quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

As personagens e a leitura literária

 


Bruxas, fadas, princesas, maluquinhos: personagens e a leitura literária.

Cristina Maria Rosa

 

 

Crianças são hábeis no trato com a imaginação.

E a imaginação...

Não tem limite!

Não as subestimemos!

O que ler para nossas crianças? Quando ler? Como ler?

Crianças bem pequenas estão ávidas por conhecer o nosso mundo. Aquele que nos importa. Aquele que valorizamos. E é por isso que serão atentos ao que faremos...

E é por isso que nossas atitudes importam.

E é por isso que vão acreditar quando apresentarmos a elas o misterioso mundo dos personagens que habitam páginas e mais páginas de interessantes livros.

Através da nossa voz, vão conhecer suas vozes.

Através de nosso silêncio, vão experimentar o medo.

 Já pensou no tom da voz do Lobo, quando encontra Chapeuzinho Vermelho na floresta? Eu já experimentei e te confesso: não é fácil imitar alguém que pretende enganar, seduzir, corromper. Mas tente, e o personagem vai obter credibilidade na hora!

Crianças amam nos ouvir lendo. Experencie ler para elas algo que tu amas, e elas amarão ler.

Por te admirar, para te agradar, para merecer teu olhar e afeição, vão aprender a amar o que tu, pai e mãe, admiram, respeitam, amam.

Como começar

Se for criança bem pequena, comece pelo melhor: colo, horário (antes de dormir é o ideal), frequência (se der, todos os dias). E pelos melhores autores e livros. Indico a Coleção Miolo Mole, de Eva Furnari. É o melhor, para os pequenos.  E O tesouro das cantigas para crianças, organizado pela Ana Maria Machado.

Se for criança que já fala, sente pertinho, antes de dormir, todos os dias e leia poemas, muitos poemas. Mas podes ler quadrinhas, trava-línguas, adivinhas, fábulas. Elas amam. Dica? A antologia Poemas que escolhi para as crianças e Canções, parlendas, quadrinhas, para crianças novinhas, de Ruth Rocha. Imperdível, também, Ou isto ou Aquilo, de Cecília Meireles.

Crianças entre quatro e seis anos podem ouvir histórias. E há muitas, para essa idade. Indico os contos de fadas. Originais. Há dois exemplares imperdíveis: um organizado pela Ana Maria Machado e os contos dos irmãos Grimm. Eu já li para crianças pequenas e quando leres, vais te surpreender!

Crianças entre os seis e os nove anos, mesmo que alfabetizadas, precisam continuar a ouvir narrativas e poemas lidos por ti. Podes diminuir a intensidade. Exemplo: em vez de todos os dias, leia dois ou três. Invista em autores jovens no mercado “para crianças” como Mario Corso e sua incrível A história mais triste do mundo, Fabrício Carpinejar e sua Lulu e Eva Furnari e seu Felpo Filva.

Mas não deixe de conhecer As aventuras do avião vermelho, A vida do Elefante Basílio, O urso com música na barriga, Os três porquinhos pobres, Outra vez os três porquinhos e Rosa Maria no castelo encantado, todos de Erico Verissimo. Foram escritos nos anos 30 do século XX e inauguraram a literatura infantil gaúcha!

Crianças entre nove e onze anos precisam de aventuras mais intensas e muitas páginas, para nunca mais deixar de gostar de ler. Temos autores nacionais, entre eles Monteiro Lobato e Ana Maria Machado, da qual recomendo especialmente Bisa Bia Bisa Bel e Bem do seu tamanho. Uma série que meu filho nessa idade leu e que é imperdível é Desventuras em Série. Treze exemplares maravilhosos que “prendem” o leitor e o convidam para outros voos.

Lembre que personagens são links que encontramos para nos comunicar de imediato com as crianças. E elas, as crianças, tem especial apreço pelo lúdico que nas personagens habita. Pois...

Em cada personagem existe um mundo repleto de imagens, emoções, enigmas, sentimentos, roteiros, intrigas, desafios, desfechos...

É isso!

Tenho muitas outras sugestões e podemos conversar outra hora.

Abraço!

domingo, 6 de dezembro de 2020

Uma infância para o século XXI

 

Clarissa, nove meses.
Ainda não sabe falar nem ler.
Já sabe onde estão os livros..
.

A criança que quero leitora

Cristina Maria Rosa

 

Tenho alunas e alunos.

Tenho, por consequência, ex-alunos. Muitos. Fiz uma conta simples, um dia desses. Em torno de seis mil, a maioria mulheres que, em algum momento de suas vidas, se encontraram comigo para aprender a amar a literatura.

Uma delas, de uns tempos para cá, decidiu que seus estudos estavam parcos. Que sua formação em Pedagogia, precisava ser potencializada.

Escreveu-me.

Não uma carta, que não somos mais disso.

Escreveu-me perguntas.

E eu, Pedagoga que sou, ponderei.

Quem leria essa resposta? Quem a tomaria como verdade? Quem a encararia com seriedade? Quem eventualmente discordaria dela?

Depois, irresistivelmente, me arrisquei.

Respondi.

Sim, respondi.

E a Pedagoga novata e atuante na escola, nunca mais parou de perguntar. E eu, de responder...

A pergunta

Não lembro mais a primeira pergunta e nem quando ocorreu. Sei a última, e é dela que me ocupo.

É uma pergunta que requer uma resposta.

E, sei, todos os enigmas se transformam em novos e mais elaborados questionamentos.

Tem sido assim, com minha ex-aluna: uma pergunta que leva à outra.

Esta, no entanto, a última, me moveu a...

Mais que responder a ela, pensar e pensar.

E redigir esse pequeno texto.

Historieta

No dia 27/11/2020, às 14 horas, a professora Pâmela escreveu:

 

Boa tarde. Estava eu aqui, mais uma vez procurando um escrito sobre a infância. Como me orientaste a descobrir, também, qual criança é esta que eu quero formar leitor, que criança é essa, que infância é essa, estou me deparando com diversas fontes e perspectivas. Como nunca me arrependo de te pedir orientações, mais uma vez estou aqui para te perguntar, a qual fontes recorre, ou: para ti que crianças são estas que tu queres que sejam leitoras? O que é a infância e a criança para ti?

 

Perceberam a simplicidade e, ao mesmo tempo, a complexidade da pergunta?

Ontem, observando o novo livro de Magda Soares – Alfaletrar – e a frase que complementa o título – toda criança pode aprender a ler e escrever – imaginei que sim, minha aluna merece um refletir conceituado. Se Magda precisa afirmar que toda criança pode, é possível que alguns pensem que nem todas podem...

Como respondi

Iniciei assim minha resposta:

 

Quando eu era criança, a infância era a que eu tinha. Ou seja, não era um conceito e, sim, uma vivência, uma experiência. Era pessoal. Sim, eu percebia que havia outras (mais ricas, mais pobres, mais livres, menos afetuosas). Imaginava que era "por causa dos pais". Pais ricos, infância rica. Quando cursei Pedagogia, teoricamente, aprendi que não há infância e, sim, infâncias. Na escola, percebi que há infância. Ou seja, há um abismo entre o que eu percebo nas teses sobre a infância e o que ocorre nas práticas escolares frente à ou às crianças. Então, inventei uma criança ideal e uma infância ideal. Para educar, via escola, pois, a única coisa comum, para as crianças brasileiras é ter que ir à escola...

 

Lendo, vejo que as lacunas que deixei não foram só a possibilidade de pensar e concluir, de minha aluna. Escrevi e, ao reler, me deparo com a essência do meu texto.

Contradição.

Vero.

Há contradição – saudável, necessária, instigante – fundada na contradição que percebo.

Um discurso muito plural, até avançado – sobre a infância – e uma docência arraigada nas crianças que antecedem Emília, de Lobato (1920), Fernando, de Verissimo (1936), Lili, de Quintana (1948). Uma “chuvarada” de metade primeira do Século XX!

Eu, como gosto de primavera, me decidi: vou reformular a resposta. Vou aprofundá-la.

Pâmela não perdeu a oportunidade: se criei uma criança, se inventei uma infância, logo quis saber:

– Qual é a sua criança ideal?

E logo em seguida: “Tu tens alguma perspectiva favorita sobre como as crianças aprendem? Vygotsky, Piaget...?”.

E, foi aí que surgiu essa escrita.

Uma criança para o século XXI?

A criança inventada por mim, a que sonho educar, é oriunda de uma tríade: é um exemplar da espécie, é herdeira legítima da cultura e não é boa nem má.

Desembaralhando...

Exemplar da espécie

Animais parcialmente inteligentes, nós, humanos não sobrevivemos sozinhos. Somos dependentes, precisamos de grupos para aprender a comer, andar, falar.

Comparados com outras espécies na mesma idade geracional, nosso exemplar infante não sobrevive facilmente.

Como animais que somos e por possuir um tipo restrito de inteligência, nos apartamos da origem – a natureza – e estamos apagando os passos deixados.

Na modernidade, conhecemos parte de nossa psique e, por isso, somos mais suscetíveis à opinião, favorável ou não, a nosso respeito. Adoecemos sem emoção, elogio, aprovação.

Para este argumento, utilizo-me da leitura que fiz de Sapiens: uma breve história da humanidade, de Yuval Harari. Na obra, uma instigante prestação de contas com nossos esquecimentos. Não deixe de ler.

Uma criança nada mais é do que um exemplar da espécie. Precisa de cuidados, receptividade, orientação, liberdade, credibilidade, responsabilidade.

Criança: uma herdeira legítima da cultura

Herdeiros são os nossos com o nosso melhor e o nosso pior. A cultura – quase que um agrupamento de siglas para conseguir definir – tem sido coloquialmente entendida como os resultados do que produzimos na história como civilização. Mesmo que seja uma queimada, mesmo que seja um desastre projetado por uma mineradora, mesmo que seja um holocausto.

A cultura escrita, que é do que se trata aqui, é tudo o que produzimos que nos encanta e representa: a música, a poesia e a literatura, por exemplo – que palavrão, também inventado por nós ninguém gosta de mencionar como cultura.

Herdeiros são aqueles que aprendem com a espécie e, se obtêm bons resultados, dizemos que aprenderam. Se, no entanto, “se perdem”, encontramos algum parente sanguíneo do qual não gostamos para dizer que nosso rebento “puxou” a ele. Más influências – amigos, um adulto falcatrua ou mesmo uma situação traumática, são insistentemente responsabilizados pelo desvio de rota.

Mas o que quero dizer com “herdeira legítima da cultura”?

Nenhum adulto de bom senso abre mão do melhor para os seus. E como sociedade, temos como dever ofertar o nosso melhor para todos. Todas as crianças que ingressam na escola são legítimas herdeiras da leitura e da escrita. E, de bons livros, bons métodos, bons resultados. Filmes, músicas, equações, localizações e todos os outros componentes do que é relevante na escola e para além dela.

 O saber produzido por todos, em relação, é de todos. É um princípio público – de sobrevivência. Do saber, das instâncias que o tornam conhecido, da sociedade e, em derradeira análise, da espécie.

Uma criança nada mais é do que uma herdeira legítimo da cultura: têm direitos e não precisa mendigar para recebê-los; tem deveres e precisa ser informada acerca deles. É capaz e precisa saber e realizar suas faculdades.

Crianças são boas ou más?

Na obra O que nos faz bons ou maus, Paul Bloom, oferece uma perspectiva sobre nossas vidas morais: para ele, os seres humanos já vêm ao mundo com uma noção de moralidade e exemplifica com pesquisas em que, antes mesmo de poderem falar ou andar, bebês julgam a bondade e a maldade das ações dos outros, sentem empatia e compaixão, agem para acalmar os que estão angustiados, e têm um senso rudimentar de justiça.

Para agrupar esse argumento a meu conceito de infância, li O que nos faz bons ou maus, de Paul Blomm (204). Nele, como epígrafe, Blomm recorre a Thomas Jefferson (1787):

 

O destino do homem é viver em sociedade. Sua moralidade, portanto, teve de ser moldada e este objetivo. Sua percepção inata de certo e errado está exclusivamente relacionada a isso. Este sentido faz parte de sua natureza tanto quanto os sentidos da audição, da visão e do tato [...]. (Thomas Jefferson, 1787 in: Blomm, Paul- Epígrafe).

 

 

E Blomm afirma: “a moralidade nos fascina”. Como argumento, ilustra:

 

As histórias de que mais gostamos, seja de ficção [...] ou reais, são contos sobre o bem e o mal. Queremos que os mocinhos sejam recompensados e queremos, realmente, que os bandidos sofram (Paul Blomm, 2014).

 

Uma criança nada mais é do que um exemplar da espécie, herdeira legítima da cultura e livre para escolher se quer ser “boa” ou “má”, se vai ser solidária ou indiferente, magnânima ou vingativa, justa ou...

Tu sabes.

A criança que inventei...

Herdeira do bem e do mal, sábia e ignorante, a criança que está nascendo no século XXI é um exemplar da espécie humana, um “homo sapiens”.

É, também, uma herdeira legítima da cultura, tem direitos instituídos, não deve precisar brigar para aprender...

E...

Não é boa nem má. Mas, sim, pode aprender a “moralidade” que, como espécie, é fundamental para a vida em sociedade.

Neste tempo.

Neste planeta.

Lembrei-me de Ruth Rocha em Azul e lindo planeta terra nossa casa.

Nele, a escritora que se dedica à infância desde muito tempo, recomenda cuidar do planeta, pois, diferentemente da casa onde moramos, aquele que tem endereço e CEP, podemos nos mudar. 

Do planeta, ainda não!