sábado, 3 de setembro de 2022

Heterocisnormatividade em acervo de literatura infantil


Gênero, família e sexualidade em obras para a infância

Cristina Maria Rosa


Há obras de literatura que oportunizem conhecer, explorar e discutir as temáticas gênero, família e sexualidade transviada na infância? Inscrito no XXXI Congresso de Iniciação Científica que ocorrerá entre 17 e 21 de outubro de 2022 na UFPel, o trabalho intitulado HETEROCISNORMATIVIDADE EM ACERVO DE LITERATURA INFANTIL, de autoria do Rafael Mendes - estudante da licenciatura em Pedagogia, foi aprovado. Orientado por mim, Cristina, o trabalho tem como diferencial a dedicação intensa de Rafael ao acervo da SLEV. Quer conhecer o resumo que o Rafael enviou ao evento? Leia a seguir...


HETEROCISNORMATIVIDADE EM ACERVO DE LITERATURA INFANTIL

Rafael Mendes

INTRODUÇÃO

Com a pesquisa pretendo realizar uma curadoria crítica acerca de obras literárias que possam explorar discussões das temáticas gênero, família e sexualidade transviada na infância. Utilizei, como banco de dados, parte do acervo literário da Sala de Leitura Érico Veríssimo (FAE/UFPel). Ramos (2008) compreende a literatura para crianças como um elemento importante na construção do imaginário infantil em relação à cultura do adulto, funcionando como mecanismo de fixação e normatização das identidades femininas e masculinas. Nesse sentido, busco revelar se há representações de gênero transviadas da heterocisnormatividade em narrativas literárias destinadas ao público infantil, fundamentando-se nos estudos da teoria queer (BUTLER, 2003) e transviada (BENTO, 2017), que problematizam a naturalização da performance de gênero em relação ao sexo biológico, pois O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. (BUTLER 2003, pg. 59) Em uma estrutura social colonialmente dominante que busca a sustentação da família nuclear tradicional, a naturalização de gênero atua como mecanismo de desvalidação de subjetividades transviadas. Penso que a literatura pode vir a intervir e ser instrumento de validação e proteção da diversidade de infâncias ao oportunizar práticas de letramento que atuem na desnaturalização desses discursos hegemônicos. A leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, permitindo ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade sem perder de vista sua subjetividade e história. O leitor não esquece suas próprias dimensões, mas expande as fronteiras do conhecido, que absorve através da imaginação e decifra por meio do intelecto (ZILBERMAN,2008, pg. 27). Dessa forma, a literatura pode atuar na subjetivação do leitor, possibilitando a criação e (re)criação de suas visões do mundo e de si mesmo, potencializando a pluralidade. Portanto, para práticas de leitura com crianças, a escolha do livro e a mediação do mesmo é fundamental para formar futuros leitores sensíveis a tais processos de significação, o que evidencia a importância da bibliodiversidade no acervo da Faculdade de Educação, que atua na base da construção do repertório literário de professores mediadores em formação. 2.

METODOLOGIA

De caráter qualitativo, a pesquisa teve como procedimentos a seleção, análise e interpretação de obras literárias. O primeiro momento se caracterizou pelo acesso a 280 livros para crianças inseridos no acervo da Sala de Leitura Érico Veríssimo da Faculdade de Educação da UFPel. Os livros foram escolhidos por extensão de texto (até 120 páginas) e ilustrados. Estabeleci como critério de análise a perspectiva pós estruturalista de produção de sujeitos com base na teoria queer, proposto pela autora norte-americana Judith Butler (2003) no livro “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” e nos estudos transviados da autora brasileira Berenice Bento (2017), que traçam alternativas decoloniais à teoria queer, em vista das especificidades da nossa territorialidade marginal. Ademais, complementei o estudo com as contribuições de Louro (1997) no livro “Gênero, sexualidade e educação, uma perspectiva pós estruturalista” e Ramos (2008) em “A construção do gênero e da sexualidade na literatura infantil". Utilizando a interpretação de sentidos como base metodológica para análise dos dados a partir de Gomes (2007), que diz que O Método de Interpretação de Sentidos é uma tentativa de avançarmos mais na interpretação, caminhando além dos conteúdos de textos na direção de seus contextos e revelando as lógicas e as explicações mais abrangentes presentes numa determinada cultura acerca de um determinado tema. Nesse método, é de fundamental importância que estabeleçamos confrontos entre: dimensão subjetiva e posicionamentos de grupos; texto e subtexto; texto e contexto; falas e ações mais amplas; cognição e sentimento, dentre outros aspectos. Nele, ancorados numa base teórica conceitual que procura articular concepções da filosofia e das ciências sociais, tentamos caminhar tanto na compreensão (atitude hermenêutica) quanto na crítica (atitude dialética) dos dados gerados de uma pesquisa. (p. 96) Inicialmente, procurei fazer uma análise dos livros de forma atenta às suas narrativas, observando a presença de certos discursos hegemônicos e contra hegemônicos, seguindo os seguintes procedimentos: 1. Seleção de narrativas de gênero, família e sexualidade; 2. Leitura deleite com foco no tema; 3. Criação de categorias para estes selecionados: os “livros potentes” e os “livros problemáticos”; 4. Releitura destes e seleção de cinco obras com a presença de elementos transviados da heterocisnormatividade para análise mais profunda. As obras selecionadas para esta primeira apresentação pública da pesquisa são: A Mochila de Camila (BARCELLOS, 2003), Os meninos e as meninas (LABBÉ, 2005), Bia na África (DREGUER, 2007) e Omo-oba: histórias de princesas (OLIVEIRA, 2017). A seguir apresento o uso do Método de Interpretação de Sentidos na leitura das obras selecionadas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Diante do acervo consultado – 280 livros inseridos no acervo da Sala de Leitura Erico Verissimo – não evidenciei a presença de personagens e/ou tramas transviados da heterocisnormatividade, ou seja, não identifiquei a presença de personagem LGBTQIA+ ou performance de gênero neutro. Também não encontrei representações para além da família nuclear (tradicional), ou alguma menção a sexualidades pra além do fator biológico. A exceção é “Os meninos e as meninas” (LABBÉ, 2005) que, de forma paradidática e heterocisnormativa, trata o tema gênero e sexualidade. Nos livros lidos encontrei uma forte marcação de gênero binária. Neles, o amor, o namoro e o casamento heterocisnormativos eram incitados, como em A Mochila de Camila, (BARCELLOS, 2003), em que a personagem vai revelando o que tem na sua mochila (cadernos, lápis e laços de fita) e, na última página, a ilustração apresenta ela com um menino, ambos rodeados por corações e, no texto o seguinte: “A felicidade de poder voltar pra casa depois da escola, a alegria de poder sorrir e sonhar; E a esperança de crescer feliz, ficar grande, namorar e casar”. Essas narrativas me trouxeram a compreensão de que gênero e sexualidades estavam muito presentes nos livros, não havendo neutralidade no tema. O que há é um “apagamento” de narrativas desviantes. Segundo Bento (2017) “a inquietação a respeito do quão apropriado é ensinar temas queer, gays ou lésbicos está claramente ligada ao medo de que o tema possa corromper o estudante”, ou seja, é uma questão ideológica. Por exemplo, em Cada sapo com seu sapo, cada princesa com sua sutileza, (Miguez, 2004), a princesa que estava brincando, faz um trato com um sapo e acaba sendo obrigada a se casar. Em uma ilustração eles estão deitados na cama e, enquanto ele sorri, ela parece incomodada. No texto, a seguinte inscrição: “Sapo na mesa, sapo na cama, sapo no colo da dama, tecendo nova trama, um beijo na boca reclama; A língua não mente o que o coração sente...O sapo pressente o amor nascente”. No epílogo do livro, a princesa se apaixona pelo sapo e os dois ficam juntos. Essa leitura me faz questionar: Que sentidos podemos identificar nesse discurso? Que tipo de impressões uma pequena leitora faz do mundo adulto após esta experiência literária? O que esse livro diz sobre as mulheres, sobre o amor, casamento, heterossexualidade, estupro e pedofilia? Apesar da ausência de livros com narrativas transviadas da heterocisnormatividade, encontrei algumas obras muito potentes como Omo-oba: histórias de princesas, da brasileira Kiusam de Oliveira (2017). Nela de forma acessível às crianças, a filosofia dos Itãs das Orixás Oiá, Oxum, Iemanjá, Olocum, Ajê Xalugá e Oduduá é apresentada. Por ofertar uma subversão da imagem feminina branca e canonizada, considerei Omo-oba de extrema delicadeza para explorar diálogos acerca de como o gênero se constrói socialmente em diversas expressões e corporalidades, em diferentes lugares e tempos, desnaturalizando-o. 4. CONCLUSÕES A pesquisa em andamento tem contribuído para compreensão de fenômenos educacionais, pois os livros de literatura infantil nos apontam para quais elementos culturais são julgados adequados na educação de crianças em nossa sociedade, já que atuam como expressão linguística de um discurso (ZILBERMAN, 2008). Dessa forma, observei que a maioria das obras lidas, até o momento, objetivam a naturalização do discurso hegemônico judaico-cristão, colaborando pouco para as discussões acerca das temáticas gênero, família e sexualidade transviada na infância. Em vista disso, a continuidade da pesquisa se dará no sentido de concluir a interpretação de sentidos dos livros escolhidos. Penso, ainda, realizar uma busca, no restante do acervo e em outros espaços, por obras que possam compor uma lista de referência para abordagem do tema nas escolas.

 REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DREGUER, Ricardo; GUEDES, Avelino; BORGES, Rogério. Bia na África. Moderna, 2007.

OLIVEIRA, Kiusam de. MARINHO, Josias. Omo-Oba: histórias de princesas. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.

RAMOS, Josiane Becker de Oliveira. A construção do gênero e da sexualidade na literatura infantil. 2008. Dissertação (mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná. BENTO, Berenice. Transviad@ s: gênero, sexualidade e direitos humanos. EdUFBA, 2017.

GOMES, Romeu. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. Pesquisa social: teoria, método e criatividade, v. 26, p. 79-108, 2007.

LABBÉ, Brigitte; PUECH, Michel. Os meninos e as meninas. São Paulo: Scipione, 2005.

MIGUEZ, Fatima. Cada sapo com seu sapo cada princesa com a sua sutileza. São Paulo: DCL, 2004.

ZILBERMAN, Regina. O papel da literatura na escola. Via atlântica, n. 14, p. 11- 22, 2008

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