sexta-feira, 21 de novembro de 2008

"Artinha de Leitura" na História da Cultura Escrita

Na primeira década do século XX, mais precisamente entre os anos 1904 e 1908 a Educação do Rio Grande do Sul viveu um momento único: foi um tempo em que João Simões Lopes Neto elaborou seu projeto didático, iniciado pelo manuscrito “Artinha de Leitura”, um livro para ser “amado pelas crianças”.
Ao manuscrever e submeter a julgamento do Conselho de Instrucção Pública do RS, “Artinha de Leitura” foi anunciado pelo escritor como o primeiro de uma pretendida “Série Braziliana”. Na primeira página, logo abaixo do nome curvado como “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira, JSLN dá nome aos volumes que se seguiriam: “II Eu na Escola”, “III Terra Gaúcha” e “IV Hinnos e Glorias do Brasil”. Antes mesmo de virem a público o manuscrito, em uma conferência intitulada “Educação Cívica”, JSLN declarara o “ideal” de criar um livro:

“(...) simples, lúcido, saudável, cantante, de alegria e caricioso, que os homens rindo de sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas crianças, que nele, com sua ingênua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo; um livro em que se pudesse condensar o coração meigo, valente e virtuoso da mãe brasileira; a serenidade dos nossos heróis, a independência e a probidade dos nossos estadistas, um livro vibrante em que eu pudesse fazer ressaltar a terra, o povo, a pátria, num relevo tão grande, tão firme, tão iluminado, que impressão da sua leitura fosse eterna” (JSLN in: SCHLEE, 2006, p. 280).

"Artinha da Leitura” – o livro I do projeto Simoneano – foi manuscrita e parcialmente ilustrada com colagens de recortes. Em sua capa, registra seu local de origem – Pelotas-Rio Grande do Sul – e o ano em que possivelmente foi finalizada - 1907. Além disso, JSLN apresenta-se como “Lente da Academia de Comércio de Pelotas”, dedicando sua cartilha “as escolas urbanas e ruraes”. Em julho de 1908 o escritor encaminhou os originais ao Conselho de Instrucção Pública do Rio Grande do Sul conforme Acta da 5ª Reunião (21/07/1908). Nessa, o escriba da Acta registrou:

“Foram apresentados ao Conselho para julgamento os livros: Histórias de nossa Terra de Julia Lopes de Almeida e a Cartilha de leitura: Serie Brasiliana de J. Simões Lopes Netto. Em tempo declaro que este último trabalho foi apresentado em manuscrito e com o ofício do mesmo nº 2028, desta data. Resolveu o Conselho adiar para outra sessão o julgamento dessas obras” (AHRGS: Acta da 5ª Reunião - 21/07/1908).

Repousando entre raros documentos no Memorial Público do RS, é no segundo parágrafo da Acta da 6ª Sessão (25/07/1908) que se encontra o veredicto do Conselho: “Sobre a cartilha primaria ‘Serie Brasiliana’, em manuscrito, de J. Simões Lopes Netto, entende o Conselho que, não podendo o Estado impõr a orthographia seguida pelo autor, deve ser reparado o trabalho por estar em desacõrdo com o Regulamento e não obedecer ao criterio de ensino”.
Assinada por Protásio Alves, Alvaro Batista, e Manuel Pacheco Prates, o “julgamento” não intimidou JSLN que imediatamente ocupou-se em redigir uma “Ligeira Contradicta” (JSLN, 1908) argumentando em favor da ortografia utilizada –motivo de sua recusa – além de se propor a refazê-la.

Desaparecimento
Logo depois que foi entregue ao Conselho de Instrucção Pública a “Artinha” desapareceu. Na verdade, talvez ninguém a tenha procurado por um bom tempo e só tornou-se motivo de busca quando JSLN já havia sido “descoberto” e reconhecido publicamente através do trabalho publicado por seu maior biógrafo: Carlos Reverbel em 1981. Como possivelmente acontece com outros escritores logo após a morte, o que restou do espólio do escritor pelotense passou a ser descrito, estudado, preservado sem que a “Artinha” fosse encontrada.
Ao ser arquivado na Secretaria do Interior, o trabalho de Simões passou a receber nomes diferenciados, o que pode ter contribuído para disseminar incertezas a respeito de sua existência. Inicialmente anunciado como “livro didactico-primário” por João Simões Lopes Neto (Conferência Educação Cívica, 1904), ao ser entregue ao Conselho de Instrucção Pública foi alcunhado de “Cartilha de leitura: Serie Brasiliana” (Acta da 5ª Reunião, 21/07/1908) e quatro dias depois, “cartilha primaria ‘Serie Brasiliana’ pelo mesmo Conselho (Acta da 6ª Sessão em 25/07/1908).
Carlos Reverbel, o primeiro a registrar o conteúdo do Baú deixado pelo Capitão, denominou-a de “livro sobre motivos rio-grandenses intitulado Artinha de Leitura” em uma matéria intitulada “João Simões Lopes Neto: Esboço Biográfico em tempo de reportagem” publicado na Revista Província de São Pedro em setembro de 1945.
Outro dos nomes que a “Artinha” recebeu foi de um grande amigo de Dona Velha, a esposa do escritor João Simões. Ao escrever sobre o conteúdo do Baú deixado por Simões e a ele franqueado para estudos pela viúva, Manoelito de Ornellas referiu-se ao documento como “livro Artinha de Leitura” em uma coluna do Correio do Povo em 1948. Dez anos depois, nomeou-o de “Eu no Colégio” no prefácio de Terra Gaúcha (1955).
Já em Pelotas há dois estudiosos que publicaram obras biográficas sobre o escritor e que, em seus trabalhos, referiram-se à artinha de diferentes modos: “O verdadeiro Terra Gaúcha” por Carlos Francisco Sica Diniz (2003) e “livro de leitura” por Aldir Schlee (2006).

Por que “Artinha”
Embora o nome possa parecer estranho a quem não estude os métodos e processos de alfabetização no Brasil, “artinha” é empregado em manuais de alfabetização desde 1752 quando Antonio Pereira de Figueiredo celebrizou-se pela publicação do “Novo Methodo da Grammatica Latina” – a “Artinha Latina” – considerado uma revolução no ensino do Latin no Brasil (Teixeira, 1999, p.40)
“Artinha” também pode significar um diminutivo de Arte e é sinônimo de “jeito de fazer” ou mesmo método. Além disso, pode ter sido escolhido por JSLN para nomear seu livro didático por ser similar ao Método de um outro João – o João de Deus – para alfabetizar. De orientação sintética, o método proposto por João de Deus desde 1876 (MORTATTI, 2000) está registrado em uma Cartilha Maternal denominada “Arte da Leitura”.

Encontrada
Às 15 horas do dia 21 de novembro, no auditório do Instituto João Simões Lopes Neto, entre emocionada e surpresa, a Professora Drª. Helga Landgraff Piccolo (UFRGS) contou aos presentes as peculiaridades do descobrimento do manuscrito ente seus guardados. Logo depois, em cerimônia pública, o manuscrito foi entregue ao IJSLN pelo Núcleo de Documentação Histórica da UFPel através de um “instrumento Público de Comodato”.
Já digitalizado e disponível para pesquisas, o documento raro foi escrito, muito provavelmente, sobre um caderno de escola em formato A5. Contém capa, página de rosto – na qual o autor informa que foi escrita “de acordo com a grafia aprovada pela Academia Brazileira de Letras” e “Direitos reservados conforme a Constituição Federal” além de afirmá-la “sob registro na Biblioteca Nacional” –e é dividido em quatro partes: I Parte (páginas 3-20); II Parte (páginas 21 a 32); III Parte (páginas 33 a 50) e IV Parte (páginas 51 a 80).
O manuscrito está encadernado com um capa dura, vermelha, diferente de todos os outros manuscritos deixados por JSLN, indicando que, anteriormente a sua chegada às mãos da professora Helga, provavelmente recebeu cuidados de um bibliófilo.

“Artinha de Leitura” na história da Cultura Escrita
Três dimensões constituem, preponderantemente, a historiografia a respeito da cultura escrita no Brasil: a escolarização como o processo por excelência de entrada nessa cultura; a produção e difusão do impresso como principais evidências de usos da escrita e; as taxas de alfabetização como o indicador privilegiado da existência de usuários da língua escrita (GALVÂO, 2007, p. 9-10). No entanto, existem estudos que objetivam incluir na historiografia os modos de inserção não-escolares, o manuscrito e a oralidade.
Considerando esses três aspectos fundantes da historiografia – escolarização, alfabetização e impressos – é possível afirmar que “Artinha de Leitura” de João Simões Lopes Neto estaria à margem e não poderia ser considerado pertencente à historiografia no que tange à cultura escrita. Nunca publicado, não se tem notícias de que tenha sido empregado em algum processo formal ou informal de ensino e nem mesmo que tenha sido utilizado familiarmente para alfabetizar alguém. No entanto, se considerarmos a importância do escritor João Simões Lopes Neto, o projeto didático que manuscreveu do qual “Artinha” é o primeiro volume de uma série de quatro, a qualidade do manuscrito para a época, sua preservação e seus elementos pedagógicos, teríamos mais de um argumento para considerá-lo como legítimo pertencente à História da Cultura Escrita Brasileira.
Na historiografia a respeito das cartilhas utilizadas em escolas brasileiras é possível perceber que, no final do século XIX e início do XX – o tempo de Simões – o país não possuía um autor nacional. As duas maiores expressões da época são a “Arte da Leitura” (também denominada Método João de Deus) e a Cartilha “Queres Ler?”, ambas traduções. Destinadas a ensinar a ler e escrever a crianças entre seis e dez anos, nas primeiras três décadas do século XX a cartilha de maior uso foi a “Cartilha Maternal” precedida pela Cartilha “Queres Ler?”.
O método João de Deus (de orientação sintética) está registrado em uma Cartilha Maternal denominada “Arte da Leitura”. O original, que pode ser encontrado no Brasil, é um pequeno livro escrito em português (de Portugal) que apresenta letras, sílabas, palavras e poemas em uma ordem diferente da alfabética. No final, aparece um texto poético mais longo e tabelas de adição, subtração, multiplicação e divisão. Uma tradução foi adotada nas escolas públicas do Estado do Rio Grande do Sul e editada em Porto Alegre pela Editora Selbach. Escrita pelo professor uruguaio José Henriques Figueira “Quieres Leer?” foi adaptada pelas professoras Olga Acauan Gayer e Branca Diva Pereira de Souza, após submissão à “Commissão de exame de obras pedagógicas”. Aprovada em 1924, foi “adoptada em innumeros estabelecimentos de ensino público e particular” (GAYER & SOUZA, 1935).
Diante da qualidade e da importância do legado, é importante que consideremos a “Artinha de Leitura” um livro didático para alfabetizar, como queria JSLN, e um legítimo autor que deve passar a figurar na História da Cultura Escrita Brasileira no que tange aos livros de alfabetização.

Observando a “Artinha”...
Ao ler o Livro didático de JSLN uma das conclusões preliminares é que JSLN não se limita a apresentar sua proposta de Cartilha para a infância: revela-se um Pedagogo ao sugerir atitudes aos professores, ao indicar caminhos e metodologias, conforme o trecho a seguir:

“Atenda a que o progresso do aprendiz obedece á lei do ritmo; em algumas lições ele aproveita, adeanta-se, em outras parece estacionar: naco haja pois exigências demasiadas. O ensino da leitura, ao princípio, oferece serias dificuldades; não apure o iniciando; logo que ele aprenda o mecanismo da silabação, os resultados serão surpreendentes” (JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 73-74).

Em outro fragmento de suas indicações pedagógicas JSLN está imbuído do desejo de imprimir nas crianças o amor à pátria, o orgulho nacional, o desejo de ser - quando homem - um cidadão útil. Em suas palavras:

“Snr. Mestre. (...) Não desperte nunca na criança o medo, a inveja, o ciúme, o espírito de intriga; desculpe os atos irrefletidos devidos a travessuras próprias da idade, mas castigue qualquer tendencia aos vícios do caracter; os castigos físicos ferem e rebaixam o amor próprio das crianças, e, sem emenda-las tornam-nas faltas de brio; não impôr, convencer; procure fazer voltar a criança ao bom caminho por meio de palavras meigas e firmes. Influa desde cedo a amor da pátria, o orgulho nacional, a força e a capacidade da nacionalidade, a convicção e o entusiasmo de que há de ser quando for homem - um cidadão útil” (JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 73-74).
É interessante que JSLN apresente, na Cartilha, uma consciência clara de sua autoria. Referindo-se aos estudos que realizou para a escrita da “Artinha” o criador de Blau Nunes afirmou em uma nota de rodapé à página 73:

“Não abrigo a permissão de haver feito – em essência - um trabalho original; em varios autores didaticos patrios e estranjeiros procurei orientação, conselhos ensinamentos e de copia os traduzi no meu livrinho di-lo-ás, na prática, os mestres e os aprendizes.É claro que numerosas e variadas lições de outra ordem e alcance não podem ser nem devem ser aquilo expostas; outros livros as minunciarão oportunamente; neste, trata-se simplesmente de rudimentos de leitura – e mesmo assim condensa muita materiaque anda dispersa e que copiei, traduzi, adaptei para regras humanas de uso comum, de que ninguem é exclusivo criador. Na lealdade da minha declaração vou a minha defeza”. (JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 73-74).
Sugerindo que o professor não “se deixe nunca invadir pela cólera” ele postula que “a calma, a moderação; a paciência, a meiguice e a constancia são os predicados do educador” JSLN, Artinha da Leitura, 1907, pág. 73-74).

Um Conto Inédito de JSLN
Na IV Parte do Livro “Artinha de Leitura” de JSLN, às páginas 50 até 60 há a escrita de quatro contos morais sobre a teimosia, a curiosidade, a gula e a preguiça. Únicas narrativas que se encontram na “Artinha”, JSLN tomou o cuidado de ilustrá-las com figurinhas que representam cenas com início, meio e fim.
A primeira deles é sobre a teimosia e o personagem central é um menino – Juca – que é “levado da carepa”. A segunda, inscrita às páginas 55 a 57, se chama “O Curiozo”. Vamos conhecê-lo:

O Curiozo
Certo dia um cachorrinho muito curiozo encontrou uma garrafa muito sizuda e mal que a viu, perguntou:
- Dona Garrafa, como se chama a senhora? Onde mora? O que faz? O que é que você tem dentro de si? Diga, diga!
E a garrafa, quieta, calada.
O cachorrinho, cada vez mais importuno, tornou a perguntar:
- Onde comprou o seu chapéu de lacre? Quanto custou? É de prata, a camiza do seu gargalo? Você em sua caza come doce? Diga o que é que você tem dentro de si?
E a garrafa, calada...
O curiozo torna ainda mais impertinente; meche, puxa, vira, arranha, esfola, suja, e pergunta mais, indaga mais, aborrece mais!
E a garrafa, calada...
Porem, de repente, a garrafa perde a paciência; não póde mais sofrer tanta má educação, e záz! grita ao curiozo:
- Não me aborreça!
E dá-lhe um grande estouro, na barriga, para castigo.
Ora, você que está lendo, acazo conhecerá algum menino curioso parecido com este tal cachorrinho?
E esse menino curiozo ainda não topou com alguma essoa que fizesse como fez a garrafa?
Cuidado!

domingo, 16 de novembro de 2008

Pecados Capitais em JSLN

Na IV Parte do Livro “Artinha de Leitura” de JSLN, às páginas 50 até a 60 há a escrita de quatro contos morais. Dois deles abordam a teimosia e a curiosidade e os outros dois, pecados capitais (a gula e a preguiça). Em toda a cartilha composta por 83 páginas, essas dez são as únicas que trazem narrativas.
Ilustradas com figurinhas que apresentam cenas com início, meio e fim, não há nenhuma inscrição original ou do autor sobre elas. Os textos que as acompanham– pequenas historietas criadas por JSLN – aparentemente foram escritos a partir da colagem das figuras em um caderno, base material de seu livro, e não há indicação de onde foram retiradas.
A primeira das historietas é sobre a teimosia e o personagem central é um menino – Juca – que é “levado da carépa”.
Para quem não sabe, carepa é uma espécie de caspa, ranhuras da madeira, pó sobre frutas secas ou mesmo penugem de alguns frutos (Houaiss, 2004).
Mantida com a grafia encontrada no original, podemos perceber o uso da linguagem de um século atrás. A seguir, a primeira delas:

Um teimozo

Esse Juca é levado da carepa!
Debalde sempre se lhe recomendava:
- Não brinque com fósforos!
- Não metas cacos de vidro no bolso!
- Não ponhas botões na boca!
Qual! Era o mesmo que nada: lá aparecia ele com cara chamuscada por cauza dos fósforos, com um dedo cortado pingando sangue, engasgado com um caroço ou um botão e até um dia o teimozo quazi que enguliu um alfinete. Agora o Juca teimou em fazer equilíbrio sobre uma cadeira de embalo.
Sobre uma cadeira de embalo! Sim, senhor. Vêja!
Como tive necessidade de sair de casa não sei o que teria acontecido, pois de volta, achei-o na cama, muito pálido, e chorando, das dores que sentia.
-Oh! rapaz, o que é isso? Choramingar não é responder?
Diga-me você o que foi que sucedeu ao teimoso Juca.
Desta vez tomará juízo?
Pode ser, pode ser! (JSLN, Artinha de Leitura, 1907, p.53-54
).

sábado, 15 de novembro de 2008

Luíza

Escrever um livro é uma das maneiras de eternizar um amor. Escrever é uma invenção humana ainda usada para dizer, sem que ninguém duvide, que admiramos alguém. Escrever é a possibilidade de marcar uma época, um lugar, um jeito de ser.
Foi assim que surgiu esse livro...
Entre tantas escritas que venho realizando, escrever para a Luíza foi a maneira que encontrei para eternizar seu pertencimento em minha vida. Com ele pretendi dizer que meu dia fica melhor quando a encontro para almoçar e que o olhar admirado que dedica ao meu filho me comove.
Lançado na Feira do Livro de Pelotas (15/11), "Luíza" tem como personagem central uma garotinha que nasceu com a Síndrome de Down. Foi escrito para que pais e professores leiam para suas crianças. Luíza, a menina que inspirou a História, esteve na Feira e autografou todos os livros.

domingo, 9 de novembro de 2008

Artinha de Leitura: A cartilha de JSLN

Na primeira década do século XX, mais precisamente entre os anos 1904 e 1908 a Educação do Rio Grande do Sul viveu um momento único: foi um tempo em que João Simões Lopes Neto elaborou seu projeto didático, iniciado pelo manuscrito “Artinha de Leitura”, um livro para ser “amado pelas crianças”.
Ao manuscrever e submeter a julgamento do Conselho de Instrucção Pública do RS, “Artinha de Leitura” foi anunciado pelo escritor como o primeiro de uma pretendida “Série Braziliana”. Na primeira página, logo abaixo do nome curvado como “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira, JSLN dá nome aos volumes que se seguiriam: “II Eu na Escola”, “III Terra Gaúcha” e “IV Hinnos e Glorias do Brasil”.
Antes mesmo de serem conhecidos os manuscritos, em uma conferência intitulada “Educação Cívica”, JSLN declarara o “ideal” de criar um livro:

“(...) simples, lúcido, saudável, cantante, de alegria e caricioso, que os homens rindo de sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas crianças, que nele, com sua ingênua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo; um livro em que se pudesse condensar o coração meigo, valente e virtuoso da mãe brasileira; a serenidade dos nossos heróis, a independência e a probidade dos nossos estadistas, um livro vibrante em que eu pudesse fazer ressaltar a terra, o povo, a pátria, num relevo tão grande, tão firme, tão iluminado, que impressão da sua leitura fosse eterna” (JSLN in: SCHLEE, 2006, p. 280).

“Artinha da Leitura” – o livro I do projeto Simoneano – foi manuscrita e parcialmente ilustrada com colagens de recortes em 1907 e dedicada “as escolas urbanas e ruraes”. Em julho de 1908 o escritor encaminhou os originais ao Conselho de Instrucção Pública do Rio Grande do Sul conforme Ata da 5ª Reunião (21/07/1908). Nessa, o escriba da Acta registrou:

“Foram apresentados ao Conselho para julgamento os livros: Histórias de nossa Terra de Julia Lopes de Almeida e a Cartilha de leitura: Serie Brasiliana de J. Simões Lopes Netto. Em tempo declaro que este último trabalho foi apresentado em manuscrito e com o ofício do mesmo nº 2028, desta data. Resolveu o Conselho adiar para outra sessão o julgamento dessas obras” (AHRGS: Acta da 5ª Reunião - 21/07/1908).

Repousando entre raros documentos no Memorial Público do RS, é no segundo parágrafo da Acta da 6ª Sessão (25/07/1908) que se encontra o veredicto do Conselho: “Sobre a cartilha primaria ‘Serie Brasiliana’, em manuscrito, de J. Simões Lopes Netto, entende o Conselho que, não podendo o Estado impõr a orthographia seguida pelo autor, deve ser reparado o trabalho por estar em desacõrdo com o Regulamento e não obedecer ao criterio de ensino”. Assinada por Protásio Alves, Alvaro Batista, e Manuel Pacheco Prates, o “julgamento” não intimidou JSLN que imediatamente ocupou-se em redigir uma “Ligeira Contradicta” (JSLN, 1908) argumentando em favor da ortografia utilizada – motivo de sua recusa – além de se propor a refazê-la.
Procurado por mais de cem anos desde que foi arquivado na Secretaria do Interior, o trabalho de Simões recebeu tratamento diferenciado de seus biógrafos. Mencionado como “livro didactico-primário” pelo autor em 1904 e como “cartilha primária” pelo Conselho de Instrução Pública (1908), foi também denominado “livro sobre motivos rio-grandenses intitulado Artinha de Leitura” por Carlos Reverbel (1945), “livro Artinha de Leitura” (Correio do Povo, 1948) e “Eu no Colégio” (1955) por Manoelito de Ornellas, “O verdadeiro Terra Gaúcha” por Carlos Francisco Sica Diniz (2003) e “livro de leitura” por Aldir Schlee (2006).

Com a chamada “Relíquia retorna a Pelotas” (ZH, 06/11/2008), a cartilha manuscrita por JSLN e doada à Universidade Federal de Pelotas pela professora Helga Piccolo (UFRGS) foi encontrada em sebo há 30 anos. Contém o carimbo da Secretaria do Interior (para onde supostamente foi enviada para arquivo em 1908), 92 páginas e se assemelha à Cartilha “Arte da Leitura” que traz o Método João de Deus de alfabetizar, utilizado no Brasil desde 1876. Doada em comodato ao IJSLN pela atual depositária, a professora Drª Beatriz Loner, coordenadora do NDH/UFPel, o manuscrito está encadernado com um capa dura, vermelha, diferente de todos os outros manuscritos deixados por JSLN, indicando que recebeu cuidados de um bibliófilo.

“Artinha de Leitura” na história da Cultura Escrita
Compondo o universo da proposição de obras destinadas à criança – ainda não designada literatura infantil – cronologicamente no Brasil temos o registro da proposição do “livro didactico-primario Artinha de Leitura” de João Simões Lopes Neto (1907), o livro de leitura “Narizinho Arrebitado” de Monteiro Lobato em 1921 e “Histórias da Teté” de Pedro Wayne em 1937.

Diferentemente das obras de Érico Verissimo escritas na década de 30 – fruto da sensibilidade do escritor com o “problema da literatura infantil” segundo Filipouski & Zilberman (1982, p. 13) –, as obras dos pioneiros Lopes Neto (1907), Lobato (1921) e Wayne (1937) podem ser consideradas a partir de seu vínculo com a escolarização, ou seja, com o desejo de disponibilizar, no momento da aprendizagem escolar, leituras adequadas ao universo dos leitores, no caso, a infância. A esse respeito Filipouski & Zilberman (1982, p. 13) afirmam que Monteiro Lobato “foi quem transformou o livro num elemento de diálogo entre a criança e o adulto, difundindo, alargando e democratizando a cultura”.

O interessante é perceber que entre os três autores que manifestaram preocupação com o que as crianças liam e escreviam na escola apenas a obra de Wayne é destinada ao aprendizado da leitura. Essa afirmação é possível quando se analisa o discurso anunciatório (que não sugere essa condição) e os manuscritos conhecidos de JSLN e, também, quando se entra em contato com o livro de Lobato “Narizinho Arrebitado” anunciado já à época, como um livro de leitura. Assim, a não ser que exista algum manuscrito inédito com essa característica – um livro de literatura infantil com clara intenção de alfabetizar – pode-se considerar o livro “Histórias da Teté” de Pedro Wayne como o único nessa condição produzido na primeira metade do século XX.

Outra consideração possível a partir de um olhar específicos dessas três obras – a condição literária e alfabetizadora – é a de que embora JSLN e Pedro Wayne não tenham publicado suas obras, o fato de terem escrito um texto especialmente para crianças faz com que figurem na historiografia da literatura infantil brasileira, ao lado de Lobato e Verissimo.

domingo, 2 de novembro de 2008

Artinha da Leitura: Um inédito manuscrito de JSLN

Há uma interessante história a respeito do manuscrito inédito “Artinha da Leitura” do escritor João Simões Lopes Neto. Elaborado na primeira década do século passado, em 25/07/2008 completou 100 anos que “Artinha...” foi rejeitado pelo Conselho de Instrucção Pública do Rio Grande do Sul com o argumento de que Lopes Neto havia empregado uma “orthographia em desacõrdo com o Regulamento” e, portanto, deveria ser reparada por “não obedecer ao criterio de ensino” (Porto Alegre: AHRGS, Acta da 6ª Sessão, 25/07/1908).
O manuscrito foi apresentado ao Conselho de Instrucção Pública para que, depois de julgado, fosse adotado nas escolas públicas. O autor pretendia, com isso, ter escrito um livro “(...) simples, lúcido, saudável, cantante, de alegria e caricioso, que os homens rindo de sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas crianças, que nele, com sua ingênua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo; um livro em que se pudesse condensar o coração meigo, valente e virtuoso da mãe brasileira; a serenidade dos nossos heróis, a independência e a probidade dos nossos estadistas, um livro vibrante em que eu pudesse fazer ressaltar a terra, o povo, a pátria, num relevo tão grande, tão firme, tão iluminado, que impressão da sua leitura fosse eterna” (Educação Cívica, 1904).
A verdade é que poucas pessoas tiveram acesso aos originais e nem mesmo sabem se o que viram, leram e referiram é o manuscrito apresentado por JSLN ao Conselho de Instrucção pública, levando a crer que o documento esteja perdido, escondido ou subestimado. Isso pode ser afirmado uma vez que o projeto de JSLN nunca foi publicado, há diferenciadas referências a ele entre seus estudiosos além de uma controversa informação sobre o processo de aprovação no Conselho de Instrucção Pública.
Nesse século de história o manuscrito foi mencionado como “livro didactico-primário” pelo autor em 1904, “cartilha primária” pelo Conselho de Instrucção Pública em 1908, “livro sobre motivos rio-grandenses intitulado Artinha de Leitura” e “copioso trabalho de investigação histórica e interpretação sociológica” por Reverbel (Correio do Povo, 1945 e Província de São Pedro, 1945), “Eu no Colégio” por Manoelito de Ornellas (prefácio de “Terra Gaúcha” em 1955), “O verdadeiro Terra Gaúcha” (Diniz, 2003) e “livro de leitura” por Aldir Schlee em 2006.
A controversa informação a respeito de sua apreciação se encontra no segundo volume da Revista Província de São Pedro em matéria assinada por Carlos Reverbel, o primeiro e mais importante biógrafo do criador de Blau Nunes. Em “Uma página tarjada” há a menção a uma nota cronológica - publicada em Pelotas à época da morte do escritor – que o qualifica como “pesquisador infatigável” dotado de “fino espírito de observação”. Nela, o autor refere-se a um “trabalho didático” que merecera a aprovação “quanto ao mérito da obra”, dos membros “mais conspícuos do magistério rio-grandense”. Além disso, a nota afirma que o trabalho didático não foi adotado nas escolas públicas, “tão sòmente por ter sido escrito em ortografia fonética”.
Segundo seus biógrafos, após a rejeição do Conselho de Instrucção Pública teria JSLN utilizado de sua verve para escrever uma “Ligeira contradita a uma decisão do Conselho de Instrução Pública” (Diniz, 2003, p. 128). No entanto, em nenhuma das biografias há qualquer informação que indique que o autor tenha recebido seus originais de volta, nem mesmo se os reescreveu, entregou a algum depositário ou os destruiu. As suposições – a respeito de seu conteúdo, de seu paradeiro e da linguagem empregada em ”Artinha da Leitura” – integram os segredos guardados até hoje pelo lendário baú de Lopes Neto.