há uma interessante história a respeito do manuscrito inédito “Artinha da Leitura” do escritor João Simões Lopes Neto. Elaborado na primeira década do século passado, em 25/07/2008 completou 100 anos que “Artinha...” foi rejeitado pelo Conselho de Instrucção Pública do Rio Grande do Sul com o argumento de que Lopes Neto havia empregado uma “orthographia em desacõrdo com o Regulamento” e, portanto, deveria ser reparada por “não obedecer ao criterio de ensino” (Porto Alegre: AHRGS, Acta da 6ª Sessão, 25/07/1908).
O manuscrito foi apresentado ao Conselho de Instrucção Pública para que, depois de julgado, fosse adotado nas escolas públicas. O autor pretendia, com isso, ter escrito um livro “(...) simples, lúcido, saudável, cantante, de alegria e caricioso, que os homens rindo de sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas crianças, que nele, com sua ingênua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo; um livro em que se pudesse condensar o coração meigo, valente e virtuoso da mãe brasileira; a serenidade dos nossos heróis, a independência e a probidade dos nossos estadistas, um livro vibrante em que eu pudesse fazer ressaltar a terra, o povo, a pátria, num relevo tão grande, tão firme, tão iluminado, que impressão da sua leitura fosse eterna” (Educação Cívica, 1904).
A verdade é que poucas pessoas tiveram acesso aos originais e nem mesmo sabem se o que viram, leram e referiram é o manuscrito apresentado por JSLN ao Conselho de Instrucção pública, levando a crer que o documento esteja perdido, escondido ou subestimado. Isso pode ser afirmado uma vez que o projeto de JSLN nunca foi publicado, há diferenciadas referências a ele entre seus estudiosos além de uma controversa informação sobre o processo de aprovação no Conselho de Instrucção Pública.
Nesse século de história o manuscrito foi mencionado como “livro didactico-primário” pelo autor em 1904, “cartilha primária” pelo Conselho de Instrucção Pública em 1908, “livro sobre motivos rio-grandenses intitulado Artinha de Leitura” e “copioso trabalho de investigação histórica e interpretação sociológica” por Reverbel (Correio do Povo, 1945 e Província de São Pedro, 1945), “Eu no Colégio” por Manoelito de Ornellas (prefácio de “Terra Gaúcha” em 1955), “O verdadeiro Terra Gaúcha” (Diniz, 2003) e “livro de leitura” por Aldir Schlee em 2006.
A controversa informação a respeito de sua apreciação se encontra no segundo volume da Revista Província de São Pedro em matéria assinada por Carlos Reverbel, o primeiro e mais importante biógrafo do criador de Blau Nunes. Em “Uma página tarjada” há a menção a uma nota cronológica - publicada em Pelotas à época da morte do escritor – que o qualifica como “pesquisador infatigável” dotado de “fino espírito de observação”. Nela, o autor refere-se a um “trabalho didático” que merecera a aprovação “quanto ao mérito da obra”, dos membros “mais conspícuos do magistério rio-grandense”. Além disso, a nota afirma que o trabalho didático não foi adotado nas escolas públicas, “tão sòmente por ter sido escrito em ortografia fonética”.
Segundo seus biógrafos, após a rejeição do Conselho de Instrucção Pública teria JSLN utilizado de sua verve para escrever uma “Ligeira contradita a uma decisão do Conselho de Instrução Pública” (Diniz, 2003, p. 128). No entanto, em nenhuma das biografias há qualquer informação que indique que o autor tenha recebido seus originais de volta, nem mesmo se os reescreveu, entregou a algum depositário ou os destruiu. As suposições – a respeito de seu conteúdo, de seu paradeiro e da linguagem empregada em ”Artinha da Leitura” – integram os segredos guardados até hoje pelo lendário baú de Lopes Neto.

O que escrevo atualmente...

Olá
Estou escrevendo a biobibliografia de Pedro Wayne, um escritor que se tornou gaúcho em 1907.
É autor de "Xarqueada" e deixou inédito alguns textos.
Um deles, "Histórias da Teté" um livro de leitura/literatura manuscrito para alfabetizar a filha.
Quer saber mais?
Em breve, publico meu livro.